Mídias sociais e noticiosas circulam desinformação sobre perseguição a cristãos na China

Circula em mídias digitais de apoio ao Presidente Jair Bolsonaro a notícia do site Gazeta Brasil que o Partido Comunista Chinês obriga chineses a tirar imagens cristãs de suas casas. A origem do conteúdo está em uma publicação na revista eletrônica Bitter Winter, de 16 de julho de 2020, com o título: “People on Social Welfare Ordered to Worship CCP, Not God” [Pessoas em assistência social ordenadas a adorar o PCCh, não a Deus]. A partir da denúncia apresentada pelo Bitter Winter, outros veículos do Brasil também noticiaram a suposta ação chinesa, como a Rede Record, o jornal O Estado de São Paulo, o site gospel Pleno News.

No portal cristão CBN NEWS, a reportagem intitulada: “Communists Use COVID as Pretext for Persecution: Xi’s China Church Crackdown Worse Than Under Mao”, [Comunistas usam COVID como pretexto para perseguição: repressão do presidente chinês Xi Jinping à Igreja é pior do que à época de Mao], publicada no dia 29 de julho de 2020, reforça a ideia de uma possível perseguição do governo chinês aos cristãos.

Página de apoio ao presidente Jair Bolsonaro no Instagram

As matérias afirmam que chineses cristãos estariam sendo perseguidos pelo governo chinês, ameaçados de perder benefícios sociais em meio à pandemia do novo coronavírus por causa de sua fé. Ademais, imagens de Jesus Cristo estariam sendo trocadas por fotografias de Mao, reuniões religiosas sendo proibidas e haveria a orientação para que os cidadãos deixassem de adorar Deus e passassem a adorar o Partido Comunista.

A origem destas matérias no Brasil tem sido a revista eletrônica Bitter Winter, cujos textos são caracterizados por imprecisão – não indicam as fontes das informações que oferecem, o que torna difícil a comprovação, não contextualizam as situações expostas e as referências são sempre genéricas, “o governo de uma cidade…”, “um membro de uma igreja de três pessoas em uma das aldeias…”, “Um pregador de uma igreja doméstica…” Um exemplo de imprecisão também diz respeito a não menção a quais igrejas e quais cristãos estariam sendo proibidos de reunir e obrigados a entregar imagens de Jesus Cristo. Nesse último caso, deveriam ser mencionados católicos romanos ou ortodoxos, que são os grupos cristãos que tem imagens como objeto de devoção, mas esta informação é omitida nas matérias.

A tentativa de relacionar o governo chinês com perseguições religiosas não é algo novo.

Tema já foi alvo de checagens pelo Coletivo Bereia

O aumento de fake news e desinformações envolvendo a China tem sido algo recorrente. Essa constatação pode ser evidenciada por meio de diversas checagens realizadas pelo Coletivo Bereia ao longo dos últimos meses, que foram capazes de classificar conteúdos como imprecisos ou mesmo enganosos.

Em 23 de abril deste ano, o Bereia categorizou como “imprecisas” as notícias sobre a proibição de cultos online na China reproduzida pelo site Guia-me, que também se baseou em uma publicação do Bitter Winter. Nenhum dos 13 sites que publicaram a notícia apresenta o contexto da situação religiosa no país ou oferece a fonte da Lei chinesa que demonstra as medidas restritivas de transmissão on-line – o que impede o leitor de acessar e confirmar a informação.

Além disso, a matéria do Guia-me e da Bitter Wintter não evidenciam a outra perspectiva do fato, de que transmissões on-line de atividades religiosas são permitidas, desde que atendam às diretrizes exigidas pelo governo chinês, conforme relatou ao Bereia o estudante brasileiro que vive há anos na China. “Embora tenha tido bastante repercussão e mostre uma faceta da repressão religiosa na China, a notícia pode mais dificultar do que contribuir com o cenário construído ao redor do mundo entre governo chinês e igrejas.”

Já em 28 de maio, outra notícia foi categorizada como “Imprecisa” pela equipe de checagem do Bereia, que dava conta da demissão de professores cristãos na China. Isso porque, mesmo com um histórico de conflitos entre o governo chinês e igrejas cristãs, não foi possível confirmar a veracidade das informações publicadas. Como observado, as publicações da Bitter Winter não têm autoria identificável, apresentam fontes desconhecidas e apenas relatos sem comprovação possível, o que caracteriza a prática de desinformação.

A agência Bitter Winter iniciou suas atividades em maio de 2018 e declara ter seu conteúdo voltado para a liberdade religiosa e direitos humanos na China. Segundo o site, o diferencial do portal é uma rede com centenas de correspondentes na China, que normalmente fornecem fotografias e vídeos sobre os casos ali retratados. No entanto, na notícia destacada matéria do Coletivo Bereia de maio, a única fonte citadas é uma professora cuja identidade não é registrada.

No mês seguinte, mais precisamente em 12 de junho, o Bereia concluiu como “imprecisa” a publicação sobre possíveis demolições de igrejas em território chinês realizada pelo Bitter Winter. A equipe chegou a entrevistar um jovem cristão brasileiro que faz mestrado em uma universidade chinesa. O jovem, que preferiu não ser identificado, explicou: “Eu acho que esse tipo de entrevista [da Bitter Winter] ofusca o bom testemunho que realmente pode levar o governo a entender o quão importante é a igreja na hora de crise social”. Portanto, a imprecisão se manifesta uma vez o site noticioso, que não cita dados suficientes para que o leitor possa comprovar a informação, “recicla” fatos ocorridos no passado como se fossem atuais, além de enganar ao sugerir na manchete que as informações seriam de um relatório.

No podcast “Joio ou Trigo”, a jornalista do Bereia, Juliana Dias tratou deste caso e destacou que o site Bitter Winter parece ser a única e principal fonte primária de notícias da China republicadas pelos sites gospels brasileiros. “As publicações do Bitter Winter sobre perseguição religiosa na China seguem sempre o mesmo formato: não são assinadas, não possuem qualquer nome de fontes divulgado por supostas questões de segurança. As fotos que acompanham as matérias são retiradas da internet e não há nenhuma evidência além de relatos hipotéticos e declarações”, ressalta Juliana.

Em 15 de abril, Bereia identificou como “enganoso” o conteúdo publicado pelo site de notícias Conexão Política, braço político do grupo Conexão Cristão – um grupo de mídia independente de evangélicos. O texto era intitulado: “Partido Comunista Chinês avança no Brasil: empresa pública federal brasileira EBC e China Media Group firmam acordo para “troca de conteúdos”. A redação do Conexão Política registrou como fonte a notícia da Agência Brasil/EBC de 13 de novembro de 2019 intitulada “EBC e China Media Group firmam acordo para troca de conteúdos”. A partir daí, Conexão Política reproduziu como atual um fato publicado cinco meses antes, com título que alterava substancialmente a mensagem da original – negociação do governo brasileiro com o Partido Comunista Chinês e não com China Media Group – com o acréscimo de ironia, por meio do termo “troca de conteúdos” colocado entre aspas.

Tensões entre China e potências globais despontam como possível nova Guerra Fria?

A disseminação de desinformações e notícias falsas envolvendo cristãos e o governo chinês parece ser apenas uma das frentes de algo que vem sendo denominado como a Nova Guerra Fria, tendo a China e outras potências mundiais como protagonistas.

Nas últimas décadas, a emergência da China como potência mundial ampliou os laços políticos e econômicos do país com o resto do mundo. Contudo, desde a eleição de Donald Trump para Presidente dos Estados Unidos, em 2016, que adota uma retórica contrária ao governo de Pequim, percebe-se uma mudança nas relações da China com vários países.

Especialistas dizem que a Casa Branca está subindo o tom de sua campanha contra Pequim — em um momento em que Trump está em campanha pela sua reeleição. Desde o começo de 2020, China e Estados Unidos já vêm trocando farpas em relação à pandemia do novo coronavírus, que começou com um surto na cidade chinesa de Wuhan.

O jornalista Kennedy Alencar, em sua coluna afirma que o presidente Trump acirra uma nova Guerra Fria, agora com o China, para tentar se eleger. Trump estaria criando, na avaliação de Alencar, teorias conspiratórias para esconder sua má gestão diante da pandemia. Trump tem declarado que o coronavírus seria um vírus chinês e Pequim teria deixado – de propósito – o vírus se espalhar por todo o mundo. Mesmo que essas declarações não tenham sustentação, o presidente estadunidense busca uma ressonância nos setores mais conservadores da sociedade estadunidense. O presidente Donald Trump chegou a fechar uma embaixada chinesa no Texas, enquanto o governo chinês fechou um consulado americano em seu país. A China, na avaliação de Kennedy Alencar, tem interesse na reeleição de Trump, pois esse, por conta das suas ações e posturas, isolaria cada vez os EUA no cenário global. E, por isso, evita rechaçar de forma mais direta as declarações e ataques de Donald Trump.

Em março, o governo dos Estados Unidos já acusava Pequim de esconder seus números sobre o coronavírus, insinuando que o governo chinês ocultava o número real de casos e mortes.

Em maio, Trump partiu para o ataque contra a Organização Mundial da Saúde (OMS), que, nas palavras dele, é um “fantoche do regime chinês” por nunca exigir informações confiáveis sobre a pandemia junto aos chineses.

No mesmo mês, relata Kennedy de Alencar, Trump disse a um repórter que tinha informações de que o coronavírus havia sido criado dentro do Instituto de Virologia de Wuhan, um boato que circulava naquela época. Alguns diziam que o vírus seria uma arma biológica. No mesmo dia, agências de inteligência dos Estados Unidos descartaram a versão dada pelo presidente, dizendo que o coronavírus surgiu na natureza, e que não foi manufaturado em um laboratório.

Matéria do G1, de 21 de julho, trouxe a informação de que o FBI acusou dois hackers chineses de tentar roubar dados de laboratórios americanos que pesquisam vacinas, tratamentos e testes para covid-19. A China rebateu as acusações dizendo que são os chineses — e não os estadunidenses — que estão liderando na frente científica contra o vírus. Naqueles dias, os dois hackers foram indiciados nos Estados Unidos.

O presidente chinês Xi Jinping sempre rebateu as acusações estadunidenses, dizendo que seu governo age com transparência sobre a covid-19. Ele também prometeu um pacote de 2 bilhões de dólares para ajudar diversos países ao longo dos próximos dois anos e disse que qualquer vacina que venha a ser criada pela China será compartilhada com o resto do mundo.

A escalada de tensões entre Washington e Pequim coincide com um movimento da China de tentar projetar sua liderança global, e que enfrenta forte resistência por parte do Ocidente, sobretudo dos Estados Unidos e de seus aliados mais próximos.

Essas disputas entre Estados Unidos e China têm repercussões em outros países. Países aliados como o Reino Unido anunciaram sanções e boicotes à China.

No Brasil, políticos e ministros admiradores de Donald Trump, como o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, publicaram mensagens críticas sobre a China em relação ao coronavírus, causando desconforto diplomático. Em março, o presidente Jair Bolsonaro chegou a telefonar para o líder chinês, Xi Jinping, para amenizar as tensões.

Postagem do deputado Eduardo Bolsonaro no Twitter

Recentemente, em 29 de julho, o embaixador dos EUA Todd Chapman, em entrevista para o jornal O Globo, ameaçou o governo brasileiro explicitamente, dizendo que Brasil ‘terá consequências’ se permitir a tecnologia chinesa Huawei no 5G.

Jair Bolsonaro e Todd Chapman. Foto: Divulgação/Planalto

A declaração é mais um sinal do endurecimento das disputas comerciais entre Estados Unidos e China. No caso do 5G, a Huawei é acusada pelos estadunidenses de se aproveitar do papel de intermediário na produção de equipamentos de rede para roubar dados sigilosos e fornecê-los ao governo chinês, o que a companhia nega fazer.

Quando questionado sobre se os Estados Unidos planejam represálias caso o Brasil decida manter a Huawei entre as empresas que podem participar da implementação do 5G no país, Chapman rejeita o termo, mas afirma que, sim, haverá consequências.

“As consequências que vemos no mundo é que há um receito de empresas que estão baseadas na propriedade intelectual de fazer investimentos em países onde essa propriedade intelectual não seja protegida”, diz o embaixador ao jornal O Globo. Ele defende que a primeira consequência é a falta de segurança da informação, mas aponta que investidores podem ficar receosos em apostar no Brasil. “Ao fazer um investimento, você tem que decidir para onde vai. Quem investe em farmacêuticos, software, olham isso. (…) A maior exportação dos EUA é inteligência, propriedade intelectual. Temos que proteger nossa propriedade intelectual”.

Na prática, ele afirma que o Brasil pode deixar de receber investimentos de empresas dos Estados Unidos se o país utilizar equipamentos da Huawei no 5G. Ele também afirma que outros países estão deixando de lado a Huawei, como França e Reino Unido, e que é melhor fazer isso o quanto antes, já que o custo da troca de equipamentos pode ser alto.

A questão não é tão simples assim. Apesar da ameaça indireta do embaixador dos Estados Unidos e o alinhamento recente do governo brasileiro ao americano, a China ainda é o maior destino de exportações brasileiras, então excluir a Huawei do 5G por questões políticas também pode gerar consequências do outro lado.

Pelas declarações do vice-presidente Hamilton Mourão, o Brasil, neste momento, não está disposto a excluir a Huawei do leilão do 5G. Em 15 de julho de 2020, ele ressaltou que é “difícil” excluir a gigante chinesa, que já atua no país há mais de uma década e tem participação importante no 4G, cuja infraestrutura será em grande parte reaproveitada para implementação do 5G. Ele também admitiu que há pressão política externa para que essa exclusão aconteça.

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As matérias da Gazeta Brasil, da Rede Record, do jornal O Estado de São Paulo e Pleno News, reproduzidas em mídias sociais de apoio ao governo Bolsonaro, embasadas em publicação do Bitter Winter, sobre cristãos chineses estarem sendo coagidos pelo governo local a retirarem imagens cristãs de suas casas, caracterizam desinformação porque são imprecisas. O conteúdo não traz a contextualização e apuração necessárias para creditar a veracidade do fato. Não há citação de fontes oficiais, de quais cristãos, de quais igreja, que efetivamente tenham sido ameaçados ou de quaisquer outros personagens envolvidos nesse suposto cenário.

Um outro aspecto desinformativo é que o único veículo a indicar o link para a matéria original do Bitter Winter é a Gazeta Brasil e, ainda assim, Bereia veiculou que o site de notícias remete para outro texto que não tem relação com o que está noticiando, o que foi corrigido pelo Bereia na abertura desta matéria.

As restrições à liberdade religiosa são realidade na China, como o Coletivo Bereia já registrou em outras matérias, mas não há proibição à prática das igrejas cristãs. Bereia verificou nos websites do Conselho Cristão da China (de igrejas protestantes) e da Igreja Católica na República Popular da China que as igrejas têm atuado em solidariedade com a população daquele país frente à pandemia de coronavírus e às inundações que atingiram a região em julho.

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Referências de checagem

Bitter Winter. Acesso em 04 ago 2020

CBN News. Acesso em 04 ago 2020.

Gazeta Brasil. Acesso em 04 ago 2020

Portal R7. Acesso em 04 ago 2020

O Estado de São Paulo. Acesso em 04 ago 2020

Pleno News. Acesso em 04 ago 2020.

UOL [Kennedy Alencar]. Acesso em 04 ago 2020

UOL. Acesso em 04 ago 2020

O Globo. Acesso em 04 ago 2020

G1. Acesso em 04 ago 2020

G1. Acesso em 04 ago 2020