Conflito armado Israel x Palestina: Brasil na berlinda da desinformação – Parte 2

* Matéria atualizada em 18/04/2024 às 17:52 e 07/06/2024 para ajustes de texto

O conflito na Faixa de Gaza chegou ao sexto mês. Desde o ataque do Hamas a Israel, em 7 de outubro, o governo israelense revidou com, o que o governo do Brasil considera, um massacre da população palestina. Bereia publicou em 19 de março a primeira parte desta reportagem, na qual abordou a corrente de desinformação que surgiu a partir da fala do presidente Luís Inácio Lula da Silva, durante visita à Etiópia, em 18 de fevereiro passado, enquanto participava da 37ª Cúpula da União Africana e de reuniões bilaterais com chefes de Estado. O presidente brasileiro se pronunciou sobre o conflito e comparou a resposta de Israel aos ataques promovidos pelo Hamas, ao extermínio de milhões de judeus por nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, o que gerou uma série de críticas e comoção nas redes. 

Bereia também abordou, na primeira parte desta matéria, a escalada da violência na região e como Israel vem perdendo o apoio da comunidade internacional diante das atrocidades praticadas sobre a população palestina. Leia a matéria completa

Nesta segunda parte, Bereia apresenta a origem histórica deste conflito, a motivação do apoio de cristãos evangélicos a Israel e atualizações sobre a guerra contra a Palestina que completou seis meses. 

O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou, em 25 de março passado, pela primeira vez desde o 7 de outubro de 2023, um pedido de cessar-fogo em Gaza. A resolução recebeu o apoio de 14 dos 15 membros do órgão, o único a se abster foi os Estados Unidos. O texto estabelece uma cessação de hostilidades durante o Ramadã, período sagrado para os muçulmanos, que começou em 11 de março e terminou em 9 de abril. Apesar da aprovação histórica, e da pressão internacional, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu afirmou que não acatará a ordem da ONU e ainda planeja um ataque terrestre à cidade de Rafah. “Não estamos dispostos a cessar-fogo”, declarou. 

Apesar da abstenção, o gesto do governo estadunidense causou uma rusga entre o presidente Joe Biden e Benjamin Netanyahu. Assim que o resultado no Conselho de Segurança foi anunciado, o governo israelense suspendeu a visita planejada de uma delegação do país aos EUA. O grupo iria discutir uma alternativa à invasão planejada por Israel à Rafah. O premiê israelense acusou a Casa Branca de abandonar sua “posição de princípio”. Entretanto, o governo de Biden correu para explicar que não havia mudanças na posição dos EUA de apoio a Israel.

“A única certeza em Gaza é a incerteza”
O grupo Hamas, por sua vez, pediu desculpas à população de Gaza pelo sofrimento causado pela guerra, entretanto, reiterou a intenção de prosseguir com o conflito que, segundo o comunicado, deve conduzir à “vitória e à liberdade” dos palestinos. O anúncio foi feito, no dia 31 de março, pelo canal oficial do grupo no Telegram.

Imagem: reprodução da Agência Brasil

Um dos principais líderes do grupo islâmico Hamas. Chefe do Departamento Político em Gaza e membro do Comitê Político Basem Naim disse, em entrevista ao jornal Correio Braziliense, que o premiê israelense é o culpado pela dificuldade de chegar a um cessar-fogo. “O principal obstáculo para chegarmos a um acordo é Benjamin Netanyahu e seu grupo de direita. Netanyahu não planeja alcançar um cessar-fogo, pois sabe que, no dia seguinte à trégua, haverá comitês de investigação e ele poderá ir para a prisão. A carreira política dele acabaria imediatamente”, garante o médico formado na Alemanha e com pós-doutorado em cirurgia. 

Para o líder palestino que ocupou o posto de ministro da Saúde entre 2007 e 2012, o grupo está disposto a negociar o fim da guerra, entretanto o lado israelense não quer chegar a um acordo. “Apelamos por um cessar-fogo completo e sustentável, pela retirada total das forças israelenses da Faixa de Gaza e pelo retorno das pessoas que foram expulsas de suas casas e vilarejos depois de 7 de outubro. Também pedimos uma grande operação de socorro e de reconstrução da Faixa de Gaza. Ao mesmo tempo, o engajamento em um acordo tácito para a troca de prisioneiros”, disse Naim ao jornal brasiliense.  

Perguntado sobre as denúncias de violência sexual cometida por integrantes do Hamas, o político palestino negou veementemente as acusações. “Nós negamos qualquer agressão sexual a qualquer mulher. (…) Esta foi uma operação militar e nossos alvos eram complexos militares e soldados. Nós evitamos civis, mulheres, crianças e homens. Ao mesmo tempo, temos dito que estamos prontos para receber qualquer comitê de investigação da ONU ou internacional, a fim de apurar o que ocorreu em 7 de outubro”, assegurou. 

Por que os cristãos evangélicos apoiam Israel incondicionalmente?

Segundo o professor de Teologia e doutorando em Filosofia, pela PUC-SP, Wallace Góis, os evangélicos têm uma visão escatológica do papel de Israel na história da humanidade e o consideram como o “Relógio de Deus no mundo”. “Para eles, você tem que ficar de olho no que acontece em Israel para entender o que está acontecendo no plano divino. Então os eventos que envolvem Israel, qualquer avanço político, ameaça militar ou instabilidade, vai ser interpretado à luz de alguma passagem bíblica que tenha mais ou menos a ver com essa situação e vai ser colocado como um sinal do fim dos tempos, como a volta de Cristo”, explica o professor em entrevista ao Bereia.

“Eles dizem que Israel é a continuidade da história do povo de Deus, apoiam porque Israel é e sempre foi o povo perseguido das escrituras, o guardião da Palavra de Deus, e as coisas que acontecem em Israel têm uma direta conexão com aquilo que ajuda a formar a cosmovisão cristã sobre a realidade”, afirma Góis se referindo ao que pensam os evangélicos brasileiros. 

Para o professor, que integra a coordenação brasileira do Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e em Israel, do Conselho Mundial de Igrejas, e viveu por quatro meses, de julho a outubro de 2015, na região, há uma espiritualização exacerbada em tudo que se refere a Israel. “Tem toda uma aura mística que envolve o imaginário cristão evangélico sobre Israel e coloca o país como se fosse um lugar mágico, um lugar sagrado em que tudo que se toca e se vê é referência do Divino”. 

Além disso, o professor ressalta que o turismo religioso reforça a ideia de que a nação é o ideal de civilidade para todas as outras. “Há uma propaganda de Israel como um país civilizado, ético, abençoado por Deus e aberto à liberdade religiosa, mas é uma grande encenação, porque a liberdade religiosa é restrita. Principalmente, para os muçulmanos, as comunidades cristãs na Palestina também estão definhando, estão sofrendo com restrições”, relata.

Góis compara a ação do governo israelense ao Império Romano da época de Jesus. “Israel se tornou um grande império opressor e a população palestina se vê perseguida pelos ideais imperialistas, pela opressão, pela sanha de poder, pela sede por territórios. As melhores áreas da Palestina estão sendo ocupadas pela extensão territorial israelense, as riquezas naturais estão sendo exploradas por Israel. Então, qualquer chance que a Palestina teria de se estabelecer, de construir uma história de demonstração da ‘benção de Deus’ foi previamente sequestrada por Israel e tudo isso vai sendo associado à imagem de que Deus está na verdade ao lado de Israel”, lamenta. 

O teólogo denuncia ainda que os direitos palestinos estão sendo minados para que Israel possa ser vitoriosa. “O próprio Monte do Templo, onde muitos evangélicos dizem que será reconstruído o Templo de Jerusalém, existem mesquitas no local e, por isso, para os cristãos há uma certa ojeriza, uma certa ideia de usurpação do lugar sagrado pela religião islâmica, sobre o Judaísmo, uma tentativa de suplantar o Deus verdadeiro. Então, são detalhes e mais detalhes da geografia da organização social dos pontos turísticos que são utilizados na hora de tecer esses argumentos em favor de Israel”.

A antropóloga e professora da Universidade de Brasília Jacqueline Teixeira também analisou a situação. Em entrevista à BBC Brasil, ela disse que o bolsonarismo trouxe uma novidade para o apoio que cristãos evangélicos sempre deram à Israel: o discurso bélico-religioso, ou seja, a ideia de que uma disputa entre o bem e o mal justificaria o uso da violência. “Tem me chamado a atenção a tentativa de construção de uma justificação ética para os bombardeios, para as políticas de violência e de guerra que Israel tem lançado sobre o povo palestino. Uma naturalização da violência ou da guerra”, explica.

Teixeira acredita ainda que a naturalização entre religiosos de medidas como restrição de comida e água para os palestinos, seria resultado de uma “circulação mais preeminente de imagens do bolsonarismo no contexto das igrejas”, que permitiu uma “naturalização um pouco maior da desumanização” dos palestinos.

Jerusalém e as três religiões

De acordo com a antropóloga, professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) Dra. Francirosy Campos Barbosa Ferreira, ouvida pelo Bereia, é importante ressaltar que aquela região é sagrada para judeus, cristãos e muçulmanos que dividem o espaço de Jerusalém. “O que a gente tem visto acontecer é uma captura, algo que costumamos chamar de leituras fundamentalistas da Bíblia. Os livros sagrados passam por leituras diversas, desde as mais rígidas, ipsis litteris, até as reformistas ou com interpretações diferenciadas. Então, acho que essa é uma das questões, é a ideia da Terra Prometida, associada com outras questões do judaísmo”, aponta a pesquisadora. 

A antropóloga da USP relembra o caso das senhoras cristãs que, em uma manifestação a favor do ex-presidente Jair Bolsonaro, disseram que Israel é um país cristão, assunto já abordado por Bereia, na primeira reportagem desta série. “É a distopia que a nossa sociedade chegou. Não é de estranhar que uma pessoa cristã diga, de repente, que judeus também são cristãos. Infelizmente, em nossa sociedade hoje, o nível de conhecimento religioso, e isso eu falo de qualquer religião, é muito pífio, é insignificante, não tem profundidade, não tem um contexto histórico. É uma espiritualidade vazia”, analisa. 

Para Campos, a ultradireita soube se apropriar dessa narrativa e cooptar pessoas com esse conhecimento dúbio sobre o cristianismo. “Assim começaram a criar outras figuras, outros seres, outras formas de interpretação. Então, acho que a extrema direita bolsonarista, junto com interpretações fundamentalistas, podemos até dizer equivocadas da Bíblia, acabam distorcendo todo esse campo religioso, e fazendo mau uso dele”. 

Ela ressalta ainda, que precisamos lembrar que antes da criação do Estado de Israel em 1948, as três religiões viviam em harmonia na região. “Antes da ocupação da Palestina, da expulsão dos palestinos, a gente tem um histórico de uma convivência respeitosa entre cristãos, muçulmanos e judeus, isso em várias partes do mundo, seja na Síria, no Egito, enfim, a gente tem um histórico de boa convivência. havia festas religiosas e as pessoas se respeitavam mutuamente. Essa é uma forma de uso da religião, de uma instrumentalização religiosa muito equivocada, infelizmente, que gera todo esse conflito”.

Origem do conflito na região

Para compreender o atual cenário na região é necessário voltar no tempo. Governada, destruída, povoada e repovoada por diversos povos, dinastias e impérios, a Palestina foi conquistada pelo Império Otomano no século 16. A região que havia sido conquistada por Alexandre, o Grande, pelo Império Romano e pelo general Amr Ibn Al-As, vivenciou várias expressões de fé e viveu períodos de declínio e prosperidade ao longo dos séculos.

A Palestina fez parte do Império Otomano até 1917, quando passou a ser controlada pelo Reino Unido. Os britânicos se comprometeram a apoiar a formação de um reino árabe unificado.

Durante a Primeira Guerra Mundial britânicos e turcos chegaram a um acordo sobre o futuro da Palestina e da maioria dos territórios árabes na Ásia antes pertencentes ao Império Otomano. 

No entanto, durante a Conferência de Paz de Paris, em 1919, as potências europeias vencedoras da Primeira Guerra impediram a criação do reino árabe unificado. Elas estabeleceram uma série de mandatos para que pudessem controlar e repartir toda a região. Assim, a região passou a integrar o Mandato Britânico da Palestina, autorizado pela Liga das Nações e se estendeu de 1920 até 1948.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o Reino Unido decidiu transferir a decisão sobre a Palestina para a recém criada Organização das Nações Unidas (ONU). A ONU aprovou, em 1947, a Resolução 181, que dividiu a Palestina da seguinte forma: 55% do território para os judeus, Jerusalém sob controle internacional e o restante para os árabes (incluindo a Faixa de Gaza). Ao entrar em vigor em maio de 1948, a resolução pôs fim ao Mandato Britânico da Palestina e Israel declarou sua independência.

Horas após a declaração de independência do Estado de Israel, os exércitos do Egito, Jordânia, Síria, Líbano e Iraque invadiram Israel. Os enfrentamentos iniciaram quase que imediatamente, levando ao conflito árabe-israelense. Ao fim da guerra, cerca de 6 mil israelenses e entre 10 mil e 12 mil árabes foram mortos e estima-se que de 700 mil a 800 mil palestinos foram expulsos de suas terras e entre 400 e 500 vilas palestinas foram destruídas. Os refugiados palestinos se deslocaram e acabaram se assentando na Faixa de Gaza. 

A crise econômica causada pela Guerra da Independência e a necessidade de sustentar uma população em rápido crescimento exigiram austeridade no país e ajuda financeira do exterior. A assistência prestada pelo Estados Unidos, os empréstimos de bancos americanos, as contribuições de judeus da Diáspora e reparações alemãs após a guerra foram usados para construir casas, mecanizar a agricultura, estabelecer uma frota mercante e uma companhia aérea nacional, além de favorecerem a exploração mineral, o desenvolvimento industrial e a expansão de rodovias, telecomunicações e redes elétricas.

Após o armistício, Gaza foi ocupada e administrada pelo Egito até a Guerra dos Seis Dias, em 1967 – um conflito entre a coalizão árabe formada pela Jordânia, Iraque e pela antiga República Árabe Unida, que reunia o Egito e a Síria.

Após seis dias de batalha, as antigas linhas de cessar-fogo foram substituídas por outras como Judeia, Samaria, Gaza, Península do Sinai e Colinas de Golã, sob controle israelense. A passagem para Israel através do Estreito de Tiran foi assegurada e Jerusalém, que estava dividida desde 1949 entre Israel e Jordânia, foi reunificada sob autoridade israelense. Desde o fim do conflito Israel ocupa a Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Esta ocupação desencadeou uma série de conflitos que chegaram até os dias atuais.

Evolução do território palestino – 1920 aos dias atuais

Imagens: reprodução da BBC Brasil

Pertencente à Palestina, localizado em uma estreita faixa de terra na costa oeste de Israel e fazendo fronteira com o Egito, a Faixa de Gaza é um território marcado pela pobreza e superpopulação, com 2 milhões de habitantes morando em um território de 360 km².

Foi na Faixa de Gaza que teve início uma série de conflitos armados, incluindo algumas das guerras que influenciaram a história recente da região. Entregue aos palestinos em 2005, a Faixa de Gaza passou a ser governada pelo partido Hamas, em 2007, enquanto a região da Cisjordânia ficou sob o governo da Autoridade Nacional Palestina (PNP), mas sob ocupação militar israelense. 

A primeira intifada (levante) dos palestinos contra os israelenses na Faixa de Gaza ocorreu em 1987. No mesmo ano foi criado o partido islâmico Hamas, que se estenderia posteriormente a outros territórios ocupados.

Os Acordos de Oslo entre israelenses e palestinos, em 1993, criaram a Autoridade Nacional Palestina (ANP) e concederam autonomia limitada à Faixa de Gaza e partes da Cisjordânia ocupada. Após uma segunda intifada, mais violenta que a primeira, Israel retirou suas tropas e cerca de 7 mil colonos da Faixa de Gaza, em 2005.

No ano seguinte o Hamas venceu as eleições palestinas. Este resultado gerou uma violenta luta de poder em 2007 entre o Hamas e o partido Fatah, liderado pelo líder da ANP, Mahmoud Abbas. O grupo militante saiu vitorioso na Faixa de Gaza. Desde então, o Hamas mantém o poder na região, tendo sobrevivido a três guerras e a um bloqueio de 16 anos. O braço armado do partido, mais radical, faz oposição ostensiva a Israel.

Em comunicado no dia 22 de janeiro passado, o Hamas destacou essas origens históricas do conflito, afirmando que “a batalha do povo palestino contra a ocupação e o colonialismo não começou em 7 de outubro. A liderança do partido recordou que a luta palestina foi iniciada há 105 anos, incluindo os 30 anos de colonialismo britânico e os 75 anos de ocupação sionista, e pretende responsabilizar legalmente a ocupação israelense pelo sofrimento infligido ao povo palestino”.

Netanyahu isolado

O Primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu tem sofrido vários reveses, por conta de sua condução do conflito em Gaza, considerada equivocada e desastrosa por analistas de todo o mundo. Para permanecer no poder, o líder israelense tem levado o país a se embrenhar cada vez mais fundo em conflitos regionais secundários. 

Em 31 de março passado, um ataque de Israel ao hospital Al-Aqsa, em Gaza,deixou quatro mortos e 17 feridos. O cerco ao hospital palestino já durava duas semanas. De acordo com o governo israelenese, o alvo do exército era o centro de comando da jihad islâmica que, segundo o mesmo, atuava no local. Os militares anunciaram o fim das operações no local, após a invasão que deixou a maior parte do importante complexo médico em ruínas e inoperante. O Ministério da Saúde de Gaza informou que dezenas de corpos foram encontrados, e moradores locais disseram que áreas próximas foram devastadas.

Em 01 de abril, Israel bombardeou e destruiu o consulado iraniano em Damasco, na Síria, e matou Mohammed Reza Zahedi, comandante da Guarda Revolucionária, a força de elite que protege o regime iraniano, além de outros alvos militares e civis. O motivo estaria ligado ao conflito em Gaza. De acordo com o governo israelense, o Irã é o principal financiador do Hamas e de outros grupos extremistas islamitas. 

O líder supremo do Irã aiatolá Ali Khamenei lamentou a morte do general Zahedi e fez ameaças a Israel. “O regime sionista será punido pelas mãos de nossos bravos homens. Faremos com que ele se arrependa desse crime e de outros que cometeu”, declarou o líder iraniano. 

No mesmo dia, mais um ataque israelense deixou líderes de todo o mundo em alerta. Desta vez, um drone israelense atingiu o carro onde funcionários da World Central Kitchen, ONG do chef espanhol José Andrés, estavam. O ataque vitimou sete voluntários. A organização não governamental havia acabado de levar uma carga de alimentos ao território palestino, horas antes do bombardeio. A entidade é uma das principais fornecedoras de alimentos à Faixa de Gaza desde o início da guerra. O premiê admitiu a culpa de Israel e disse que incidentes como este “’Acontecem em guerras’. “Infelizmente, no último dia houve um caso trágico em que as nossas forças atingiram involuntariamente pessoas inocentes na Faixa de Gaza. Acontece em guerras, e estamos verificando até o fim, estamos em contato com os governos, e tudo faremos para que isso não aconteça novamente”, declarou Netanyahu. 
Segundo a ONG, entre os mortos há três cidadãos do Reino Unido, um da Austrália, um dos Estados Unidos, um da Polônia, e um palestino. A World Central Kitchen é uma das mais atuantes em Gaza. Os dois veículos que transportavam as vítimas e que foram atingidos tinham o logotipo e o nome da ONG desenhados no teto e circulavam sozinhos em uma via de uma área sem conflitos. “Este não é apenas um ataque contra a World Central Kitchen, é um ataque a organizações humanitárias que se apresentam nas situações mais terríveis, em que os alimentos são usados ​​como arma de guerra. Isso é imperdoável”, disse o CEO da ONG, Erin Gore.

Nem mesmo o governo americano, aliado de Israel, tem poupado críticas e conseguido fechar os olhos para o que acontece em Gaza. O presidente americano Joe Biden disse estar “Indignado” com o ataque de Israel ao veículo de transporte da ONG World Central Kitchen e cobrou uma investigação “rápida” e que “traga responsabilidade”. Biden está em ano eleitoral e passou a ser acusado por sua própria base de ser cúmplice pelas mortes de palestinos. 

Imagem: reprodução site CNN

Os EUA vetaram três resoluções desde o início da escalada dos conflitos, em 7 de outubro de 2023, após ataques do Hamas no sul de Israel. Os cinco membros permanentes do Conselho, China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos, têm o poder de vetar.
Apesar de dar sinais de mudança de atitude, o governo Biden continua enviando armamentos para Israel. Os Estados Unidos enviaram dezenas de armas para Israel, incluindo bombas e munições de precisão, desde os ataques do Hamas em 7 de outubro. Atualmente, há 600 operações ativas de transferência ou venda potencial de armamento no valor de mais de US$ 23 bilhões entre os dois países, segundo autoridades do Departamento de Estado americano, denuncia o jornal Valor Econômico.

Imagem: reprodução do Valor Econômico

Imagem: reprodução/BBC

Por causa do ataque ao carro da ONG norte-americana, o ministro Britânico para o Desenvolvimento e África Andrew Mitchell, convocou o embaixador de Israel para expor a “condenação inequívoca do governo ao terrível assassinato de sete trabalhadores humanitários da World Central Kitchen, incluindo três cidadãos britânicos”, disse ele num comunicado de imprensa do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Outra frente de batalha levantada pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu é contra a imprensa. O Parlamento israelense aprovou, também em 01 de abril, uma lei que permite o fechamento temporário em Israel de emissoras estrangeiras consideradas uma ameaça à segurança nacional do país. O alvo principal do premiê é a TV Al Jazeera, com sede no Catar. “A Al Jazeera prejudicou a segurança de Israel, participou ativamente do massacre de 7 de outubro e incitou contra os soldados das Forças de Defesa de Israel. O canal terrorista Al Jazeera não transmitirá mais de Israel”, declarou o líder israelense. 

Em nota, a Al Jazeera afirmou que Netanyahu faz uma campanha contra a rede. “Netanyahu não conseguiu encontrar nenhuma justificativa para dar ao mundo para seus ataques recorrentes contra a Al Jazeera e a liberdade de imprensa, exceto as mentiras e calúnias contra a rede e seus funcionários”, frisa o veículo. 
O desprezo pelo trabalho da imprensa é refletido em números. De acordo com a ONG Repórteres sem Fronteiras (RSF), em cinco meses de guerra, ao menos 103 jornalistas foram foram mortos em Gaza, pelo exército israelense. Segundo um balanço da RSF essa é  uma das guerras mais letais para jornalistas. A organização acionou duas vezes o Tribunal Penal Internacional contra Israel. “Esses 103 jornalistas não são números, são 103 vozes que Israel silenciou. 103 testemunhos a menos sobre a catástrofe que se desenrola na Palestina. (…) Reiteramos o nosso apelo urgente para proteger os jornalistas em Gaza”, disse o Secretário-geral da RSF Christophe Deloire, em comunicado no site da ONG.

A Federação Internacional de Jornalistas (IFJ), por sua vez, afirma que 99 jornalistas e profissionais de mídia palestinos, quatro israelenses e três libaneses foram mortos, um total de 106 profissionais de imprensa. Houve também relatos de 16 jornalistas feridos, quatro desaparecidos e 25 detidos enquanto cobriam a guerra em Gaza, com base num relatório do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ).

Em balanço realizado pela Federação Internacional de Jornalistas (FIJ), desde o início do conflito 109 jornalistas e trabalhadores de meios de comunicação perderam suas vidas: 102 palestinos, 4 israelenses e três libaneses. Com estes dados, a Guerra em Gaza se configura como um dos conflitos mais mortais da história para os meios de comunicação e apresenta grave risco para a liberdade de imprensa.

Protestos internos

As ruas de importantes cidades de Israel têm sido tomadas por milhares de manifestantes pedindo a libertação dos reféns na Faixa de Gaza e a destituição de Benjamin Netanyahu. Eles exigem eleições antecipadas e um acordo imediato para libertar os cerca de 130 reféns israelenses ainda detidos pelo Hamas. A situação do premiê israelense torna-se cada vez mais insustentável e o futuro dele está atrelado à continuidade do conflito. 

Segundo dados do Serviço Prisional Israelense divulgados pela Human Rights Watch, as autoridades do país mantinham, até 1º de dezembro, 2.873 palestinos em detenção administrativa, sem acusação ou julgamento, com base em informações secretas. Já a organização palestina de direitos humanos Addameer afirma que, até novembro de 2023, a população carcerária palestina em unidades carcerárias administradas por Israel tinha um total de 7.000 palestinos presos. A lista inclui 80 mulheres e 200 crianças menores de 18 anos.

Números da guerra

Após seis meses de conflito, os números do conflito em Gaza falam por si. Segundo levantamento da BBC Brasil, até o 175º dia de guerra, pelo menos, 32.623 pessoas tinham morrido e 75.092 tinham sido feridas, de acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, na sigla em inglês), a maioria das vítimas é de mulheres e crianças. 

Ainda segundo a ONU, 85% da população no setor sitiado, onde vivem mais de 2,3 milhões de pessoas, foi forçada a deixar suas casas devido à destruição de infraestrutura e a falta de alimentos, água, combustível e eletricidade na região. “Prevê-se que metade da população da Faixa de Gaza (1,11 milhões de pessoas) enfrente condições catastróficas no que diz respeito à segurança alimentar”, afirmou um relatório elaborado pela ONG Integrated Food Security Phase Classification (IPC), que fornece à governos, à ONU e às agências de ajuda humanitária dados apolíticos sobre a fome no mundo. 

Imagem: reprodução/BBC

Mais de 196 trabalhadores humanitários foram mortos em Gaza desde outubro, de acordo com a Aid Worker Security Database, entidade financiada pelos EUA que registra incidentes de violência contra agentes humanitários. Além destes, há os jornalistas mortos já citados nesta matéria.

Do lado Israelense, cerca de 600 soldados morreram desde os ataques de 7 de outubro.  Nesse dia, 253 pessoas foram sequestradas. Acredita-se que cerca de 130 reféns ainda estejam detidos em Gaza, dos quais, pelo menos, 34 são considerados mortos, afirmam autoridades de Israel.

Referências de checagem:

Agência Brasil.

https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2024-03/brasil-repudia-massacre-de-palestinos-famintos-situacao-intoleravel Acesso em 07 jun 2024

https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2024-04/hamas-pede-desculpa-populacao-pelo-sofrimento-causado-pela-guerra Acesso em 07 jun 2024

https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2024-03/ataque-de-israel-hospital-em-gaza-faz-quatro-mortos-e-17-feridos Acesso em 07 jun 2024

https://humanidades.com/br/primeira-guerra-arabe-israelense-1948-1949/ Acesso em 07 jun 2024

BBC Brasil.

https://www-bbc-com.cdn.ampproject.org/v/s/www.bbc.com/portuguese/articles/c6p4513ldr1o.amp?amp_gsa=1&amp_js_v=a9&usqp=mq331AQIUAKwASCAAgM%3D#amp_tf=De%20%251%24s&aoh=17093095837382&referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.com&ampshare=https%3A%2F%2Fwww.bbc.com%2Fportuguese%2Farticles%2Fc6p4513ldr1o Acesso em 07 jun 2024

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9xkn90p550o Acesso em 07 jun 2024

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c803n5yrdw7o Acesso em 07 jun 2024

https://www.bbc.com/portuguese/articles/clkjxpvjxjgo#:~:text=Uma%20das%20bases%20teol%C3%B3gicas%20%C3%A9,hist%C3%B3ria%20sagrada%20do%20povo%20israelita Acesso em 07 jun 2024

https://www-bbc-com.cdn.ampproject.org/v/s/www.bbc.com/portuguese/articles/c6p4513ldr1o.amp?amp_gsa=1&amp_js_v=a9&usqp=mq331AQIUAKwASCAAgM%3D#amp_tf=De%20%251%24s&aoh=17093095837382&referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.com&ampshare=https%3A%2F%2Fwww.bbc.com%2Fportuguese%2Farticles%2Fc6p4513ldr1o Acesso em 07 jun 2024

https://www-bbc-com.cdn.ampproject.org/v/s/www.bbc.com/portuguese/articles/c6p4513ldr1o.amp?amp_gsa=1&amp_js_v=a9&usqp=mq331AQIUAKwASCAAgM%3D#amp_tf=De%20%251%24s&aoh=17093095837382&referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.com&ampshare=https%3A%2F%2Fwww.bbc.com%2Fportuguese%2Farticles%2Fc6p4513ldr1o Acesso em 07 jun 2024

https://www.bbc.com/portuguese/articles/clwe05xqjxno#:~:text=%22Prev%C3%AA%2Dse%20que%20metade%20da,a%20ajuda%20que%20chega%20diariamente. Acesso em 07 jun 2024

IFJ. https://www.ifj.org/es/sala-de-prensa/noticias/detalle/category/comunicados-de-prensa/article/apoyemos-la-libertad-de-prensa-en-gaza-exige-la-fip Acesso em 07 jun 2024

CNN Brasil.

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/ira-promete-vinganca-contra-israel-apos-ataque-a-embaixada-na-siria/ Acesso em 07 jun 2024

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/reino-unido-convoca-embaixador-israelense-apos-ataque-que-matou-trabalhadores-humanitarios/ Acesso em 07 jun 2024

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/ataque-de-israel-que-matou-voluntarios-em-gaza-causa-indignacao-na-casa-branca/ Acesso em 07 jun 2024

Correio Braziliense. https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2024/04/6833290-estar-ou-nao-no-governo-e-decisao-palestina-diz-lider-do-hamas.html Acesso em 07 jun 2024

ONU. https://news.un.org/pt/story/2024/03/1828597 Acesso em 07 jun 2024

Bereia. https://coletivobereia.com.br/conflito-armado-israel-x-palestina-brasil-na-berlinda-da-desinformacao/ Acesso em 07 jun 2024

G1.

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/03/25/conselho-de-seguranca-da-onu-aprova-resolucao-de-cessar-fogo-imediato-em-gaza.ghtml Acesso em 07 jun 2024

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/04/02/acontece-em-guerras-diz-netanyahu-sobre-ataque-que-matou-7-de-ong-de-chef-espanhol-na-faixa-de-gaza.ghtml Acesso em 07 jun 2024

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/04/01/netanyahu-israel-fechamento-al-jazeera.ghtml Acesso em 07 jun 2024

Repórteres Sem Fronteiras.

https://rsf.org/pt-br/103-jornalistas-mortos-em-150-dias-em-gaza-uma-trag%C3%A9dia-para-o-jornalismo-palestino#:~:text=Em%20cinco%20meses%2C%20ao%20menos,mais%20letais%20para%20os%20jornalistas. Acesso em 07 jun 2024

UOL.

https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2023/10/30/benjamin-netanyahu-cessar-fogo.htm Acesso em 07 jun 2024

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2024/03/25/32-mil-mortos-depois-conselho-de-seguranca-aprova-cessar-fogo-em-gaza.htm Acesso em 07 jun 2024

Valor Econômico.

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2024/03/07/como-os-eua-enviam-armas-a-israel-sem-tornar-publicas-algumas-remessas-de-apoio-militar.ghtml Acesso em 07 jun 2024

Metrópoles.

https://www.metropoles.com/mundo/israel-milhares-de-manifestantes-protestam-contra-governo-em-tel-aviv Acesso em 07 jun 2024

Ações da extrema-direita no poder em Israel promovem perseguição a cristãos e outras minorias religiosas

A FEPAL (Federação Árabe Palestina do Brasil) reproduziu em sua página do Instagram notícia publicada originalmente pelo Vatican News que chama a atenção para o  “potencial agravamento das já severas restrições ao Cristianismo em Israel, que poderá levar, por nova lei, à prisão de quem pregar a fé cristã”, no que seria  mais uma “ofensiva anticristã do regime racista israelense”. 

Nesse mesmo portal, diz que os “proponentes da norma são dois membros do Knesset, Moshe Gafni e Yaakov Asher, próximos à ala judaica ultra-ortodoxa e membros do Judaísmo da Torá Unida.” O texto, cujo título “Proibição de solicitação de conversão religiosa”, modificaria a lei penal israelense de 1977, onde a pena chegaria a até “um ano de prisão”, se tratando de tentativa de “conversão”, cuja pena se elevaria a dois anos, em caso de menoridade.

De fato, a lei impede qualquer forma de evangelização na Terra Santa, das práticas de evangelismo já conhecidas, até publicações e compartilhamentos de conteúdos midiáticos.

Imagem: reprodução do Instagram

A situação dos cristãos em Israel

Bereia checou as informações e verificou que a situação política em Israel piorou a vida dos cristãos no berço do Cristianismo. Para compreender como Israel chegou a esta posição extremista e de perseguição, Bereia apresenta um retrato do parlamento do país, a coalizão que sustenta o primeiro ministro no poder, as conexões com o Brasil e o histórico de aliança com os EUA, país de maioria protestante.

Netanyahu e sua coalizão de extrema-direita

O Likud, partido de direita liderado por Netanyahu, foi o grande vencedor das eleições de 1º de novembro de 2022. O resultado da eleição geral de novembro, a quinta realizada no país em menos de quatro anos, levou à formação do governo mais à direita da História de Israel. No pleito, o bloco de forças próximas a Netanyahu ficou com o total de 64 das 120 cadeiras da Knesset, o Parlamento israelense, com 32 para o seu partido, o Likud; 18 para os partidos ultraortodoxos Shas e Judaísmo Unido da Torá; e o recorde de 14 assentos para os representantes do Sionismo Religioso.

Imagem: o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu,
no Fórum Econômico Mundial / Flickr WEC

A partir de então, o governo preparou uma grande reforma judicial – que ainda deve passar por votação no Parlamento, e enfrenta protestos pelo país, – e de acordo com diversos especialistas, coloca em risco a democracia no país. Dentre as medidas propostas, encarrega o partido que está no poder da nomeação de juízes e permite ao Parlamento anular decisões da Suprema Corte por uma maioria simples de 61 votos. Assim, deixará para o Legislativo controlado por radicais religiosos e de direita a decisão final sobre leis que prejudicam direitos da minorias religiosas, da imprensa e da comunidade LGBTQIA+.

Yuval Noah Harari: “Israel pode se tornar uma teocracia messiânica”

O professor Yuval Noah Harari, um dos pensadores mais importantes da atualidade, explica que a fundação de Israel, mesmo influenciada pela religião judaica e pela Bíblia, foi um movimento nacional secular e não um movimento religioso, que prometeu liberdade e igualdade para todos os seus cidadãos: cristãos, muçulmanos, ateus. 

“Durante décadas, Israel esteve dividido entre duas visões conflitantes de si mesma — seria uma democracia secular ou uma teocracia messiânica? Agora esse conflito está chegando ao auge. O governo de Netanyahu — que se baseia em uma coalizão de extrema direita de forças messiânicas — está tentando destruir a democracia israelense. Se vencer, se conseguir, transformará a natureza de Israel, do povo judeu e até da religião judaica. O judaísmo israelense se tornará uma seita messiânica intolerante que usa a violência para defender a supremacia judaica. Isso criará uma divisão com comunidades judaicas mais liberais em outras partes do mundo, destruirá a unidade do povo judeu, trará infâmia à religião judaica e incendiará todo o Oriente Médio. As forças seculares e democráticas em Israel estão fazendo tudo o que podem para impedir esta catástrofe histórica e salvar a democracia israelense”.

Michel Gherman: a tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo

Pesquisador do Centro de Estudos do Antissemitismo da Universidade Hebraica de Jerusalém e assessor acadêmico do Instituto Brasil-Israel, Gherman explica que, para além do uso de Israel como inspiração para a extrema-direita, há ligações concretas também entre o bolsonarismo e a comunidade judaica brasileira, na formação de uma espécie de comunidade conservadora.

Uma Israel branca e fortemente armada. Uma muralha contra o Islã, os movimentos LGBTQIA+ e o avanço de culturas que contrariem o fundamentalismo religioso. Ultra capitalista, cristã e militarizada. Essa é a “Israel imaginária”, não necessariamente uma leitura ampla sobre a realidade do país, é definida pelo historiador Michel Gherman, autor do livro “O não judeu judeu: A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo”, como um modelo cultural que foi importado pela extrema-direita no mundo, inclusive a brasileira, e apropriado pelo bolsonarismo.

Israel e EUA – aliança histórica

A ocupação do território e posterior criação de Israel foi perpetrada por colonos e não por cidadãos de uma potência europeia que os enviou na sua missão colonizadora e os protegeu. Por esse motivo, ficou claro desde o início para os fundadores do sionismo político que era vital para o seu projeto obter o patrocínio de uma Grande Potência – qualquer que fosse a Grande Potência dominante no Oriente Médio – que lhes proporcionaria um ‘muro de aço”, atrás do qual a colonização sionista poderia prosseguir. Sem esse apoio – a que o discurso sionista inicial se referia como uma “carta” – a colonização da Palestina seria uma colonização ainda não iniciada.

Na década de 1930, as relações entre o movimento sionista e o seu antigo defensor britânico arrefeceram e  um processo de início de um novo vínculo: em vez da Inglaterra-sionismo, EUA-Sionismo – um processo que dependia do fato dos EUA estarem entrando no Oriente Médio como uma potência mundial decisiva.

Minoria Cristã em Israel 

Residentes milenares dessa região, os cristãos palestinos representam 1% da população. Para a maioria, a única saída é emigrar, deixar sua nação. Os que ficam, sofrem com os conflitos que atravessam o território.

No total, 48% dos palestinos cristãos pertencem à Igreja Ortodoxa Grega, 38% à Igreja Católica e os demais pertencem a Igrejas Protestantes, como as presbiterianas e ortodoxas de outros ritos (Síria e Armênia).

Nessas regiões estão alguns dos centros mais importantes de peregrinação de suas crenças religiosas: os lugares onde Jesus nasceu, pregou e morreu, de acordo com o relato bíblico e a tradição cristã.

De acordo com a matéria da BBC, os líderes cristãos da região criticam as ações do governo israelense, como parte de “uma tentativa, inspirada em uma ideologia extremista, que nega o direito de existir a quem mora em suas próprias casas”, como disse o bispo católico Pierbattista Pizzaballa de Jerusalém em uma declaração recente.

Assim, como os cristãos são minoria, essa ameaça velada os coloca em maior risco de desaparecer se o conflito perdurar.

Nesse contexto, a comunidade cristã, especificamente, é afetada por duas razões principais: a primeira, pelo crescente assédio por parte dos colonos israelenses às comunidades cristãs ortodoxas e seus representantes religiosos. Em segundo lugar, porque dos aproximadamente 16 mil cristãos que vivem em Jerusalém, cerca de 13 mil são palestinos.

Visto que a comunidade cristã em Jerusalém é muito pequena, tem um peso simbólico e uma forte presença religiosa, no entanto, sua capacidade de influenciar politicamente o conflito, é limitada.

Outro problema que afeta diretamente os cristãos que residem nos territórios palestinos, é o impacto sobre o turismo, atividade que envolve a maioria dos cristãos.

O governo de Israel é quem regula o turismo, assim é também ele, que determina quem entra, quem sai, os itens de consumo, chegando até a segmentar a vacinação contra o coronavírus, que nos territórios palestinos está em fase inicial.

***

Bereia conclui que é verdadeiro o conteúdo divulgado pelo site católico  Vatican News que aponta o recrudescimento da perseguição a minorias religiosas por Israel, o que inclui cristãos palestinos. Tal ação resulta tanto de projetos de lei do Parlamento como de ações do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. A reforma proposta pelo governo israelense, caso aprovada, coloca em risco não só a permanência de minorias religiosas no país como suas próprias instituições democráticas. 

Referências de checagem:

Federação Árabe-Palestina do Brasil. https://fepal.com.br/ Acesso em: 17 abr 2023 

Vatican News.

https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2023-03/israel-shomali-lei-anti-evangelizacao-viola-liberdade-conscienci.html Acesso em: 17 abr 2023  

https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2023-03/israel-shomali-lei-anti-evangelizacao-viola-liberdade-conscienci.html Acesso em: 17 abr 2023  

Yuval Noah Harari. https://www.ynharari.com/pt-br/ Acesso em: 17 abr 2023 

Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/12/netanyahu-forma-coalizao-para-voltar-ao-poder-em-israel.shtml Acesso em: 17 abr 2023  

Instituto Humanitas Unisinos.

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/626764-israel-para-os-cristaos-a-situacao-esta-piorando-a-direita-religiosa-nao-fala-conosco Acesso em: 17 abr 2023  

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/627298-conferencia-internacional-debate-o-uso-de-israel-como-modelo-cultural-pela-extrema-direita Acesso em: 17 abr 2023

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/626764-israel-para-os-cristaos-a-situacao-esta-piorando-a-direita-religiosa-nao-fala-conosco Acesso em: 17 abr 2023 

UOL. https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2022/09/08/por-que-eventos-bolsonaristas-tem-bandeiras-de-israel.htm Acesso em: 17 abr 2023  

O Globo.

https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2022/12/netanyahu-consegue-maioria-e-liderara-governo-mais-de-extrema-direita-da-historia-de-israel.ghtml Acesso em: 17 abr 2023  

https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/04/movimentos-de-extrema-direita-pelo-mundo-estao-conectados-diz-professor-israelense.ghtml Acesso em: 17 abr 2023  

https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/04/em-israel-tentam-evitar-a-catastrofe-e-salvar-a-democracia-diz-autor-de-best-sellers.ghtml Acesso em: 17 abr 2023  

G1. https://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/07/g1-explica-o-que-e-sionismo-judaismo-e-antissemitismo.html Acesso em: 17 abr 2023   

Agência Pública. https://apublica.org/2023/03/como-a-extrema-direita-brasileira-se-apropriou-de-simbolos-judaicos/  Acesso em: 17 abr 2023 

VEJA. https://veja.abril.com.br/mundo/perseguicao-onde-os-cristaos-sao-vitimas-de-opressao-e-violencia/ Acesso em: 17 abr 2023  

Brasil de Fato. https://www.brasildefato.com.br/2021/05/19/pesquisador-explica-conflito-entre-israel-e-palestina-nao-e-um-conflito-religioso Acesso em: 17 abr 2023  

BBC.

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c03k6wr202eo Acesso em: 17 abr 2023  

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57143976  Acesso em: 17 abr 2023  

https://www.google.com/amp/s/www.bbc.com/portuguese/internacional-57143976.amp Acesso em: 17 abr 2023   

Outras Palavras. https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/israel-e-eua-parceiros-na-geopolitica-da-barbarie/Acesso em: 17 abr 2023  

Youtube.

https://www.youtube.com/watch?v=SY2eNW6n0po Acesso em: 17 abr 2023  

https://www.youtube.com/watch?v=Olx3rZtUbug Acesso em: 17 abr 2023  

***

Foto de capa: Flickr World Economic Forum

Vídeo de culto em que pastor ora pela morte de ministros do STF viraliza

Bereia recebeu de leitores vários pedidos de checagem de um vídeo que circula pelas mídias sociais desde o último 12 de julho, no qual o pastor da Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo Tupirani da Hora Lores, durante uma oração, profere duras palavras contra os ministros do STF . O vídeo viralizou e gerou comentários com pedidos de prisão do pastor e ataques às igrejas evangélicas em geral, marcados por desconhecimento sobre a igreja e o seu líder, uma vez que ele já estava preso desde fevereiro passado, tendo sido julgado e condenado em junho. Comentários sobre a prisão geraram, por sua vez, defesa de quem viu nela “restrição à liberdade de religião” e “início da perseguição da igreja”.

Ficha corrida

O tipo de discurso observado neste vídeo que circula não é novo. Outros vídeos e postagens de falas do pastor e de membros da igreja Geração Jesus Cristo, levantados pela equipe do Bereia, têm conteúdo contra outras igrejas (sendo um alvo frequente a Assembleia de Deus), judeus, pessoas LGBTI+ e religiões afro-brasileiras. O pastor Tupirani Lopes é reincidente – tem 54 processos judiciais, alguns deles movidos pela Polícia Federal, pela Procuradoria Federal, pelo Ministério Público. Contra a vacinação e medidas sanitárias de enfrentamento da covid-19, ele já acionou na Justiça a Prefeitura do Rio de Janeiro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o ministro da Saúde Marcelo Queiroga. O pastor moveu processos contra várias empresas de comunicação, jornais e emissoras que publicaram matérias sobre suas ações de cunho religioso, e tem uma demanda judicial contra o Facebook. 

Bereia também apurou que a igreja Geração Jesus Cristo registrou um domínio e mantém um site em um servidor do Japão – estratégia usada para evitar o bloqueio de suas mídias. Não há perfil ou site no nome do pastor, mas a igreja, por meio dos membros, mantém intensa atividade no Youtube (com várias páginas espelhadas), Twitter e Facebook. Porém, não há mais de dois mil seguidores em seus perfis e páginas. A repercussão se dá pela viralização das postagens feitas nessas mídias.

Histórico de condenações

As complicações do pastor Tupirani Lopes com a Justiça vêm de 2009. Em junho desse ano, ele foi preso pela Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática da Polícia Civil do Rio. Havia sido denunciado por pregar em blogs o fim das Assembleias de Deus, da Igreja Universal do Reino de Deus e praticava intolerância contra outras religiões, em especial as de matriz afro, caracterizando-as como “seguidoras do diabo e “adoradoras do demônio. 

O líder e seus seguidores também associavam a figura de pais de santo a homossexuais, de forma pejorativa, propagando a tese (que ainda defende) de que pessoas LGBTI+ são possuídas por demônios. Ele passou 18 dias preso e ganhou direito de responder ao processo em liberdade, mas já tinha sido condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em 2012. A juíza Ana Luiza Mayon Nogueira, da 20ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, proferiu a sentença de condenação por difundir, por meio da internet, ideias de discriminação religiosa, com ofensas a seguidores de outras religiões. 

Tupirani da Hora Lores e o membro da igreja Afonso Henrique Alves Lobato, de acordo com a sentença, confirmaram que sua religião prega que, “como discípulo de Jesus Cristo, deve acusar todos os outros conceitos em geral que são contrários ao Evangelho de Jesus Cristo (…), que não existe pai de santo heterossexual, pois todos são homossexuais; que homossexualismo é possessão demoníaca; que uma pessoa que está possuída pelo demônio não merece confiança; e que discrimina todas as religiões”. 

Ainda de acordo com a sentença, em nenhum momento os dois tentaram justificar suas condutas. O pastor foi condenado a duas penas restritivas de direito: prestação de serviço à comunidade e pagamento de dez salários-mínimos em favor de uma entidade beneficente. Afonso Henrique foi condenado à prestação de serviço e limitação de fim de semana.

Em abril de 2018, um grupo de 40 seguidores da igreja Geração Jesus Cristo agrediu guardas municipais que tentaram impedi-los de vandalismo de monumentos. A ação terminou com 12 pessoas da congregação feridas, uma delas em estado grave. Os fiéis espalhavam inscrições na cidade, avisando da suposta volta do JESUS em 2070. A data faz parte da doutrina apocalíptica do grupo religioso – que vê em Tupirani Lopes um último profeta, “Elias”. O grupo já era conhecido na cidade do Rio de Janeiro por espalhar lambes e outros materiais que diziam “Bíblia, sim. Constituição, não”)

Imagem: reprodução do G1

Tupirani Lopes, porém, seguiu com o mesmo discurso. Com isso, depois de novas denúncias apresentadas ao Ministério Público em 2021, em especial as que partiram da Confederação Israelita do Brasil, alvo de vários ataques do pastor, a Polícia Federal (PF) o prendeu, em fevereiro de 2022, sob a acusação de crimes de racismo, dentro da Operação Rófesh (liberdade, em hebraico). 

Em julgamento ocorrido em 30 de junho de 2022, o líder da Igreja Pentecostal Geração de Jesus Cristo foi condenado à pena de 18 anos de reclusão por promover discursos de ódio contra a comunidade judaica em seus cultos e divulgá-los na internet. No vídeo usado como prova para a punição, ele afirma que os judeus serão envergonhados como no Holocausto da Segunda Guerra Mundial. Tupirani Lopes comemorou publicamente a prisão, ao dizer que já estava “profetizada” em placas na porta de sua congregação. O vídeo com críticas pesadas ao STF também faz parte do conjunto de provas.


Imagem: reprodução do G1

Pastor sem registro

Bereia não encontrou ligações de Tupirani Lopes com Conselhos de Pastores, Ordem de Ministros Evangélicos, Convenções, Confederações ou outras denominações evangélicas do Brasil. Não há registro em mídias da igreja, nem por parte de seus seguidores, que diga respeito à formação teológica como pastor, tal como ele se apresenta, em seminários, ou fotografias, documentos que comprovem sua ordenação por um líder, ou investidura. 

Depois de solto da primeira prisão em 2009, adicionou à fachada da sua igreja, na área portuária do Rio de Janeiro, os dizeres “templo pós-prisão”, com a imagem de uma mão algemada. Também ostenta os dizeres: “não votamos, nem elegemos bandidos”. O líder da igreja, além dos homossexuais, judeus e negros, também ataca todas as outras igrejas evangélicas e defende a volta da ditadura ao Brasil. 

Um dos delegados citados no livro do pastor, Henrique Pessoa, processou membros da igreja Geração Jesus Cristo por danos morais (e por ameaças). Em 2014, após uma audiência realizada no V Juizado de Copacabana, entrou em vias de fato com apoiadores de Tupirani Lopes e, durante o confronto, disparou para o chão e um dos fiéis foi ferido no abdômen. Na ação movida pela corregedoria, o delegado foi inocentado.

Imagem: foto de fachada da igreja que circula em mídias sociais

Anti-vacina

O líder religioso e seu grupo também rejeitam a ciência e o que classificam como várias “modernidades”, com críticas ao sistema de saúde, a escolas, universidades e tecnologias. Contribuíram para disseminar várias teorias conspiratórias sobre a COVID-19 e as vacinas com várias postagens em mídias sociais. 

Porém, ao contrário dos grupos que negam a existência do vírus e diferentemente daqueles que afirmam que a doença foi resultado de uma arma biológica (teorias mais correntes entre as seitas norte-americanas), o grupo da igreja Geração Jesus Cristo afirma que a vacina é “impossível”, porque a doença foi mandada por Deus, para punir aos maus e purificar a humanidade. 

No começo da pandemia, em maio de 2020, o pastor publicou um vídeo em um canal no YouTube afirmando que a doença seria “invencível; porque contra a força de Deus não existe defesa”. Tupirani Lopes, contrariando os cientistas, afirmava que doença “não vai parar” e que seria “impossível uma vacina”. O prolongamento e a força da pandemia deram mais visualizações ao vídeo e ajudaram a ampliar o alcance do grupo. 

Igreja ou seita?

A sociologia da religião tem essa pergunta como uma de suas principais temáticas. Peter Berger, em sua tese doutoral “Da seita à igreja: uma interpretação sociológica do Movimento Bahai”, defendida em 1954, abordou o tema. Em resumo, pode-se dizer que embora a categoria seja utilizada, por vezes, como uma forma de acusação contra grupos novos, na pluralidade religiosa do mundo moderno, ela é válida para entender a interação dos novos movimentos religiosos com a sociedade – e em especial com os demais grupos de crenças. Uma seita, como indica o nome, tem uma atuação, doutrina e liderança com fortes características separatistas, sectárias, autoritárias e, no limite, tais grupos podem defender ações armadas e desordem social. Todavia, seitas e movimentos podem se institucionalizar e moderar seus discursos e ações à medida que ganham adeptos e maior interação social. 

Rodney Stark e William Bainbridge, em “Uma teoria da religião”, publicado originalmente em 1985  (traduzido pela Edições Paulinas em 2008) sugerem que “a secularização produz uma era de reavivamento religioso e experimentação”. Em sociedades liberais e pluralistas, religiões e igrejas de baixa tensão – isto é, organizações religiosas que se secularizaram e cujas lideranças se elitizaram, abandonaram o proselitismo e deixaram de confrontar seu ambiente sociocultural – tendem a perder poder e adeptos e dar “às seitas um novo mercado para explorar”.  Stark e Bainbridge  definem seita como “uma organização religiosa desviante”. 

Partindo da conceituação de Benton Johnson, os autores consideram que a seita apresenta elevado grau de tensão (ou desvio subcultural) com seu ambiente sociocultural. Dessa forma, se separa dos e antagoniza os grupos dominantes e seus padrões normativos e comportamentais. A secularização, portanto, permite a emergência incessante de seitas e de cultos a partir da derrocada de igrejas e denominações. As seitas é que se isolam da sociedade ou que mantêm níveis extremos de tensão com a sociedade.

Bereia ouviu a professora titular de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Patrícia Birman. Ela destacou, a partir deste caso da Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo, que “independente do grupo ou ação religiosa”, declarações racistas, misóginas e homofóbicas não necessariamente levam em conta definição religiosa. 

“A ideia de seita é uma noção acusatória, quando se chama um grupo de seita está se dizendo que é um grupo pernicioso infiltrado no campo da religião, é complicado, porque essa política acusatória transforma as lutas internas no campo religioso entre igrejas que estão disputando o mercado de bens religiosos em uma questão judicial. Acho que a gente deve aceitar em princípio a autodesignação que o grupo faz. Se ele merecer ser punido, que seja pelas leis do país, independente das posições conflituosas internas entre as religiões. Não precisa dessa designação de seita para que seus componentes respondam na justiça”, explica a pesquisadora da UERJ.

Patrícia Birman complementa que “os grupos de ódio não são especificamente religiosos, não acreditam que sejam. De alguma forma, se espalham no país pela mesma lógica daqueles que atuam insuflados pelo atual governo, mas não são necessariamente religiosos. E se cometem crimes, independentemente de sua vinculação religiosa ou política, devem responder na justiça.”

A intolerância religiosa

Esse também é o posicionamento do superintendente Estadual da Promoção da Liberdade Religiosa do Estado do Rio de Janeiro Justino Carvalho, que tem sob sua gestão os Núcleos de Atendimento às Vítimas de Intolerância Religiosa (Navir), da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos. Há atualmente, no Estado do Rio de Janeiro, seis NAVIR, somando mais de 200 atendimentos em três anos. Os Núcleos de Atendimento às Vítimas de Intolerância Religiosa (NAVIR) oferecem assistência social, jurídica e psicológica para aqueles que sofrem com violações ocasionadas por discriminação, intolerância ou racismo religioso. Além desses serviços, o núcleo também realiza ações de prevenção. O núcleo é coordenado pela Superintendência de Promoção da Liberdade Religiosa (SUPLIR) vinculada à Subsecretaria de Promoção, Defesa e Garantia dos Direitos Humanos.

Para Carvalho, ouvido pelo Bereia, este “é um caso que está sob a tutela do Judiciário. Toda intolerância deve ser combatida através da promoção da liberdade religiosa, através do bom diálogo inter religioso, proporcionando assim o respeito e a convivência harmoniosa sem preconceito sobre a crença das pessoas”. Justino também ressalta que as ações judiciais não são motivadas por religião, pois “o estado é laico e permite o pleno exercício da liberdade religiosa do indivíduo”.

Avaliações

Em relação ao vídeo viralizado e a controvérsia em torno do pastor Tupirani Lopes, o Rabino Nilton Bonder declarou à equipe do Bereia

“É muito triste que a gente tenha que responder à ignorância tão pura e absurda quanto essa que fala esse senhor, porque viraliza e a gente tem que trazer informação para se contrapor à desinformação. Eu não chamo esse senhor de pastor, porque pastor é uma imagem positiva, harmônica, é alguém que encaminha as pessoas para a civilização, para as coisas de bem. Esse senhor obviamente é uma personagem dessa realidade que a gente vive no Brasil e no mundo onde as redes sociais dão voz para essas pessoas que não deveriam nem ser escutadas, quanto mais respondidas, então essa ode à morte à violência, tudo isso não tem nada a ver com religião, são máfias que adentram os espaços religiosos, que fazem manipulação, usam esses espaços. Por isso, é muito importante, principalmente, de dentro da religião, de onde esses indivíduos aparecem, que haja vozes de oposição”. 

Já o pastor vinculado à Igreja Batista em Vitória (ES), doutor em Ciências da Religião e professor da Faculdade Unida de Vitória Kenner Terra, co-autor do livro “Experiência e Hermenêutica Pentecostal” (publicado pela CPAD), declarou ao Bereia:

“O discurso de ódio do pastor Tupirani Lopes é lamentável, incompatível com o evangelho e representa a pior face do extremismo religioso, o qual, ao contrário da opinião de alguns setores, não representa a maioria dos evangélicos. Esta seita cristã criada pelo criminoso pastor (preso desde fevereiro) não pode ser a ‘régua de medida’ do fenômeno evangélico brasileiro. Quem não toma esse cuidado acaba promovendo aquilo que denúncia: a intolerância e o preconceito”. 

***

Bereia classifica o vídeo que circula com a oração do pastor Tupirani da Hora Lopes, contra  ministros do STF, como verdadeiro. Porém, Bereia destaca que o vídeo é antigo, provavelmente do ano de 2021, e voltou a circular depois da prisão e condenação do pastor em junho passado como se fosse atual, causando confusão de compreensão em pessoas que desconheciam os episódios em torno do pastor e da igreja Geração Jesus Cristo, e provocando comentários de ódio contra evangélicos, de forma generalizada. Bereia também ressalta a importância de se buscar informação antes de compartilhar e opinar para evitar expressões de intolerância em versão reativa. 

Referências de checagem:

Veja. https://veja.abril.com.br/coluna/virou-viral/pastor-antivacina-deseja-morte-dolorosa-a-ministros-do-stf-assista/  Acesso em: 14 jul 2022

Conjur. https://www.jusbrasil.com.br/processos/nome/40838914/tupirani-da-hora-lores  Acesso em: 14 jul 2022

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. http://www.tjrj.jus.br/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/5142249  Acesso em: 14 jul 2022 

G1.

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/confusao-entre-grupo-de-evangelicos-e-guardas-municipais-deixa-feridos-na-zona-sul-do-rio.ghtm  Acesso em: 14 jul 2022

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/06/30/radical-religioso-e-condenado-a-18-anos-de-prisao-por-ataques-a-judeus-na-internet.ghtml  Acesso em: 14 jul 2022

Folha de S.Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/184123-fiel-e-baleado-por-delegado-apos-confusao-em-audiencia-no-rio.shtm  Acesso em: 14 jul 2022
El Pais. https://brasil.elpais.com/internacional/2021-01-12/teorias-conspiratorias-do-qanon-varrem-o-mundo-e-sao-mais-perigosa-do-que-parecem.html  Acesso em: 14 jul 2022

Deputada Bia Kicis classifica parlamentar da Alemanha em visita ao Brasil como conservadora

* Matéria atualizada em 02 de agosto de 2021 às 19:31 para acréscimo de informações.

Em postagem em mídias sociais em 22 de julho de 2021, a deputada federal Bia Kicis (PSL/DF), que integra a Bancada Católica no Congresso Nacional, divulgou reunião, em Brasília,com a deputada do Partido Alternativa para Alemanha Beatrix von Storch. Bia Kicis apresentou a alemã como integrante “do maior partido conservador daquele país” e completou em português e inglês: “Conservadores do mundo se unindo p/ defender valores cristãos e a família”.

Reprodução do Twitter

Depois da reação crítica nas mídias sociais que denuncia ser Beatrix von Storch, liderança da extrema direita alemã, de um partido de tendência neonazista, Bia Kicis publicou: “A deputada Beatrix von Storch é uma parlamentar conservadora,que denuncia política de imigração na Alemanha e ataques às liberdades individuais,como a liberdade de expressão.Nada desabona sua conduta,por tudo que pesquisei.É a mesma narrativa contra conservadores aqui e no mundo”.

Reprodução do Twitter

O Partido Alternativa para Alemanha

O Partido Alternativa para Alemanha, em alemão Alternative für Deutschland, sigla AfD, foi fundado em fevereiro de 2013. No site Deutschland.de, com informações oficiais sobre a República da Alemanha,  o AfD é classificado como um partido populista de direita, que defende a saída da Alemanha da União Europeia e a abolição da moeda Euro. Grande parcela do AfD rejeita políticas de imigração, assim como as medidas de proteção climática. De acordo com o AfD, a mudança climática não é causada pelo ser humano, contrariamente aos resultados de pesquisas científicas.

O Deustschland.de informa também que o AfD está sendo investigado pelo Departamento Federal de Proteção da Constituição como suspeito de ser extremista de direita. Lideranças do partido estão sendo monitoradas para registros de opiniões anticonstitucionais e extremistas de direita. O Departamento estima que pelo menos 20% dos membros do partido podem ser classificados neste grupo. O partido está representado em todos os parlamentos estaduais e no Parlamento Federal.

O Museu do Holocausto, inaugurado em Curitiba, em 2011, para a conservação da memória do genocídio judeu pela Alemanha no período do Nazismo, no século 20, publicou, em suas mídias sociais, reação ao encontro divulgado por Bia Kicis. O Museu do Holocausto informa que o Alternativa para a Alemanha foi fundado em 2013, com tendências racistas, sexistas, islamofóbicas, antissemitas, xenófobas e forte discurso anti-imigração.

Entre várias informações, o Museu do Holocausto mostra que a deputada que se encontrou com Bia Kicis, Beatrix von Storch, é “vice-líder do partido, famosa por tweets xenofóbicos e neta de Lutz Graf Schwerin von Krosigk, ministro nazista das Finanças e um dos poucos membros do gabinete do Terceiro Reich a servir continuamente desde a nomeação de Hitler como chanceler”. A postagem esclarece que “após os suicídios de Hitler e de Goebbels, von Krosigk (…) serviu como Ministro Principal e das Relações Exteriores durante um curto período, na pequena porção da Alemanha que estava encolhendo progressivamente devido ao rápido avanço das forças aliadas”.

Ao final da postagem, a organização judaico-brasileira afirma: “É evidente a preocupação e a inquietude que esta aproximação entre tal figura parlamentar brasileira e Beatrix von Storch representam para os esforços de construção de uma memória coletiva do Holocausto no Brasil e para nossa própria democracia”.

O perfil Judeus pela Democracia também publicou nota assinada por diversos coletivos a respeito do encontro, lamentando o alinhamento do governo atual com “movimentos supremacistas e nazistas”.

Extremismo na agenda bolsonarista

A parlamentar alemã também se reuniu com o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL/SP), da Bancada Evangélica no Congresso Nacional, como ele mesmo registrou em seus perfis de mídias sociais.

Reprodução do Twitter

O presidente Jair Bolsonaro também se encontrou, fora da agenda oficial, com a deputada Beatrix von Storch. O encontro ocorreu no Palácio do Planalto, em Brasília, mas não foi incluído na agenda. A reunião só se tornou pública quando a parlamentar alemã divulgou fotos com Bolsonaro na segunda, 26 de julho.

Na postagem, a deputada agradeceu a recepção de Bolsonaro e declarou-se impressionada pelo presidente compreender os problemas da Europa e os desafios políticos atuais. Ela defendeu “a união dos conservadores para combater a ideologia dos grupos de esquerda”.

Von Storch também se encontrou com o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marcos Pontes, compromisso que estava na agenda pública do titular da pasta, e a pauta anunciada foi “energias renováveis e mudanças climáticas”. O Secretário Especial de Cultura, Mario Frias, foi outro membro do governo a receber a deputada alemã, por intermédio do deputado estadual Gil Diniz (sem partido-SP), cuja pauta divulgada foi “big techs”.

O reconhecido jornalista especializado em coberturas internacionais Jamil Chade publicou matéria sobre esta visita no jornal El País, em 23 de julho, na qual afirma que esta não foi a primeira demonstração de proximidade da base de Bolsonaro com grupos extremistas. Em 2019, o mesmo deputado Eduardo Bolsonaro esteve na Hungria em visita ao notório extremista de direita do partido Fidesz, primeiro-ministro Viktor Orbán. Chade explica que analistas identificam coincidências entre a agenda internacional de Bolsonaro e suas ações no Brasil (na luta contra perseguição sofrida por cristãos no mundo, a defesa da “família tradicional” e a necessidade de proteger a “soberania”). Há muitas semelhanças desta pauta em relação aos projetos que, ao longo de anos, foram implementados por Viktor Orbán, que controla, na Hungria, a Corte Constitucional (equivalente ao STF), o Ministério Público e dois terços do Parlamento, além da imprensa, clubes de futebol, as artes, os espaços públicos e universidades.

No ano passado, Eduardo Bolsonaro realizou uma live com o líder do partido de extrema-direita da Espanha, o Vox, Santiago Abascal. O AfD, o Vox e o Fidesz têm em comum, explica Chade: a busca por pautas conservadoras radicais, a xenofobia, a hostilização à esquerda e à imprensa.

Jamil Chade afirma ainda que “o Brasil virou terreno fértil para expandir suas ideias sob o governo Bolsonaro, que ainda traz um elemento extra: após o fim do Governo de Donald Trump nos Estados Unidos, a ofensiva ultraconservadora colocou no Brasil de Jair Bolsonaro todas as suas fichas, considerado o país com maior influência de consolidar a agenda ultraconservadora”.

***

Bereia classifica a postagem da deputada Bia Kicis sobre o encontro com a parlamentar alemã do Partido Alternativa para Alemanha Beatrix von Storch como enganosa. A deputada brasileira apresenta a parlamentar como conservadora, atuando para unir “conservadores do mundo para defender valores cristãos e a família”. Como se pode verificar, o partido da parlamentar visitante está sendo investigado pelo Departamento de Proteção à Constituição da Alemanha sob a suspeita de atentar contra os valores constitucionais do país. Além disso é pública a sua plataforma nacionalista anti-imigrantes (xenófoba), contra a agenda ambiental, de hostilização de opositores.

Conservadorismo político, segundo o clássico Dicionário de Política, organizado por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci, Gianfranco Pasquino, se refere a posições que visam à manutenção do sistema político existente e dos seus modos de funcionamento, apresentando-se como contraparte das forças inovadoras.

O que se identifica do partido alemão da visitante acolhida pelos deputados Bia Kicis e Eduardo Bolsonaro é outra postura política, o extremismo. O mesmo Dicionário a concebe como ultraconservadorismo ou extrema-direita, representada por movimentos independentes e partidos políticos com posicionamentos radicais, geralmente relacionados ao nacionalismo. A exaltação da nacionalidade acaba por levar à postura de superioridade em relação a outros grupos sociais, o que gera preconceito e xenofobia. Na história da Alemanha esta postura já foi base para o Nazismo.

Referências

Deutschland.de, https://www. /pt-br/topic/politica/a-afd-partidos-no-parlamento-federal-alemao. Acesso em 23 jul 2021

El País, https://brasil.elpais.com/internacional/2021-03-05/servico-secreto-alemao-coloca-partido-de-ultradireita-afd-sob-vigilancia-por-suspeita-de-extremismo.html Acesso em 23 jul 2021

Museu do Holocausto, https://www.museudoholocausto.org.br/o-museu/ Acesso em 23 jul 2021

Twitter, Museu do Holocausto, https://twitter.com/MuseuHolocausto/status/1418265064877043719 Acesso em 23 jul 2021

Twitter, Judeus Pela Democracia, https://twitter.com/jpdoficial1/status/1420166491434110978?s=20 Acesso em 28 jul 2021

G1, https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/26/fora-da-agenda-bolsonaro-se-reune-com-deputada-de-extrema-direita-da-alemanha.ghtml. Acesso em 26 jul 2021

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, https://www.gov.br/mcti/pt-br/acesso-a-informacao/agenda-de-autoridades/agenda-ministro/2021-07-22. Acesso em 27 jul 2021

Secretaria Especial da Cultura, https://www.gov.br/turismo/pt-br/acesso-a-informacao/agenda-de-autoridades/agenda-Secretario-Especial-de-Cultura-do-Ministerio-do-Turismo/2021-07-22. Acesso em 02 ago 2021.

Flickr, https://www.flickr.com/photos/sintonizemcti/albums/72157719648427115. Acesso em 27 julho 2021.

jul El País, https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-22/extrema-direita-mundial-estreita-lacos-com-governo-bolsonaro-que-segue-passos-de-orban-e-trump.html?mid=DM72815&bid=655301307 Acesso em 23 jul 2021

Dicionário de Política, https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2938561/mod_resource/content/1/BOBBIO. Dicion%C3%A1rio de pol%C3%ADtica..pdf     Acesso em 23 jul 2021

O Natal de Jesus e o nosso Natal sob o Covid-19

O Natal do ano 2020 seja talvez o mais próximo do verdadeiro Natal de Jesus sob o imperador romano César Augusto.

Este imperador ordenara um recenseamento de todo o império. A intenção não era apenas como entre nós, de levantar quantos habitantes havia. Era isso, mas o propósito era cobrar de cada habitante um imposto, cuja soma com aquele de todas as províncias se destinava a manter a pira de fogo permanentemente acesa e sustentar os sacrifícios de animais ao imperador que se apresentava e assim era venerado como deus. Tal imposição a todos do Império provocou revoltas entre os judeus.

Esse fato, mais tarde, foi usado pelos fariseus como uma armadilha a Jesus: devia pagar ou não o imposto a César? Não se tratava do imposto comum, mas aquele que cada pessoa do império devia pagar para alimentar os sacrifícios ao imperador-deus.

Para os judeus significava um escândalo pois adoravam um único Deus, Javé, como poderiam pagar um imposto para venerar um falso deus, o imperador de Roma? Jesus logo entendeu a cilada. Se aceitasse pagar o imposto seria cúmplice da adoração a um deus humano e falso, o imperador. Se o negasse se indisporia com as autoridades imperiais negando-se a pagar o tributo em homenagem ao imperador-deus.

Jesus deu uma resposta sábia: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. E outras palavras, dai a César, um homem mortal e falso deus o que é de César: o imposto para os sacrifícios e a Deus, o único verdadeiro, o que é de Deus: a adoração. Não se trata da separação entre a Igreja e o Estado como comumente se interpreta. A questão é outra: qual é o verdadeiro Deus, aquele falso de Roma ou aquele verdadeiro de Jerusalém? Jesus, no fundo, responde: só há um Deus verdadeiro e deem a ele o que lhe cabe, a adoração. Dai a Cesar, o falso deus, o que é de César: a moeda do imposto. Não misturem deus com Deus.

Mas votemos ao tema: o Natal de 2020, como nunca na história, se assemelha ao Natal de Jesus. A família de José e de Maria grávida são filhos da pobreza como a maioria de nosso povo. As hospedarias estavam cheias, como aqui os hospitais estão cheios de contaminados pelo vírus. Como pobres, Jesus e Maria, talvez nem pudessem pagar as despesas como, entre nós, quem não é atendido pelo SUS não tem como bancar os custos de um hospital particular. Maria estava na iminência de dar à luz. Sobrou ao casal, refugiar-se numa estrebaria de animais. Semelhantemente como fazem tantos pobres que não têm onde dormir e o fazem sob as marquises ou, num canto qualquer da cidade. Jesus nasceu fora da comunidade humana, entre animais, como tantos de nossos irmãos e irmãs menores nascem nas periferias das cidades, fora dos hospitais e em suas pobres casas.

Logo depois de seu nascimento, o Menino já foi ameaçado de morte. Um genocida, o rei Herodes, mandou matar a todos os meninos abaixo de dois anos. Quantas crianças, no nosso contexto, são mortas pelos novos Herodes vestidos de policiais que matam crianças sentadas na porta da casa? O choro das mães são eco do choro de Raquel, num dos textos mais comovedores de todas as Escrituras: “Na Baixada (em Ramá) se ouviu uma voz, muito choro e gemido: a mãe chora os filhos mortos e não quer ser consolada porque ela os perdeu para sempre” (cf.Mt 2,18).

De temor de ser descoberto e morto, José tomou Maria e o menino Jesus atravessam o deserto e se refugiram no Egito. Quantos hoje sob ameaça de morte pelas guerras e pela fome, tentam entrar na Europa e nos USA. Muitos morrem afogados, a maioria é rejeitada, como na catolicíssima Polônia e vem discriminada; até crianças são arrancadas dos pais e engaioladas como pequenos animais. Quem lhes enxugará as lágrimas? Quem lhes mata a saudade dos pais queridos? Nossa cultura se mostra cruel contra os inocente e contra os imigrantes forçados.

Depois que morreu o genocida Herodes, José tomou Maria e o Menino e foram esconder-se num lugarejo tão insignificante, Nazaré, que sequer consta na Bíblia. Lá o Menino “crescia e se fortalecia cheio de sabedoria” (Lc 2,40). Aprendeu a profissão do pai José, um fac-totum, construtor de telhados e coisas da casa, um carpinteiro. Era também um camponês que trabalhava o campo e aprendia a observar a natureza. Ficou lá escondido até completar 30 anos, foi quando sentiu o impulso de sair de casa e começar a pregação de uma revolução absoluta: “O tempo da espera expirou. A grande reviravolta está chegando (Reino). Mudem de vida e acreditem nessa boa notícia” (cf. Mc 1,14): uma transformação total de todas as relações entre os humanos e na própria natureza.

Conhecemos seu fim trágico. Passou pelo mundo fazendo o bem (Mc 7:37; Atos 10:39), curando uns, devolvendo os olhos a cegos, matando a fome de multidões e sempre se compadecendo do povo pobre e sem rumo na vida. Os religiosos articulados com os políticos o prenderam, torturaram e o assassinaram pela crucificação.

Saiamos destas “sombras densas” como diz o Papa Francisco na Fratelli tutti. Voltemos o olhar desanuviado para o Natal de Jesus. Ele nos mostra a forma como Deus quis entrar na nossa história: anônimo e escondido. A presença de Jesus não apareceu na crônica nem de Jerusalém e muito menos de Roma. Devemos aceitar esta forma escolhida por Deus.  Realizou-se a lógica inversa da nossa: “toda criança quer ser homem; todo homem quer ser grande; todo grande quer ser rei. Só Deus quis ser criança”. E assim aconteceu.

Aqui ecoam os belos versos do poeta português Fernando Pessoa:

“Ele é a Eterna Criança, o Deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
É a criança tão humana que é divina”.

Fernando Pessoa

Tais pensamentos me trazem à memória uma pessoa de excepcional qualidade espiritual. Foi ateu, marxista, da Legião Estrangeira. De repente sentiu uma comoção profunda e se converteu. Escolheu o caminho de Jesus, no meio dos pobres. Fez-se Irmãozinho de Jesus. Chegou a uma profunda intimidade com Deus, chamando-o sempre de “o Amigo”. Vivia a fé no código da encarnação e dizia: “Se Deus se fez gente em Jesus, gente como nós, então fazia xixi, choramingava pedindo o peito, fazia biquinho por causa da fralda molhada”. No começo teria gostado mais de Maria e mais grandinho mais de José, coisa que os psicólogos explicam no processo da realização humana.

Foi crescendo como nossas crianças, observava as formigas, jogava pedras nos burros e, maroto, levantava o vestidinho das meninas para vê-las furiosas, como imaginou irreverentemente Fernando Pessoa em seu belo poema sobre o Jesus menino.

Esse homem, amigo do Amigo, “imaginava Maria ninando Jesus, fazê-lo dormir porque de tanto brincar lá fora, ficava muito excitado e lhe custava fechar os olhos; lavava no tanque as fraldinhas; cozinhava o mingau para o Menino e comidas mais fortes para o trabalhador o bom José”.

Esse homem espiritual italiano que viveu, muitas vezes ameaçado de morte, em tantos países da América Latina e vários no Brasil, Arturo Paoli, se alegrava interiormente com tais matutações, porque as sentia e vivia na forma de comoção do coração, de pura espiritualidade. E chorava com frequência de alegria interior. Era amigo do Papa que o mandou buscar de carro na cidadezinha uns 70 km de Roma para passarem toda um tarde e falarem da libertação dos pobres e da misericórdia divina. Morreu com 103 anos como um sábio e santo.

Não esqueçamos a mensagem maior do Natal: Deus está entre nós, assumindo a nossa condition humaine, alegre e triste. É uma criança que nos vai julgar e não um juiz severo. E esta criança só quer brincar conosco e nunca nos rejeitar. Finalmente, o sentido mais profundo do Natal é esse: a nossa humanidade, um dia assumida pelo Verbo da vida, pertence a Deus. E Deus, por piores que sejamos, sabe que viemos do pó e nos tem uma misericórdia infinita. Ele nunca pode perder, nem deixará que um filho seu ou filha sua se perderão. Assim, apesar do Covid-19 podemos viver uma discreta alegria na celebração familiar. Que o Natal nos dê um pouco de felicidade e nos mantenha na esperança do triunfo da vida sobre o Covid-19.

***

Foto de Capa: Pixabay/Reprodução