Sob processo por uso indevido de recursos públicos durante a campanha eleitoral de 2022, a deputada federal Silvia Waiãpi (PL-AP) teve o mandato cassado, em 19 de junho de 2024, pelo Tribunal Regional Eleitoral do Amapá (TRE-AP),
A decisão se baseou em provas de que verbas da candidatura foram usadas para custear um procedimento estético de harmonização facial. Alegando preconceito por ser indígena e da Amazônia, a deputada recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e permanece no cargo enquanto aguarda o resultado.
Diante da repercussão do caso, Bereia levantou o controverso histórico da parlamentar — que inclui sua atuação política, discursos religiosos, identidade indígena contestada e omissões em sua biografia — para oferecer a leitores e leitoras as informações que permeiam o caso.
Perfil
Silvia Nobre Lopes é oficial da reserva do exército, se apresenta como indígena do povo Wajãpi e foi eleita deputada federal pelo Partido Liberal (PL), no estado do Amapá em 2022, com 5.435 votos. Antes de entrar para a política institucional, participou da equipe de transição do governo Bolsonaro, em 2018, exerceu funções na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e foi indicada pelo então presidente da República para a coordenação de promoção de políticas indígenas na Secretaria Especial de Cultura, em 2019.
Entusiasta do bolsonarismo, Silvia Waiãpi se apresenta como “Defensora da Mulher, da Criança e da Família, Embaixadora da Paz e Republicana Conservadora”.
A ausência de menções explícitas à sua fé em discursos ou entrevistas contrasta com sua participação em eventos religiosos evangélicos, o que levanta questões sobre a relação entre religiosidade, identidade e estratégia política, objeto desta matéria.
A construção de uma cruzada: “indígena, conservadora e erguida por Deus
Durante o culto “Uma Noite de Celebração”, realizado na sede daAssembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC), no Rio de Janeiro, em dezembro de 2022, a deputada federal Silvia Waiãpi protagonizou um longo testemunho emotivo e estrategicamente estruturado. Combinando tragédia pessoal, superação e exaltação patriótica, a parlamentar se apresenta como filha da floresta, mãe solo, militar, atleta, evangélica e patriota. A fala foi transmitida ao vivo no canal da igreja no YouTube e segue o modelo clássico de narrativa de superação, comum tanto nos testemunhos em cultos evangélicos quanto na retórica motivacional do estilo coach.
Silvia Waiãpi começa se identificando como “uma filha do Amapá, uma mulher da floresta, uma filha do Norte do Brasil” e afirma ter sido menina de rua no Rio de Janeiro, onde dormia em praças e vendia revistas velhas e pedras.
Relata ter passado por momentos de extrema vulnerabilidade e sofrimento na juventude. Como marco de superação, conta que, ao decidir reagir à dor, calçou os tênis e saiu para correr. Em suas palavras: “Acabei virando, em dois meses, uma atleta profissional. Fui atleta do Vasco da Gama.”
A partir dessa virada, a deputada conta que conquistou uma bolsa de estudos, formou-se em fisioterapia e posteriormente ingressou nas Forças Armadas, onde se tornou tenente — segundo ela, é a “primeira mulher indígena a alcançar o posto de oficial”.
A história é contada de forma linear e épica, seguindo o modelo de superação pessoal típico de testemunhos religiosos e da lógica de autoajuda, em que a dor é convertida em disciplina, esforço e vitória individual.
Durante o culto, a deputada reforça sua autoridade mencionando uma longa lista de especializações: afirma ser formada em política e estratégia pela Escola Superior de Guerra, em liderança estratégica pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro, e possuir formação em defesa química, biológica, radiológica e nuclear, transporte aeromédico, gestão financeira e orçamentária em organizações públicas, entre outras.
A enumeração impressiona pela quantidade e pelo tom técnico, contribuindo para a construção de uma imagem pública credenciada, de excelência, mérito e competência — frequentemente associada ao ideal da “mulher que venceu sozinha”.
Ao final da fala, Silvia Waiãpi declara: “Hoje eu sou a sua deputada federal pelo estado do Amapá. A primeira mulher indígena conservadora e de direita, que foi erguida por Deus para defender a sua nação e lutar pela liberdade do seu povo.”
O tom do testemunho intensifica-se com uma convocação de guerra espiritual, em que a deputada afirma enfrentar “principados e potestades” e pede orações pelas mulheres que estão “rompendo grilhões”. A performance política e espiritual visa criar uma figura quase mítica — uma mulher forjada na dor e abençoada por Deus para conduzir uma missão redentora.
Rejeição pública do povo Wajãpi: notas de repúdio à identidade reivindicada pela deputada
A identidade indígena reivindicada por Silvia Nobre é formalmente contestada pelo próprio povo Wajãpi. Duas notas públicas divulgadas pelo Conselho das Aldeias Wajãpi – Apina, principal instância representativa da Terra Indígena Wajãpi, acusam a deputada federal de utilizar indevidamente o nome da etnia para obter legitimidade política.
Na primeira nota, divulgada em 2022, quando a então candidata foi eleita, o conselho afirma: [Silvia Nobre] “não representa nosso povo Wajãpi, não faz parte das nossas organizações representativas e não pode falar em nosso nome”. A nota critica a aliança da candidata eleita pelo PL com o ex-presidente Jair Bolsonaro e rejeita seu uso político da identidade indígena. Os líderes ressaltam que, na votação de primeiro turno na Terra Indígena Wajãpi, Lula obteve 378 votos, enquanto Silvia Nobre recebeu apenas 31.
Além disso, a carta menciona postagens de parentes não indígenas da deputada, que afirmam que ela foi criada por uma família não indígena em Macapá e que não teria pertencimento ao povo Wajãpi. A história da “menina indígena que desapareceu na década de 1970”, adotada por alguns poucos apoiadores, é refutada pela maioria dos líderes locais.
Na segunda nota, datada de 15 de maio de 2023, o conselho indígena afirma de forma categórica: “Sabemos que ela não é Wajãpi, ela está se aproveitando do nosso nome para ganhar força política”.
Segundo os signatários, Silvia Nobre Lopes não vive na Terra Indígena Wajãpi, não participa da organização social ou política do povo, nem foi eleita por seus representantes. O documento reforça que somente pessoas legitimamente escolhidas na Assembleia Geral do Apina têm autorização para falar em nome do povo Wajãpi.
A nota ainda denuncia que a deputada tem defendido propostas contrárias às posições tradicionais do povo, como: apoio ao agronegócio e à mineração em terras indígenas; flexibilização da demarcação de territórios e abertura para garimpo ilegal. Por fim, o conselho declara: “Proibimos a senhora Silvia Nobre Lopes de fazer atividades político-partidárias na Terra Indígena Wajãpi.”
Reportagem publicada pelo UOL neste junho de 2025 reforça as contradições sobre a origem indígena de Silvia Waiãpi. O texto revela que documentos oficiais, familiares e lideranças do povo Wajãpi negam a versão apresentada pela deputada. A mãe registrada em cartório afirma ser a genitora biológica e nega que a deputada tenha nascido em aldeia indígena. A reportagem também aponta inconsistências no uso da língua waiãpi por parte da parlamentar e destaca que sua autodeclaração como indígena não é reconhecida pela comunidade.
A Silvia Waiãpi de 2011 e 2012: espiritualidade indígena, sobrevivência urbana e uma bandeira por conquistar
Em 2011, Silvia Nobre participou do Programa do Jô, na TV Globo, onde foi apresentada como a primeira mulher indígena a integrar as Forças Armadas brasileiras. A entrevista revela uma mulher profundamente conectada com a tradição e espiritualidade de seu povo, marcada por experiências de dor, mas com um discurso ainda distante da retórica evangélica e politicamente conservadora que adotaria anos mais tarde.
Ao longo da conversa no programa de entrevistas, Sílvia Nobre descreve o funcionamento das línguas indígenas, menciona troncos linguísticos, detalha costumes e explica que teve uma filha aos 13 anos, algo que apresenta como parte de uma estrutura cultural própria: “A menina quando menstrua, para nós, a natureza está dizendo que ela já é mulher.”
Também afirma ter fugido da aldeia aos 14 anos para estudar, passando a viver nas ruas do Rio de Janeiro. Relata com emoção o momento em que vendeu uma pedra do seu lugar de origem para conseguir se alimentar por duas semanas. Essa experiência marcaria o início de sua trajetória empreendedora: “Eu pensei, se eu consegui vender uma pedra, então posso vender qualquer coisa.”
A entrevistada conta que vendeu revistas e livros de porta em porta, declamou poesia no Teatro Villa-Lobos e foi incentivada por intelectuais a estudar arte.
O trecho mais simbólico da entrevista ocorre quando Silvia Nobre fala da infância nas escolas da cidade, quando não podia hastear a bandeira do Brasil por ser indígena: “Eu passava a minha infância inteira puxando na saia das professoras, pedindo, por favor, para hastear aquela bandeira. Mas ninguém deixava. Só as crianças brancas.”
Esse desejo de aceitação e reconhecimento nacional se transforma, na fala dela, em um propósito de vida: “Prometi para mim mesma que, acontecesse o que acontecesse, o meu país um dia iria se orgulhar de mim.”
Ainda que a noção de superação pessoal esteja presente, o discurso de 2011 é notavelmente diferente daquele apresentado em 2022 nos cultos evangélicos: não há menções a “voz profética”, “batalha espiritual” ou “missão divina”.
Em outra entrevista concedida ao apresentador Ronnie Von, em programa da TV Gazeta, em 2012, Silvia Nobre volta a apresentar sua trajetória como exemplo de superação e resiliência, mas sem nenhuma menção a afiliação religiosa institucional ou linguagem típica do evangelicalismo.
Ao contrário, a entrevistada recorre a expressões ligadas à espiritualidade pessoal, à ancestralidade – “Eu acredito em espírito. Eu acredito que a floresta tem espírito. Que a folha tem espírito. Que a água tem espírito. Que os animais têm espírito.” – e a uma noção de missão coletiva voltada ao seu povo: “Minha missão? Eu acredito que seja mudar a história do meu povo. […] Eu só quero ser um exemplo, para que não só o povo indígena, mas o povo brasileiro possa olhar para mim e dizer: ‘eu também posso’.
Ao falar sobre dor e recuperação, Silvia Nobre compartilha uma filosofia de vida fortemente alinhada com o discurso de autoajuda, mas ainda marcada por uma espiritualidade não confessional: “O melhor do fundo do poço é quando você descobre que a única saída te obriga a erguer a cabeça e olhar para o alto.”
Essa fala, embora possa ser interpretada como referência a uma dimensão espiritual, não invoca a linguagem típica das igrejas evangélicas — não há menções a Deus, Bíblia, fé cristã ou guerra espiritual. O que há é uma ênfase no exemplo, na vontade e na transformação pessoal como alicerces de uma jornada de superação — algo que Silvia Nobre ainda estrutura fora do campo religioso organizado.
Silenciada pelo próprio discurso: a atriz que desapareceu
Em novembro de 2018, a jornalista Júlia Barbon, da Folha de S.Paulo, traçou um perfil detalhado de Silvia Nobre após sua nomeação para a equipe de transição do governo Jair Bolsonaro. A reportagem resgata elementos fundamentais da trajetória da então tenente do Exército, compondo uma biografia multifacetada, mas que hoje vem sendo seletivamente editada pela própria parlamentar.
A matéria menciona os períodos como moradora de rua, atleta, fisioterapeuta, declamadora de poesia, militar e mãe solo, mas destaca sua formação em artes cênicas e atuação como atriz na TV Globo, onde trabalhou no figurino de A Muralha (2000), foi pesquisadora de texto na novela Uga Uga (2000) e teve seu papel mais conhecido como a empregada Domingas na minissérie Dois Irmãos (2017).
A atuação foi objeto de uma pesquisa crítica publicada pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), que analisa como a personagem foi usada de forma cômica e estereotipada, sem fala inteligível e com aparência grotesca, sendo alvo de insultos racistas e misóginos por parte dos protagonistas da trama.
A autora da pesquisa Aquésia Maciel Góes argumenta que mesmo ao contratar uma atriz indígena, a televisão brasileira reproduz violências simbólicas, relegando essas mulheres a papéis de submissão, ignorância ou hipersexualização — mesmo quando as atrizes, como Silvia Nobre, possuem formação artística e experiência cênica.
A hoje deputada federal foi escalada para um papel ridicularizado, sem direito a fala compreensível (sem legenda), com dentes deformados e associada à feiura e à ignorância. A personagem é rejeitada por um dos protagonistas com falas como: “Vai raspar uma árvore pra ver se conserta esses dentes! e “É uma trombada de frente, mas não dá perda total no carro.”
Bereia avalia, com esta pesquisa, que a omissão dessa passagem da vida de Silvia Nobre pode ser compreendida como uma reestruturação estratégica de sua identidade pública. Ela busca apagar as conexões com o universo artístico ou com personagens que contrariem os valores que hoje ela afirma defender.
A trajetória como atriz desapareceu completamente das falas mais recentes da deputada, especialmente em ambientes religiosos e de identidade conservadora, como o culto na ADVEC ou nos discursos em redes sociais. A omissão é significativa: o universo artístico — especialmente ligado à Rede Globo — costuma ser tratado com hostilidade no meio bolsonarista, sendo associado a pautas progressistas, “imoralidade” e oposição ideológica.
Harmonização facial e mandato cassado
Em junho de 2024, o Tribunal Regional Eleitoral do Amapá (TRE‑AP) cassou o mandato da deputada federal Silvia Waiãpi por uso indevido de verba pública de campanha para um procedimento estético — uma harmonização facial no valor de aproximadamente R$ 9 mil durante as eleições de 2022
Imagem: Jornal Folha de S.Paulo
A decisão foi unânime, baseada em provas robustas apresentadas pelo Ministério Público Eleitoral, incluindo recibos e o depoimento de um cirurgião-dentista. Silvia Waiãpi negou ter autorizado o procedimento, alegando falsificação de recibo e ausência de saída de valores da sua conta. Após recurso ao Tribunal Superior Eleitoral, o processo segue em tramitação.
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A deputada federal Silvia Waiãpi tem participação documentada em cultos evangélicos, como no púlpito da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC), ao lado do pastor Silas Malafaia, onde se apresenta como “indígena, cristã e patriota”, recorrendo a termos da teologia evangélica como “voz profética” e “soldados da fé”. No entanto, em entrevistas anteriores, ela expressou crenças ligadas à espiritualidade indígena, à ancestralidade e à presença de espíritos da natureza — evidências de uma trajetória espiritual complexa e, possivelmente, em transição.
Apesar da forte presença em eventos religiosos evangélicos, não há menção explícita à sua filiação confessional atual, nem vínculo formal com igrejas. Já sua identidade indígena é formalmente contestada por lideranças do povo Wajãpi, que a acusam de se apropriar indevidamente do nome da etnia para fins políticos.
O levantamento do Bereia também aponta que trechos significativos da biografia da deputada foram apagados em sua atuação política recente — como a carreira artística na TV Globo, incluindo o papel estereotipado interpretado na novela Uga Uga. Ao mesmo tempo, documentos e depoimentos de familiares indicam divergências entre a versão da deputada e os relatos sobre sua origem e possível adoção
A trajetória de Silvia Waiãpi, construída entre apagamentos, disputas identitárias e discursos religiosos, segue no centro de controvérsias públicas — agora agravadas por um processo judicial sobre irregularidades na campanha que a levou à Câmara Federal e pode causar a perda definitiva de seu mandato parlamentar.
Referências:
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https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2024-06/deputada-e-cassada-por-pagar-tratamento-estetico-com-dinheiro-publico Acesso em: 20 Mai 2025
https://www.instagram.com/silviawaiapi/ Acesso em: 20 Mai 2025
https://www.camara.leg.br/deputados/220579?fbclid=PAZXh0bgNhZW0CMTEAAackO7H8f2Veugw8dwgy-avdYTo9RwEsVYclliXKbC-pPRCkqYqcfgDjlJn7nQ_aem_K-mXPdqh9T2ZrrGsX2Sj0Q Acesso em: 20 Mai 2025
https://apiboficial.org/ Acesso em: 20 Mai 2025
https://apiboficial.org/2025/02/17/deputada-bolsonarista-silvia-nobre-e-repudiada-por-organizacoes-dos-wajapi-nao-representa-nosso-povo/ Acesso em: 20 Mai 2025
https://www.abant.org.br/files/20230602_6479f4e7c5513.pdf Acesso em: 20 Mai 2025
https://www.facebook.com/photo/?fbid=195060289750106&set=pb.100077384097360.-2207520000&locale=pt_BR Acesso em: 20 Mai 2025
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