Cristãos e cristãs brasileiros têm sido desafiados, dia após dia, a um exercício permanente de compreensão da realidade e interpretação dos sinais de vida e morte que nos cercam.
Vivemos tempos em que, animados por um governo claramente identificado com ideias e ideais antidemocráticos e que denega mesmo os notáveis avanços da “Constituição Cidadã” de 1988, muitos dos “nossos” irmãos e irmãs cristãos questionam e reprovam a decisão de se dar autonomia a Estados e Municípios para legislar sobre o funcionamento de templos e demais locais de culto. A decisão foi claramente embasada pelas características específicas dos templos, entendidos como locais potencialmente propensos à contaminação em grande escala (por exemplo, uma igreja na Coréia do Sul foi o principal polo dispersor do vírus). Justamente neste contexto, vemos aumentar a disparidade de compreensões entre o que seriam posicionamentos “verdadeiramente cristãos”.
É dentro desse imenso mostruário de desinformação que se insere a fala do conhecido deputado federal pastor Marco Feliciano (Republicanos/SP). Ele afirmou, em postagem em mídias sociais, que a ditadura não fechou igrejas, indicando nas entrelinhas que atualmente estaria havendo uma perseguição velada às igrejas evangélicas.
Qualquer compreensão de nosso tempo, no entanto, passa necessariamente pela leitura de nosso passado recente e pela forma como igrejas e cristãos se relacionaram com os governos autoritários. Estes são lembrados mesmo após haverem infligido males terríveis a pessoas e instituições, incluindo aí igrejas e cristãos comprometidos com uma sociedade justa e livre, fiéis seguidores dos ensinamentos de Cristo.
Foram identificados 352 cristãs e cristãos que sofreram violência durante a ditadura;
Destes, 273 eram católicas ou católicos e foram presos, entre bispos, padres, religiosos, agentes de pastoral e pessoas leigas da igreja;
Dentre os católicos, 18 foram assassinados ou foram desaparecidos pelo regime (quatro padres, três religiosos e religiosas), 17 foram banidos, expulsos ou exilados, todos depois de prisão e tortura;
O bispo D. Adriano Hipólito (da Diocese de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro) foi sequestrado e humilhado, bem como a Catedral de São Pedro, sob sua jurisdição, foi atacada em um atentado;
27 evangélicos foram presos, quase todos com torturas aplicadas (metodistas, presbiterianos, um assembleiano e uma luterana, sendo alguns pastores e estudantes de teologia);
Dentre os evangélicos e evangélicas, sete foram mortos ou permanecem desaparecidos, após quase 50 anos, e 15 foram banidos, expulsos ou exilados, quase todos depois de prisão e tortura;
Duas faculdades de Teologia foram fechadas com professores demitidos e alunos expulsos (a Batista do Norte, em Recife, e a Metodista, em São Bernardo do Campo).
Como se vê, houve ataque indiscriminado a religiosos, boa parte deles delatados por lideranças de suas igrejas, em decorrência de sua maneira de professar a fé em Cristo.
E também ocorreu forte perseguição a igrejas e instituições, pois qualquer manifestação de oposição à situação de censura, perseguição e ausência de democracia instalada no Brasil com o golpe de 1964 e aprofundada com a instauração do AI-5, em dezembro de 1968, passou a justificar perseguições, torturas e assassinatos. Numa alegoria, não seria difícil imaginar o Jesus contestador, que nos inspira e guia, sendo conduzido aos porões da Operação Bandeirantes ou ao DOI-CODI.
Há relatos de membros da Igreja Presbiteriana Unida de Vitória, das Igrejas Presbiterianas do Brasil de Ipanema e de Acari, na Cidade do Rio de Janeiro, que esclarecem que, sim, estas igrejas foram fechadas pela ditadura militar brasileira.
E tão importantes quanto os ataques desferidos a templos e instituições, locais de formação e comunhão daqueles que, comprometidos com sua fé, acreditavam que a tortura, a censura e as demais formas de opressão não estavam em acordo com os ensinamentos de Jesus, foi a perseguição, morte e tortura destes mesmos cristãos. “Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos?” (1 Coríntios 6.19).
Mais do que nunca, somos chamados à reflexão para, à luz dos ensinamentos de Jesus, nos posicionarmos a favor da vida, ainda que isso nos custe o sacrifício de, por determinado tempo, não nos confraternizarmos presencialmente com nossos irmãos e irmãs queridos. Vivemos um momento em que medidas como essa são necessárias para a garantia da saúde e bem-estar de todos. Que o nosso Deus da vida e da saúde nos abençoe e guarde com seu Santo Espírito!
Tão logo aprendi a decifrar algumas palavras, fiquei viciado em leitura. Filho de professores, fazia a festa com livros de vários tipos e, claro, pilhas enormes de gibis. ✝️ Renato Ouverney ✝️ Rosani Escobar ✝️ Derni Escobar
Sempre que chegava o jornal mensal da igreja, chamava minha mãe e juntos líamos o necrológio. As fotos eram a primeira coisa que nos chamava a atenção. Emocionada, dona Edna fazia comentários curtos e contritos: “Tão jovem”, “Pena da família”, “Muito triste”… ✝️ Sebastião Misael de Vasconcelos ✝️ Odonel Cesário de Oliveira ✝️ Izidoro Leles dos Santos
Março de 2020. O mundo iniciou a contabilização das primeiras vítimas do coronavírus. Na América, líderes dos Estados Unidos, México e Brasil menosprezaram a pandemia incipiente. Protagonizavam um pastiche insano do quadro “Bonaparte visitando as vítimas da peste de Jafa”, distribuindo apertos de mãos e frases escarnecedoras. ✝️ João Batista Oliveira ✝️ Agamenon Messias Novaes ✝️ Jean Madeira
Exasperado ao ver diariamente a ciência sendo substituída pelo negacionismo, iniciei uma série de posts mostrando o rosto das vítimas de covid-19. Lembrando a frase de Stálin, “uma única morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística”. ✝️ José Carlos Simões ✝️ Benedito Silva ✝️ Vaval
Cada relato lido despedaçava meu coração. Molhei o teclado várias vezes. Muitos leitores compartilhavam os posts, tecendo uma rede de lamento e de tristeza. ✝️ Sivaldo Tavares ✝️ Marcos Tosta ✝️ Valdomiro Rosa
Confirmando os piores vaticínios, a doença deixou de ser algo distante e começou a chegar aos nossos círculos próximos. Pressionados, políticos de todas as esferas adotaram medidas tipo sanfona. O som produzido foi desafinado e catastrófico. O total de mortes só aumentava. ✝️ Gabriel Gonçalves ✝️ Manoel Gomes ✝️ Salatiel Silvestre
A essa altura, o grupo negacionista já se havia transmutado em nau dos insensíveis e a galera da ciência em Joões Batista clamando no deserto verde-amarelo. Pra completar o cenário distópico, um número cada vez maior de pastores aparecia nos obituários. ✝️ Werbston Gomes ✝️ Mauricio de Souza Reis ✝️ Aécio Alves
Passei a receber dos leitores notícias da morte de líderes em todo o país. Pessoas simples e doutas. Jovens e experientes no ministério. Negacionistas e conscientes. O aguilhão mortal do coronavírus não poupa ninguém. ✝️ João Maria Valentim ✝️ Isa Prando ✝️ Ângelo André Tristão
Iniciei a postagem de fotos e relatos breves sobre pastores cuja vida foi ceifada pela doença. Sempre omiti a eventual postura de negação da doença, embora isso provavelmente tenha contribuído para a falta de cuidado nas medidas preventivas. ✝️ Márcio Oliveira ✝️ Osmar Zizemer ✝️ Gelson Sardinha
O sofrimento das famílias sempre falou mais alto. Poderia eu pespegar um rótulo naquele homem feliz segurando o netinho nos braços? E aquele ancião ajoelhado no púlpito? O líder emocionado no tanque de batismo foi muito maior que seus erros fortuitos. Ninguém pode ser eternizado pelos seus piores momentos. Todos somos carentes da graça infinita do Eterno. ✝️ Antônio Lins ✝️ Pedro Araújo ✝️ Alexandre Mariano
Enquanto escrevo estes parágrafos curtos, o Brasil responde sozinho por cerca de 30% de todas as mortes por covid no mundo. Temos apenas 3% da população global. Somos o atual epicentro da pandemia. Aludindo ao texto pungente de São João da Cruz, estamos vivenciando a “Noite Escura da Alma”. ✝️ Samuel Leonardo ✝️Gilmar Dias Carneiro ✝️ Darly Inacio Nunes
Professores recomendam que um texto tenha introdução, desenvolvimento e conclusão. O que escrever quando não há vacinas em quantidade suficiente e a única conclusão possível é que não precisava ter sido assim? “Ah, se vocês soubessem em que escuridão estamos mergulhados”, diria Santa Teresa de Lisieux. ✝️ Francisco Rodson dos Santos Souza ✝️ Cícero Ferreira de Lima ✝️ Ângela Gouveia de Lima
Não há despedida. Não há o cântico de hinos que falam sobre o céu. Não há abraços. Não há flores. Não há carinhos embebidos em lágrimas. Não há expressões de consolo. Não há homenagens. Protocolos rígidos confinam espectadores ao longe, ampliando a agonia excruciante. Participaram de momentos felizes e tristes de muitas pessoas, celebrando batizados, casamentos e funerais. No último adeus, o corpo físico jaz em completa solidão. ✝️ Lázaro Alves Ferreira ✝️ Manoel Gomes de Souza ✝️ Paulo Fernando Ferreira da Cruz
Notificação de nova mensagem. Outro casal de pastores faleceu com poucas horas de diferença. Já esgotei todas as expressões que vi minha mãe usar. Na Semana Santa, mitiga a aflição recordar que a morte não tem a palavra final. Antes de outro post, minha prece clamando ao Doador da vida que ressuscite em nós a empatia, a compaixão e o amor. ✝️ Adão Crissanto de Lima ✝️ Sérgio Mendes Ferreira ✝️ Carlos Dutra
Nota
O Coletivo Bereia se solidariza com familiares e com as igrejas dos pastores e das pastoras mortas pela pandemia de covid-19 no Brasil, tanto os/as citados neste belo texto de Sérgio Pavarini, quanto aqueles/as dos quais não há conhecimento público. Nesta Páscoa, o Bereia empenha toda sua esperança na superação deste drama que vive o País e se empenha em continuar produzindo informação comprometida com a vida e a saúde pública.
O site de notícias Gospel Prime publicou, no último 9 de fevereiro,matéria que afirma que o Centro Médico de Ichilov, em Tel-Aviv, Israel, anunciou um medicamento capaz de curar 100% dos doentes da covid-19. A publicação dá conta de que a droga EXO-CD24 passou com sucesso pela fase 1 de testes clínicos. 29 dos 30 pacientes em condições moderadas e graves receberam o medicamento e tiveram alta em até cinco dias, enquanto outro também se recuperou em um período de tempo maior. Apesar de sugerir uma boa notícia, a matéria é imprecisa quanto à eficácia do medicamento, que ainda precisa de mais testes clínicos para ser comprovada.
Como funciona o EXO-CD24
O jornal local The Times of Israel explica que o medicamento combate a tempestade de citosina, uma resposta imune à infecção de coronavírus que se acredita ser responsável por várias das mortes associadas à covid-19. Para conter essa reação, o remédio faz com que exossomos (transportadores de materiais entre células) para entregar aos pulmões a proteína CD24 – alvo de pesquisa do professor Nadir Arber.
“Esta proteína está localizada na superfície das células e tem um papel bem conhecido e importante na regulação do sistema imunológico”, disse ao jornal a pesquisadora Shiran Shapira, do laboratório de Arber. Assim, a CD24 ajuda a acalmar a tempestade de citosina e conter a tempestade.
O sucesso inicial dos testes do EXO-CD24 repercutiu no país. Na semana seguinte ao anúncio, o professor Arber se encontrou com o Primeiro Ministro israelense Benjamin Netanyahu para tratar do desenvolvimento da droga, informou o The Times of Israel. O cientista explicou que ainda é preciso avançar na fase 2 de testes para ter um retrato mais confiável da eficácia do medicamento e que o remédio não estará disponível sem testes cuidadosos acerca de sua segurança. O doutor também afirmou que o EXO-CD24 pode dar esperança em lugares que não têm vacinas disponíveis. “Podemos produzir este medicamento de forma eficaz, eficiente e barata, então isso pode ser uma solução parcial para países que atualmente não podem pagar uma vacinação”.
Fases de testes para medicamentos
O que o site Gospel Prime não informa e um dos próprios líderes da pesquisa afirma, o EXO-CD24 precisa de mais testes e não vai contra a vacina, mas é uma solução parcial em sua ausência. Não há ainda um estudo com ensaio clínico sobre o remédio e nem publicação em revista científica com revisão de outros cientistas. O próximo passo para a avaliação do medicamento é a fase dois.
De acordo com o Centro de Pesquisa Clínica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, um medicamento passa por quatro fases de testes. A primeira trata-se dos primeiros estudos sobre segurança – pelo qual acabou de passar o EXO-CD24. Na fase dois, aumenta-se o número de indivíduos participantes da pesquisa para 100 a 300, em que diferentes dosagens são avaliadas.
A seguir, a terceira fase tem a participação de milhares de pessoas, em que o possível novo medicamento é comparado com tratamentos já existentes. É nessa fase que são aplicados placebos e obtém-se dados para rótulos e bulas de medicamentos. A análise desses dados que levam a aprovação do uso do medicamento por autoridades sanitária, como a ANVISA, no caso do Brasil. Por fim, a quarta fase, conhecida como Farmacovigilância, acontece com o remédio no mercado e procura detalhes adicionais sobre segurança e eficácia, definir efeitos colaterais ainda desconhecidos ou fatores de risco relacionados.
Após a projeção do estudo preliminar, o presidente Jair Bolsonaro anunciou em seu Twitter, em 12 de fevereiro que o Brasil pode participar da terceira fase de testes do EXO-CD24.
Com esta ênfase, o governo federal mantém sua política de exaltação de feitos do governo de Israel, descartando, porém, destaque à eficaz política de vacinação daquele país.
Vacinação em Israel
Israel é o país mais avançado na vacinação contra a covid-19 no mundo, tendo vacinado 523 mil pessoas desde 19 de dezembro, segundo o órgão de saúde local, sendo essa a principal estratégia do governo para contenção do coronavírus. Dentre as pessoas vacinadas, apenas 544 foram infectadas pelo coronavírus, 4 em estado grave, e nenhuma morreu.
O Primeiro Ministro de Israel Benjamin Netanyahu afirmou em entrevista que o ceticismo sobre a vacina é notícia falsa. “Somos uma nação de vacinação. Temos vacinas para todos os cidadãos, para todos (…) Se você for se vacinar, estará salvando sua vida”, afirmou.
Outros conteúdos falsos sobre Israel em mídias do Brasil
Essa não é a primeira vez que Israel entra no radar da desinformação sobre a pandemia do novo coronavírus no Brasil. Em março de 2020, Bereia verificou que não é verdade que o país teria descoberto a cura para a covid-19. Também é falso que o governo israelense teria recomendado aos seus cidadãos um gargarejo para matar o vírus, conforme Bereia verificou em dezembro.
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O Coletivo Bereia avalia que a matéria do Gospel Prime a respeito do EXO-CD24 é imprecisa O conteúdo afirma que o remédio ainda está na fase 1 de testes, mas não diz quais são as fases seguintes necessárias para que o medicamento seja aprovado. Além disso, a manchete “Israel anuncia medicamento capaz de curar 100% os doentes da covid-19” desinforma pois dá a entender que o EXO-CD24 já tem a eficácia comprovada, quando isso ainda será determinado pelas próximas fases de testes clínico.
O senador evangélico batista Arolde de Oliveira (DEM/RJ), proprietário do Grupo MK de Comunicação, publicou em seu perfil no Twitter, em 11 de agosto, informação falsa que procura negar a marca das mais de 100 mil mortes por coronavírus no Brasil.
O senador compara o número de óbitos no país de abril a julho de 2019, 437.433, com o número de óbitos no mesmo período em 2020, 491.336. Segundo ele, há um aumento de 53.903 mortes, o que não chegaria aos 100 mil. Ele diz que os inimigos do Brasil “comemoram” este número irreal de mortes, pelo que chama de “vírus chinês”, e estes deverão responder por crime de corrupção e de homicídio.
Estatísticas falsas e enganosas
Arolde de Oliveira se uniu a uma articulação que ocorre em mídias digitais, desde o início da pandemia, para negar os altos números de contaminados e mortos no Brasil, e retornou com força após anunciada a marca de 100 mil óbitos.
Em 2 de agosto, a jornalista e colunista do jornal Gazeta do Povo Cristina Graeml, publicou um vídeo intitulado “O pico da pandemia no Brasil”. Durante o vídeo, ela consulta o site do Registro Civil no Portal da Transparência, e afirma que os dados dos cartórios são inquestionáveis, pois a família precisa do atestado de óbito para o enterro ou cremação.
Segundo a jornalista, a maior incidência diária de morte por coronavírus teria sido em maio, especificamente no dia 25, quando foram registradas 997 mortes. Depois desse período, Cristina Graeml afirma que os números começaram a cair. Ela indica que entre junho e julho o número oscilou entre 700 e 900 óbitos.
A jornalista nota que, em 25 de julho, a queda começou a ser mais acentuada, com variação entre 600 e 400 registros. No dia 29 de julho foram alcançadas 304 mortes por dia. Ela diz não saber explicar o mistério sobre a diferença dos dados do Ministério da Saúde e dos cartórios. Ela ainda cita o levantamento feito pelo Registro Civil de óbitos por outras doenças, tais como AVC, infarto e insuficiências respiratórias, que teriam caído no primeiro semestre de 2020, em comparação com o primeiro semestre de 2019.
Ainda segundo o levantamento da jornalista, de março até julho de 2019, 90.52 pessoas morreram de pneumonia no Brasil (número similar às mortes registradas por covid-19). Nesse ano, no mesmo período, morreram 61 pessoas de pneumonia, 30% a menos do no ano anterior. Na opinião de Cristina Graeml, a diferença se dá porque essas 30 mil pessoas teriam contraído o coronavírus também, sendo esta considerada a causa da morte. Ao final, ela pergunta se os leitores preferem acreditar nos cartórios ou nos dados das secretarias estaduais e municipais de saúde. O vídeo tem 46 mil curtidas e 8,5 mil comentários. O vídeo circulou na semana que antecedeu o marco de 100 mil mortes por covid-19 no Brasil, 08 de agosto.
Em maio, período em a jornalista afirma ter sido o pico da pandemia, já havia circulado pelo WhatsApp uma informação de que os cartórios desmentem o número de óbitos das Secretarias de Saúde. O conteúdo foi verificado pela Agência Lupa, que concluiu ser falso. Mesmo assim, em agosto essa informação volta a circular em campanha de contestação do marco das 100 mil mortes.
Número oficial de óbitos
A publicação do senador Arolde de Oliveira não apresenta um elemento muito importante quando se tem a intenção de transmitir informação: a fonte. Ele não diz de onde provêm os números dos quais faz uso para negar a marca de mais de 100 mil mortes por coronavírus.
Ao que os números indicam, o senador pode ter feito uso dos números do Registro Civil no Portal da Transparência (plataforma que torna disponíveis os dados de registros de nascimentos, casamentos e óbitos dos cartórios brasileiros por ano, mês, região e estado). Mesma fonte do vídeo da jornalista Cristina Graeml.
O Coletivo Bereia consultou a plataforma em 13 de agosto e os números dos meses indicados pelo senador são:
Registros de óbitos no Brasil
Mortes registradas em cartório em cada mês (abril a julho)
Número de óbitos 2019
Número de óbitos 2020
Abril
103.684
112.469
Maio
110.904
129.448
Junho
103.484
128.918
Julho
119.628
121.841
Total
437.700
492.676
Diferença entre 2020 e 2019
————–
54.976
Fonte: Registro Civil • Dados obtidos em 13 de agosto de 2020, às 17h40.
É importante registrar que os dados oferecidos portal são oficiais e confiáveis, mas não são definitivos. No site há o esclarecimento de a família tem até 24 horas após um falecimento para registrar o óbito em cartório. Este, por sua vez, tem cinco dias para efetuar o registro do óbito e, ainda, mais oito dias para enviar a informação à Central Nacional de Informações do Registro Civil (CRC Nacional), que atualiza a base de dados. Esse processo, porém, pode demorar mais tempo, já que residentes de municípios com menos estrutura têm um prazo de até três meses para fazer o registro.
Nesse sentido, os dados são atualizados diariamente e ainda não estão consolidados. Um exemplo desta dinâmica, em que a plataforma constantemente altera os números, é a diferença dos que o senador Arolde de Oliveira utiliza em 11 de agosto e os que o Coletivo Bereia coletou, em 13 de agosto: 54.976 mortes a mais em 2020, em comparação com 2019. Houve um aumento em relação aos números utilizados pelo senador da Bancada Evangélica. Uma resposta simples, que consta no próprio Portal da Transparência, para o que a jornalista Cristina Graeml diz não saber explicar.
Segundo o projeto de verificação de notícias Aos Fatos, em matéria sobre o mesmo tema, no mês de maio, quando já circulava esta desinformação, mesmo desconsiderando os dados das duas semanas anteriores, a comparação também não deve ser feita, pois números antigos também são atualizados na plataforma. A informação vem de Marcelo Soares, jornalista e fundador da Lagom Data, consultoria de inteligência de dados. “Todo dia são incluídos muitos óbitos da última semana, vários óbitos do último mês e alguns óbitos de meses anteriores. Todo dia têm entrado óbitos de 2019 e dos primeiros meses de 2020”, afirmou Marcelo Soares.
Além disso, a postagem de Arolde de Oliveira omite que o próprio Registro Civil, ainda que em processos de atualização, apresentava, no dia 11 de agosto (dia da publicação do senador no Twitter) o número oficial de 95.250 óbitos registrados decorrentes da Covid-19. O número se aproxima do que foi oficialmente divulgado pelo Ministério da Saúde no mesmo dia 11 de agosto: 103.026. A mesma omissão é feita pela jornalista Cristina Graeml.
O senador Arolde de Oliveira e a jornalista da Gazeta do Povo se unem a grupos e indivíduos que atuam para negar a gravidade da pandemia no país, fazendo uso de manipulação de números oficiais. Nos últimos dias, depois que o Brasil bateu a marca de 100 mil mortos, houve intensificação destas postagens em mídias sociais. Esta prática de apoiadores e até de membros do governo federal vem ocorrendo durante todo o período da pandemia e já foi tratada pelo Coletivo Bereia.
O Brasil ultrapassou a marca de 105 mil mortos por Covid-19 na segunda semana de agosto e o número pode ser ainda maior, uma vez que a confirmação da causa dos óbitos demora muitos dias e há o problema da subnotificação. A própria agência de notícias do governo, a Agência Brasil, já noticiou sobre isto.
Incitação ao ódio e à xenofobia
Além de desinformativa, a postagem do senador evangélico ainda afirma que há pessoas, inimigas do Brasil, “comemorando” a tragédia de 100 mil mortos, sem indicar a quem se refere. O Coletivo Bereia pesquisou manifestações em mídias sociais de diferentes lideranças políticas, dentro e fora do Brasil, e não localizou qualquer tipo de celebração relativa ao número de mortes por Covid-19 ter alcançado taxa tão alta. Pelo contrário, foram verificadas diferentes expressões de pesar em nível individual e coletivo. Entre religiosos, inclusive, há a campanha Lamento 100 mil, assunto de matéria do Bereia. Este tipo de discurso a que o senador se dedica é fonte de incitação de ódio a quaisquer pessoas que fazem oposição ao governo federal
O senador ainda omite a expressão oficial para se referir à pandemia, coronavírus ou Covid-19, e escolhe o termo “vírus chinês”, reforçando a expressão difundida pelo presidente dos Estados Unidos Donald Trump a partir de março e já utilizada, publicamente, no Brasil pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro, sob muitas críticas. Utilizar a expressão “vírus chinês” pode ser um ato de apoio aos Estados Unidos na guerra comercial deste com a China, apesar de o país asiático ser, atualmente, o maior parceiro do Brasil neste campo. Pode ser, ainda, uma expressão de xenofobia, de racismo contra asiáticos, o que também já foi expresso por uma figura pública, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub e tornou-se motivo de inquérito no Supremo Tribunal Federal. Lian Tai, filha de chineses que vieram para o Brasil ainda crianças, trata sobre o tema da xenofobia contra a China em artigo.
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O Coletivo Bereia classifica a postagem do senador Arolde de Oliveira e o vídeo da jornalista Cristina Graeml como falsos, pois manipulam números oficiais de cartórios para confundir e fazer seguidores/as desacreditarem da gravidade da covid-19 refletida nos próprios números do Ministério da Saúde que não podem ser ocultados. Bereia alerta ainda leitores e leitoras para os males sociais de conteúdos em mídias que incitam o ódio e a xenofobia.