Portais gospel divulgam conteúdo impreciso sobre pastor multado por discurso conta religiões afro-brasileiras
* Matéria atualizada em 12/08/2024 para ajuste de título
O portal evangélico Gospel Prime publicou, em 5 de agosto passado, que o Ministério Público Federal (MPF) propôs uma multa de R$ 100 mil ao pastor da Igreja Apostólica Central Wilson Felix da Silva, por discurso de intolerância religiosa contra religiões de matriz afro-brasileira.
Imagem: Reprodução: Gospel Prime
A matéria do Gospel Prime é intitulada: MP quer multar pastor em R$ 100 mil por pregar contra Iemanjá. O veículo descreve que o caso do pastor Wilson Félix da Silva envolve acusações de “discurso de ódio” contra religiões afro-brasileiras.
Segundo as informações, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão diz que a declaração do pastor desrespeita essas religiões e pede uma indenização, além da investigação criminal do vídeo. Ao final a matéria compara a situação com outra relacionada ao pastor youtuber Yago Martins, que também foi acusado de discriminação religiosa. A conclusão aponta que ambos os casos mostram a dificuldade de equilibrar a liberdade de expressão religiosa com a proteção de grupos minoritários contra discriminação.
O ocorreu após o pastor criticar a inclusão do evento “Águas de Axé” no calendário oficial de Mangaratiba, município da Costa Verde do Rio de Janeiro. Esse é um evento anual organizado pelo Instituto Lucia Castilho, entidade ligada às religiões de matriz africana.
O caso foi acolhido pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro (PRDC-RJ), que apontou que o pastor utilizou sua posição de liderança para incitar a discriminação de religiões afro-brasileiras durante um culto transmitido online.
No sermão, o líder evangélico teria atribuído a Iemanjá “toda sorte de coisas maléficas que possam ocorrer” na cidade, segundo as acusações.
Bereia checou a veracidade da informação propagada pelo Gospel Prime.
O que ocorreu?
Com sede em Mangaratiba, o Instituto Lucia Castilho foi criado com o objetivo de valorizar a cultura e a religiosidade afro-brasileiras, a igualdade racial e os direitos e a saúde da mulher.
Imagem: Reprodução/Instagram
A entidade organiza o evento anual “Águas de Axé”, em 20 de janeiro, que promove o encontro de diversos terreiros da região, na Praia do Saco, em Mangaratiba, em prol da divulgação da cultura afro-brasileira e para a realização de rituais para a entrada do novo ano.
Em reconhecimento, a Câmara Municipal da cidade, aprovou em novembro de 2023, um Projeto de Lei, de autoria do vereador Aristides Barcelos (PL-RJ), para a inclusão do evento no calendário oficial do município.
Em repercussão, o pastor Wilson Félix da Silva, criticou a decisão municipal, no sermão transmitido em rede digital, que “onde eles colocam isso, há uma degradação, uma destruição”.
O pastor afirma que tal ato visa a acabar com as praias de Mangaratiba, assim como as praias de Sepetiba e Coroa Grande, também localizadas no estado do Rio, pois elas “não prestam mais”, já que há representações de orixás, como Iemanjá, rainha dos mares.
Imagem: Reprodução/YouTube
Wilson Félix ainda argumenta que o município está em uma “guerra espiritual” e que é necessário um posicionamento cristão em todas as esferas da administração pública. Ele também critica o prefeito Alan Campos da Costa, chamando-o de “crente desviado”, por ter aprovado a lei.
Após as falas do pastor, representantes do Instituto Lucia Castilho registraram ocorrência por crime de intolerância e racismo religiosos. O Ministério Público Federal (MPF), pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro (PRDC/RJ), ajuizou ação civil pública contra Wilson Félix da Silva por disseminar discurso discriminatório contra religiões de matriz afro-brasileira.
Na ação, o MPF pede indenização de R$ 100 mil, em função das violações aos direitos fundamentais causadas pelas ofensas. E ressalta que comunidades tradicionais têm o direito de praticar sua religião e expressar sua identidade cultural, e que o Estado tem o dever de salvaguardar a diversidade das expressões culturais.
O procurador regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro Jaime Mitropoulos, destaca que o discurso viola direitos de grupos historicamente vulnerabilizados pela intolerância religiosa e pelo racismo cultural. Ele explica que a remoção do vídeo original, não exime o responsável do dever de indenizar. O vídeo original foi apagado do Instagram após intensa repercussão negativa, mas isso não isenta a pessoa responsável de pagar indenização.
A PRDC/RJ também determinou a remessa de cópia da gravação para apuração na área criminal, com base na Lei nº 7.716/89, que trata de crimes de racismo.
Bereia ouviu a advogada especialista em Direito Antidiscriminatório, e membro da Rede Cristã de Advocacia Popular (RECAP) Claudia Patricia Luna. Ela explicou que o Ministério Público não precisa esperar por uma denúncia para agir. Ele pode iniciar uma ação cível ou penal por conta própria, especialmente quando o caso envolve interesses coletivos. No caso de racismo religioso, que afeta uma comunidade de pessoas negras, o MP, como previsto na Constituição, pode abrir um inquérito civil e determinar uma multa, como aconteceu com o pastor.
A advogada também explica que o pastor está sendo denunciado com base na Lei 14.532/2023, que equipara os crimes de injúria racial aos de racismo, tornando-os inafiançáveis, incluída uma lista dos contextos nos quais devem ser enquadrados, incluído o religioso.
Claudia Luna esclarece que o MPF atua tanto na esfera criminal quanto na cível. Neste caso de Mangaratiba, foi aberto um inquérito cível, e o pastor foi multado conforme esta lei. Isso significa que, além das punições criminais, a pessoa que comete atos de racismo ou injúria racial também pode ser responsabilizada civilmente e obrigada a indenizar a vítima. A multa pode ser destinada a um fundo coletivo, visto que a ofensa impacta toda a comunidade, não apenas o indivíduo.
Repercussão do caso
Vários perfis evangélicos têm divulgado a notícia sobre a condenação do pastor Wilson Félix da Silva como perseguição religiosa. O Gospel Prime afirmou que a medida visa “proteger grupos religiosos minoritários” mas cria tensões com o direito à liberdade religiosa.
Imagem: reprodução/Gospel Mais
Imagens: Reprodução: Gospel+ e Pleno News
Calendário cívico e disputas religiosas
O racismo religioso neste caso é mais um exemplo do palco de disputas que revelam tensões religiosas e culturais no país que cercam também o calendário oficial brasileiro, com seus feriados e datas comemorativas.
Historicamente dominado por datas cristãs, especialmente católicas, o calendário enfrenta desafios à medida que grupos minoritários buscam reconhecimento e representação.
A antropóloga e pesquisadora nos temas de religião e política Izabella Bosisio, em artigo publicado observa que “o catolicismo se coloca como um elemento fundamental na construção da nacionalidade, do tempo e do espaço públicos, incorporando-se ao calendário sem grandes questionamentos ao ser entendido como parte da tradição e da cultura nacional”.
A Lei Federal 9.093/1995 estabelece regras distintas para feriados civis e religiosos. Os feriados religiosos, limitados a quatro por município, devem seguir a “tradição local”, o que frequentemente favorece as datas cristãs. Já a Lei Federal 12.345/2010 determina que as datas comemorativas devem ter “alta significação para os diferentes segmentos profissionais, políticos, religiosos, culturais e étnicos que compõem a sociedade brasileira”.
No entanto, a implementação dessas diretrizes enfrenta obstáculos. O crescimento da presença evangélica na esfera pública adiciona complexidade a essas disputas. Enquanto buscam estabelecer suas próprias datas comemorativas, alguns setores evangélicos se opõem à inclusão de datas relacionadas a religiões afro-brasileiras, que, de forma predominante, historicamente, demonizam.
Em períodos eleitorais, políticos alinhados a pautas conservadoras frequentemente exploram casos de aplicação da lei como supostos exemplos de “perseguição aos cristãos”, afirma Bosisio. O debate sobre a inclusão de novas datas, como o Dia da Consciência Negra, exemplifica essas tensões. Embora seja uma data comemorativa nacional, sua instituição como feriado enfrenta resistências em diversas localidades.
“O calendário é algo tão naturalizado e incorporado ao nosso cotidiano que, em geral, não nos damos conta das presenças e das ausências nele”, complementa a antropóloga.
Violências sofridas por religiões de matrizes afro-brasileiras
Dados do Disque 100, canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos, indicam que, no primeiro semestre de 2024, foram registradas 1.940 violações à liberdade religiosa no Brasil. Esse número corresponde a 91% do total de violações desse tipo ocorridas em 2023.
As religiões afro-brasileiras são as mais afetadas pela intolerância. Entre 525 violações em que a religião da vítima foi identificada, 276 envolvem seguidores de crenças de origem africana. O Candomblé é a religião com mais violações, com 166 denúncias, seguido pela Umbanda com 124, e 22 casos envolvendo ambas as religiões.
A intolerância religiosa por parte de pastores evangélicos contra religiões de matriz africana tem um histórico notável no Brasil. Em 2023, um caso de destaque envolveu o pastor Yago Martins, que afirmou que todas as religiões pagãs, incluídos o Candomblé e a Umbanda, adoram demônios. Essas declarações geraram grande controvérsia e acusações de intolerância.
Em 2024, o pastor evangélico Felippe Valadão, da Igreja Lagoinha de Niterói, foi indiciado por intolerância religiosa após fazer ameaças contra terreiros de Umbanda durante um evento, em Itaboraí (RJ), em maio de 2022. Ele prometeu acabar com os centros espíritas da região e afirmou que a igreja estaria fechando esses locais, o que gerou grande polêmica e levou à sua acusação.
Esses discursos frequentemente ignoram o princípio da liberdade religiosa e promovem discursos que contribuem para a marginalização e o preconceito contra essas tradições.
Desinformação religiosa como estratégia
Bereia verificou que conteúdos religiosos estão sendo utilizados como estratégia política, principalmente em períodos eleitorais. Embora a intolerância religiosa seja um problema sério no País, a forma sensacionalista como alguns sites gospel abordam o tema pode distorcer a realidade. Isso pode causar reações exageradas e criar confusão sobre como a lei realmente protege todas as religiões, incluindo o Cristianismo.
Publicações como a do Gospel Prime contribuíram para a disseminação de informações que levaram diversos perfis em mídias sociais a atribuírem o caso a uma suposta perseguição a cristãos.
O conceito de perseguição a cristãos tem sido amplamente explorado como pretexto para abusos do direito à liberdade religiosa, como Bereia já tratou. A ideia ganhou mais força no Brasil a partir de agosto de 2021, quando pesquisas eleitorais indicaram o crescimento da oposição à reeleição do então presidente Jair Bolsonaro. Desde então, houve um aumento nas publicações em mídias digitais sobre a ameaça de fechamento de igrejas e tentativas de silenciar líderes religiosos e professores cristãos que se opõem a questões de diversidade sexual e pluralidade religiosa. A retórica da “Cristofobia”, criada por milícias digitais, apela para o imaginário evangélico, explorando a noção de que a perseguição é uma prova de fé e é amplamente divulgada em igrejas e músicas gospel.
A antropóloga, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense e do Instituto de Estudos da Religião Christina Vital explica que a liberdade religiosa é o direito de praticar qualquer religião. O Estado laico é importante para garantir essa liberdade, mas não é o único fator. A sociedade e a cultura também são essenciais para respeitar e valorizar a diversidade religiosa. A Constituição de 1988 reforça a laicidade do Estado e a liberdade religiosa nos artigos 5º e 19. No entanto, essa liberdade deve respeitar outros direitos e pode ter limitações legais. Isso significa que todos podem praticar e expressar sua religião, inclusive convidar outras pessoas a participarem e se converterem. No entanto, essa liberdade não permite desrespeitar ou ofender outras religiões.
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Bereia classifica a matéria do Gospel Prime como imprecisa. De fato, o site religioso relata o ocorrido, porém, insere comparação com outro caso mesclando informação e opinião em relação ao tema da liberdade religiosa, sem oferecer referência com base no Direito.
O Gospel Prime, bem como outros com identidade religiosa evangélica, têm explorado a ênfase na aplicação da lei com a alegação de restrições à liberdade religiosa, o que se revela falso. Leitores e leitoras devem estar atentos a esta prática e verificar a veracidade de publicações antes de qualquer compartilhamento.
Referências de checagem:
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https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2024/07/6910024-mpf-denuncia-pastor-por-associar-iemanja-a-coisas-maleficas.html. Acesso: 6 ago 2024.
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Foto de capa: Wikimedia Commons