“Ideologia de gênero”: estratégia discursiva e arma política
Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Teresinha Ferreira Leite Matos
A “ideologia de gênero” é um inimigo criado pelo Vaticano? A “ideologia de gênero” é uma invenção? Ela deve ser objeto de análise mais aprofundada? A partir da pergunta “Qual o lugar da “ideologia de gênero” no cenário (neo) conservador?” foram suscitadas, durante o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina, essas e outras perguntas. O objetivo deste texto é localizar onde e quando o termo surgiu e que trajetórias foram traçadas em seu processo de disseminação.
“Ideologia de gênero” é uma “invenção” da Igreja Católica e faz parte da estratégia de negar os avanços dos movimentos feministas e LGBTQ+, explicitados no reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos e casamento igualitário. Parece que a “ideologia de gênero” se tornou um fenômeno em si e carece ser estudada mais profundamente. O constructo se traduz em estratégia discursiva considerada precária epistemologicamente, mas eficaz na formação da opinião pública (Lionço, 2020), e também com eficácia política, vide o presidente Jair Bolsonaro que foi eleito em 2018 usando, dentre outras bandeiras ultraconservadoras, o combate à “ideologia de gênero”.
A “ideologia de gênero” é vista como categoria conservadora produzida nos muros do Vaticano, durante os papados de João Paulo II e Bento XVI. Inventaram um “inimigo” com o propósito de restaurar a ordem moral calcada nos valores tradicionais, que imaginam ameaçada. Embora os conceitos por trás da ideia de “ideologia de gênero” sigam importantes no papado de Francisco, a maneira como suas falas reverberam na opinião pública traz complexidades para a análise.
O Padre Paulo Ricardo, considerado, segundo as pesquisas do GREPO, um mediador cultural para o tema que ajuda a disseminar o termo no Brasil, quando analisa a questão nunca cita o Papa Francisco, reforçando a personalidade ambígua do papa atual que se nega a abençoar os casais homossexuais, mas é reconhecido como progressista por boa parte da sociedade brasileira.
Os documentos da Igreja Católica do papado de Francisco não utilizam o termo “ideologia de gênero” em português, como aponta levantamento feito na pesquisa “Feminismo e religião: uma análise do pensamento do Papa Francisco sobre a “ideologia de gênero”, objeto do seminário. Curiosamente são referenciados apenas no inglês termos gender ou gender theory. Mas nas redes sociais e blogs, católicos conservadores e padres – além dos políticos e a mídia em geral – falam amplamente dessa “ideologia de gênero”. Nos 25 vídeos produzidos pelo canal do YouTube do Padre Paulo Ricardo (Christo Nihil Praeponere), analisados na pesquisa, entre 2012 e 2020, 15 registram o descritor “ideologia de gênero”.
Desde a década de 1990, a Igreja Católica começou a atuar fortemente por meio das suas lideranças leigas conservadoras em conferências internacionais para que o termo gênero fosse retirado dos documentos oficiais da ONU. Dale O´Leary, ativista católica norte-americana, iniciou essa “guerra” semântica com sua obra “Gender Agenda”, lida e reproduzida por ativistas antigênero no mundo todo. Essa atuação antigênero, também abraçada pelos evangélicos neopentecostais, foi tomando corpo nos países do Norte e nas primeiras décadas do século XXI em países do Sul Global, especialmente na América Latina. Ela chega ao grande público por meio das redes sociais pelas palavras e vozes de padres, pastores e políticos ultraconservadores. Os pastores a “emprestaram” dos católicos e hoje estão entre os principais articuladores do termo na arena pública.
No Brasil, a campanha antigênero ganhou relevância em 2014 e foi impulsionada pelas discussões do Plano Nacional de Educação. Ele foi debatido na Câmara Federal e, depois, em estados e municípios brasileiros. Essa “cruzada santa” continua hoje nos legislativos municipais. Vereadores eleitos em 2020 com a bandeira das campanhas antigênero ameaçam fechar escolas que usem o pronome neutro com pessoas não-binárias. Onze dos 63 vereadores apoiados por Bolsonaro fizeram propostas contra a linguagem inclusiva (0 Globo, março de 2021).
Dessa forma, podemos começar a responder a algumas das perguntas colocadas no início do texto. Sim, a “ideologia de gênero” é uma invenção do Vaticano, um conceito elaborado para taxar de “ideológico” as teorias de gênero e a defesa de direitos. É um conceito também eficaz, que passou a fazer parte do vocabulário e das estratégias de diferentes setores conservadores, como padres e leigos católicos, evangélicos e políticos. O aprofundamento da análise do termo, assim, pode ajudar a entender as estratégias do campo conservador nos países da América Latina.
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Referências
Caetano, Guilherme. “Vereadores eleitos alinhados ao presidente priorizam ‘ideologia de gênero’ nas câmaras municipais. Com foco no combate à pandemia, projetos não avançam”. O Globo, 28/03/2021. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/vereadores-eleitos-alinhados-ao-presidente-priorizamideologia-de-genero-nas-camaras-municipais-24944513
Lionço, Tatiana (2020). “’Ideologia de Gênero’ como elemento da retórica conspiratória do ‘globalismo’”. Em: Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp, pp. 373-392.
Seminário Internacional “Catolicismos, direitas cristas e “ideologia de gênero”, março/abril de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m0fG3Wbh1Dk&t=2831s e https://www.youtube.com/watch?v=FSz17pFHgik&t=2495s
Vaggione, Juan Marco; Machado, Maria das Dores. “Religious Patterns of Neoconservatism in Latin America”. POLITICS & GENDER 16(1) 2020.
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Teresinha Ferreira Leite Matos, jornalista, mestra em Ciência da Religião pela PUC/SP e integrante do Grepo.
O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03 e 01/04/2021, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a terceira de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LARUNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).
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Foto de Capa: Folha PE. Foto: Jarbas Araújo/Alesp (Reprodução)