Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Eliane Brito
Quando observamos a construção das narrativas neoconservadoras – aquelas que respondem ao fenômeno atual, observado em democracias de vários países, caracterizado por uma ideologia conservadora, por alianças entre atores diversos (religiosos ou não), pela juridificação da moralidade e pela defesa do capitalismo mediante sua relação com o neoliberalismo – na América Latina, especialmente no Brasil, algumas características se destacam, tais como a utilização de emoções como ativo político, a atribuição de todas as mazelas sociais à desordem moral e a rápida assimilação das novas tecnologias de informação, assim como das novas formas de mensagem.
A utilização das emoções para determinado fim não é algo inédito, principalmente no meio político, e tem sido matéria de estudo desde a Grécia Antiga. Embora tenham sido objeto das reflexões de Platão, é o livro II da Retórica de Aristóteles, que ficou conhecido como A Retórica das Paixões, aquele que sistematizaria de modo mais completo as paixões (páthe), elencando as mais comuns e os pré-requisitos necessários para que um retor obtivesse sucesso. Segundo o filósofo grego, paixões são “todos aqueles sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem variar seus julgamentos” (Aristóteles, 2000). Se consideramos que o objetivo final da Retórica é a persuasão, um bom retor será aquele capaz de encontrar ou suscitar em seu público as paixões disponíveis. Esse pré-requisito da disponibilidade é muito importante, pois “um auditório só irá sentir determinada paixão (afeição) se estiver aberto, de acordo com sua predisposição cognitiva, a sentir aquela emoção” (Figueiredo, 2019).
Pensando no contexto brasileiro, principalmente a partir de 2013, é possível afirmar que houve uma conjuntura favorável para que as ideias neoconservadoras fossem disseminadas e absorvidas. A crise pela qual passávamos não era apenas social, provocada pelo capitalismo neoliberal, mas também institucional. Com a espetacularização, pela mídia convencional, por meio da extensa cobertura da operação Lava Jato, a descrença com a política, com os “políticos profissionais” e com a própria democracia atingia o ápice. Além disso, a conquista de direitos por parte das minorias culminaria em uma reação por parte das classes altas, médias e também de milhões de desempregados que não se viam beneficiados por ações afirmativas e políticas voltadas aos direitos dos grupos minorizados. Por fim, mas não menos importante, a presença cada vez maior de atores religiosos na arena política representava um aumento das pautas morais, o que seria responsável pelo recrudescimento dos valores conservadores no espaço público.
É justamente como uma reação que o neoconservadorismo religioso se apresenta. Uma resposta a tudo aquilo que culpa pela desordem social.
Durante o Seminário (GREPO, 2021), duas falas evidenciaram quais atores políticos melhor perceberam as paixões disponíveis e como se utilizar delas. O sociólogo Juan Marco Vaggione destacou, como um dos fatores importantes para o crescimento do neoconservadorismo na América Latina, “a crescente e forte insatisfação com a política que, mesmo em alguns países, é insatisfação com a democracia” e que essa “construção de uma cidadania antipolítica foi facilmente cooptada pelos setores da direita, religiosa ou não”. A cientista política Flávia Biroli, por sua vez, ao tomar como parâmetro o Brasil, considerou “muito efetiva politicamente a mobilização de narrativas sobre uma certa correspondência entre ordem social e ordem moral desejável (…) em que se conectam temas que seriam muito apartados, não fosse o modo como a direita religiosa (…), situada numa relação com a extrema-direita no poder, conecta esses temas”. De sua fala também é possível recuperar a noção de “moralização das inseguranças”. Tal conceito, para ela, é “uma chave para o neoliberalismo como política”, pois
O apelo a inseguranças reais se faz no interior de um enquadramento no qual o suporte possível é o da família nuclear, heterossexual, responsável pelos seus (…) O problema, nas narrativas neoconservadoras, seria de ordem moral. Melhor dizendo, o desvio e a captura do tradicionalismo levariam à insegurança, à falta de referências, ao caos. (…) A família cristã seria o contraponto à corrupção moral – o que incluiria a moral sexual e a captura de bens públicos por políticos e empresários (Biroli; Machado; Vaggione, 2020).
Se a natureza do problema é moral, então, em nome de Deus, da Pátria e da Família, tudo é permitido para restaurar a ordem. A plataforma deixa de ser exclusivamente política e mais se assemelha a uma agenda de costumes. Portanto, a guerra é ideológica. Propõe-se, então, uma verdadeira cruzada contra fantasmas do passado (comunismo/marxismo cultural), contra ameaças vagas (ideologia de gênero), contra os direitos sociais e os direitos humanos; enfim, contra todos os inimigos que devem ser aniquilados. O discurso do bem contra o mal é expresso pela separação “nós” versus “eles”. Não à toa, temos o frequente uso da categoria “cidadão de bem” na retórica do neoconservadorismo. A não pertença a esse grupo define o “outro”, o adversário. A polarização é estimulada e não se governa para todos, e sim para aqueles que lhe são iguais, pois “(…) o jogo não consiste mais em unir as pessoas em torno de um denominador comum, mas, ao contrário, em inflamar as paixões do maior número possível de grupelhos para, em seguida, adicioná-los à revelia. Para conquistar uma maioria, eles não vão convergir para o centro, e sim unir-se aos extremos” (Empoli, 2019).
Recorrendo novamente a Aristóteles, podemos dizer que, à disponibilidade do auditório, une-se à identificação com o orador. Antes mesmo de se eleger, em 2018, o candidato à presidência da extrema direita, Jair Messias Bolsonaro, construiu uma figura anti-establishment, antissistema. Ainda que Bolsonaro fosse um político profissional, associou sua imagem à patente do exército, acionando no imaginário popular o saudosismo de um período próspero – que na verdade nunca existiu –, quando os militares estiveram no poder (1964-1980). Também rechaçou a velha política e se colocou “acima de qualquer suspeita”, por nunca ter se envolvido em nenhum episódio de corrupção. Quando se declarou contrário à “ditadura do politicamente correto”, desfilando inúmeras falas repletas de misoginia, homofobia, racismo e xenofobia, foi elogiado como alguém que “não tinha medo de dizer a verdade”. Quando levantou a bandeira contra a “ideologia de gênero”, apresentando-se como alguém a favor da família tradicional, acenou para os valores tradicionais cristãos. Assumiu, assim, a postura de “salvador da pátria”, de única pessoa capaz de livrar o Brasil da ameaça comunista. O “mito” foi construído sob os signos da austeridade, da honestidade e da moralidade. Seu maior feito, no entanto, foi passar a imagem de homem comum com o qual a maioria de seus eleitores se identificaram.
É preciso pontuar, também, que as redes sociais contribuíram de forma decisiva para a ascensão da extrema direita no Brasil. Se o que ficou conhecido por Jornadas de Junho, em 2013, foi a primeira demonstração do poder da internet, ao contribuir para a realização de manifestações apartidárias, não é erro afirmar que foram os atores neoconservadores que melhor souberam observar este fenômeno e posteriormente se aproveitar não apenas do alcance desta tecnologia, como também das novas formas de comunicação, tais como mensagens curtas, imagens e hashtags. O maior entendimento sobre as formas de mobilizar opiniões e criar engajamento também reforçou a imagem anteriormente criada de seu candidato à presidência – a de homem comum e mais acessível – ao parecer “mais próximo” de seus eleitores. O mais importante, porém, foi a rápida disseminação das mensagens com conteúdos falsos, errados ou duvidosos, que além de desinformar, conseguiram aumentar o clima de insegurança e acirrar ainda mais a polarização, por meio dos discursos de ódio; algo que o sociólogo Roberto Romano definiu como “a tecnologia a serviço da boçalidade” (Facchin; Machado, 2018). O uso de robôs e o disparo de mensagens em massa, seguindo o modelo norte-americano, tiveram um impacto inédito nas eleições de 2018.
A vitória do neoconservadorismo religioso no Brasil foi a da narrativa mais bem aceita, pois, a maioria das estratégias cumpriu as regras do jogo democrático. Uma política que flerta com o autoritarismo e com a violência angariou milhões de votos travestida de revolução, de mudança, quando, na verdade, representava uma série de retrocessos, a busca de refazer os abalos provocados à hierarquia tradicional.
Apelar às emoções perceptíveis na sociedade não é proibido, tampouco uma novidade. Se anteriormente o chamamento da esquerda foi à esperança, a extrema direita apostou nos ressentimentos e nas inseguranças, potencializando-os ao máximo e suscitando outras paixões igualmente poderosas como ativos políticos, tais como o medo e o ódio. Afinal, como já nos alertava o sociólogo espanhol Manuel Castells, “torturar corpos é menos eficaz do que moldar mentalidades” (Castells, 2013) e, como foi percebido pelo cientista político Henrique Costa, durante as primeiras análises da eleição de 2018, “[a] extrema direita, antes de ganhar o parlamento, ganhou corações e mentes e espalhou sua mensagem para todos os cantos do país” (Facchin; Machado, 2018).
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Eliane Brito é bacharel e licenciada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o Grupo de Pesquisa Gênero, Religião e Política – GREPO, sediado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.
O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03 e 01/04/2021, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a terceira de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LARUNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).
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Foto de Capa: Protesto pró-impeachment de DIlma Rousseff. Por: Bruno Peres/Esp CB
Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Teresinha Ferreira Leite Matos
A “ideologia de gênero” é um inimigo criado pelo Vaticano? A “ideologia de gênero” é uma invenção? Ela deve ser objeto de análise mais aprofundada? A partir da pergunta “Qual o lugar da “ideologia de gênero” no cenário (neo) conservador?” foram suscitadas, durante o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina, essas e outras perguntas. O objetivo deste texto é localizar onde e quando o termo surgiu e que trajetórias foram traçadas em seu processo de disseminação.
“Ideologia de gênero” é uma “invenção” da Igreja Católica e faz parte da estratégia de negar os avanços dos movimentos feministas e LGBTQ+, explicitados no reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos e casamento igualitário. Parece que a “ideologia de gênero” se tornou um fenômeno em si e carece ser estudada mais profundamente. O constructo se traduz em estratégia discursiva considerada precária epistemologicamente, mas eficaz na formação da opinião pública (Lionço, 2020), e também com eficácia política, vide o presidente Jair Bolsonaro que foi eleito em 2018 usando, dentre outras bandeiras ultraconservadoras, o combate à “ideologia de gênero”.
A “ideologia de gênero” é vista como categoria conservadora produzida nos muros do Vaticano, durante os papados de João Paulo II e Bento XVI. Inventaram um “inimigo” com o propósito de restaurar a ordem moral calcada nos valores tradicionais, que imaginam ameaçada. Embora os conceitos por trás da ideia de “ideologia de gênero” sigam importantes no papado de Francisco, a maneira como suas falas reverberam na opinião pública traz complexidades para a análise.
O Padre Paulo Ricardo, considerado, segundo as pesquisas do GREPO, um mediador cultural para o tema que ajuda a disseminar o termo no Brasil, quando analisa a questão nunca cita o Papa Francisco, reforçando a personalidade ambígua do papa atual que se nega a abençoar os casais homossexuais, mas é reconhecido como progressista por boa parte da sociedade brasileira.
Os documentos da Igreja Católica do papado de Francisco não utilizam o termo “ideologia de gênero” em português, como aponta levantamento feito na pesquisa “Feminismo e religião: uma análise do pensamento do Papa Francisco sobre a “ideologia de gênero”, objeto do seminário. Curiosamente são referenciados apenas no inglês termos gender ou gender theory. Mas nas redes sociais e blogs, católicos conservadores e padres – além dos políticos e a mídia em geral – falam amplamente dessa “ideologia de gênero”. Nos 25 vídeos produzidos pelo canal do YouTube do Padre Paulo Ricardo (Christo Nihil Praeponere), analisados na pesquisa, entre 2012 e 2020, 15 registram o descritor “ideologia de gênero”.
Desde a década de 1990, a Igreja Católica começou a atuar fortemente por meio das suas lideranças leigas conservadoras em conferências internacionais para que o termo gênero fosse retirado dos documentos oficiais da ONU. Dale O´Leary, ativista católica norte-americana, iniciou essa “guerra” semântica com sua obra “Gender Agenda”, lida e reproduzida por ativistas antigênero no mundo todo. Essa atuação antigênero, também abraçada pelos evangélicos neopentecostais, foi tomando corpo nos países do Norte e nas primeiras décadas do século XXI em países do Sul Global, especialmente na América Latina. Ela chega ao grande público por meio das redes sociais pelas palavras e vozes de padres, pastores e políticos ultraconservadores. Os pastores a “emprestaram” dos católicos e hoje estão entre os principais articuladores do termo na arena pública.
No Brasil, a campanha antigênero ganhou relevância em 2014 e foi impulsionada pelas discussões do Plano Nacional de Educação. Ele foi debatido na Câmara Federal e, depois, em estados e municípios brasileiros. Essa “cruzada santa” continua hoje nos legislativos municipais. Vereadores eleitos em 2020 com a bandeira das campanhas antigênero ameaçam fechar escolas que usem o pronome neutro com pessoas não-binárias. Onze dos 63 vereadores apoiados por Bolsonaro fizeram propostas contra a linguagem inclusiva (0 Globo, março de 2021).
Dessa forma, podemos começar a responder a algumas das perguntas colocadas no início do texto. Sim, a “ideologia de gênero” é uma invenção do Vaticano, um conceito elaborado para taxar de “ideológico” as teorias de gênero e a defesa de direitos. É um conceito também eficaz, que passou a fazer parte do vocabulário e das estratégias de diferentes setores conservadores, como padres e leigos católicos, evangélicos e políticos. O aprofundamento da análise do termo, assim, pode ajudar a entender as estratégias do campo conservador nos países da América Latina.
Lionço, Tatiana (2020). “’Ideologia de Gênero’ como elemento da retórica conspiratória do ‘globalismo’”. Em: Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp, pp. 373-392.
Vaggione, Juan Marco; Machado, Maria das Dores. “Religious Patterns of Neoconservatism in Latin America”. POLITICS & GENDER 16(1) 2020.
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Teresinha Ferreira Leite Matos, jornalista, mestra em Ciência da Religião pela PUC/SP e integrante do Grepo.
O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03 e 01/04/2021, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a terceira de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LARUNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).
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Foto de Capa: Folha PE. Foto: Jarbas Araújo/Alesp (Reprodução)
Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Tabata Pastore Tesser
Essa crônica tem como objetivo suscitar reflexões pessoais acerca do pacto programático-religioso exercido por setores religiosos em torno da agenda anti-gênero. A reflexão é fruto das palestras ministradas no Seminário Internacional “Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina”, promovido pelo Grupo de Estudos em Gênero, Religião e Política da PUC/SP (GREPO) em 2021.
No Seminário Internacional, pesquisadoras e pesquisadores abordaram como a agenda anti-gênero atua como um dispositivo retórico de cunho internacional com objetivo de mobilizar setores da sociedade rumo à uma “cidadania anti-política”. Essa “cidadania anti-política”, abordada pelo pesquisador argentino Juan Marco Vaggione, tem como foco executar uma politização reativa nas democracias e, em especial, nas democracias latinoamericanas por atores neoconservadores confessionalmente religiosos ou não.
A unidade programática de setores neoconservadores religiosos se espraia para as direitas políticas não confessionais a fim de propagar uma “cidadania anti-política” que tem como objetivo comum estabelecer uma “politização da moral sexual conservadora”. A agenda anti-gênero enraizada na América Latina por esses setores distintos entre si mas unitários no programa pela “politização da moral sexual conservadora” é, pra Juan Marco Vaggione, uma resposta ao impacto dos movimentos feministas e pró-diversidade sexual na política contemporânea.
Um dos “dispositivos retóricos” para ascensão dessa moral sexual conservadora é a propagação da compreensão familista desempenhada, apesar das diferenças teológicas históricas, por setores (neo)conservadores católicos, pentecostais e neopentecostais. Um dos pilares para a politização dessa “moral sexual conservadora” é a unidade programática em torno da compreensão heteronormativa e patriarcal da família, oriunda do familismo.
A articulação transnacional em torno da farsesca retórica da “ideologia de gênero” é um exemplo de articulação comum entre setores religiosos diversos que proporcionou – como mencionou a pesquisadora colombiana Sandra Mazo – um “ecumenismo (neo)conservador” na defesa irrestrita da agenda anti-gênero.
Como apontado pela pesquisadora Sandra Mazo, o ecumenismo (neo)conservador obtém um “aporte teórico-narrativo” com foco em quatro aspectos para balizar o discurso sacrossanto da agenda anti-gênero. Um: a defesa da vida, contrastando com os Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (DSDR), em específico o direito ao aborto. Dois: a promoção irrestrita do matrimônio e da família heternormativa (familismo). Três: o uso do conceito de liberdade religiosa (cristofobia) a fim de confessionaliza as políticas públicas para igualar os privilégios públicos aos interesses religiosos. Quatro: a imersão na educação como meta estratégica voltada à doutrinação cristã conservadora na comunidade escolar.
Seguindo os aportes teóricos mencionados acima, arrisco que devemos partir de perguntas-pistas para compreender como funciona esse pacto programático-religioso. É possível afirmarmos que o ecumenismo (neo)conservador contemporiza um alinhamento programático em torno da agenda anti-gênero mas há divergências nas estratégias executadas por esses atores? Os diferentes atores usam os mesmos meios e formas para propagação dessa modernização retórica? O que eles têm em comum – na última década – como estratégia para propagação dessa politização da moral sexual conservadora?
Uma das pistas é compreender o uso recorrente das comunicações midiáticas como forma de intensificação dessa “modernização retórica”. A agenda desempenhada por esse ecumenismo (neo)conservador a fim de exercer uma “politização da moral sexual conservadora” indica que, apesar dos agentes terem o mesmo objetivo comum, o fazem de maneiras diferentes e operam seus dispositivos retóricos reacionários de diferentes formas no campo político, jurídico, social e religioso.
Em se tratando da Igreja Católica, setores neoconservadores como o Centro Dom Bosco, liderado pelo Padre Paulo Ricardo, por exemplo, desempenham o dispositivo retórico mais doutrinal e confessional pela “politização da moral sexual conservadora” por meio de intensas agendas de formações onlines (cursos e lives no YouTube). A associação privada de fiéis Comunidade Católica Shalom, fundada pelo Arcebispo Moysés Louro de Azevedo Filho, cultua seu dispositivo retórico reacionário no aspecto mais emotivo, articulando ritos nem tantos doutrinais com uso frequente das redes sociais, além da publicação de artigos contrários à “ideologia de gênero” em seus sites.
No âmbito internacional clerical católico, como apresentado pela pesquisadora brasileira Maria José Rosado Nunes, temos o papado de Francisco, não analisado usualmente como parte do que tem sido chamado de “neoconservadorismo” uma vez que promove algumas agendas que não se encontram neste campo, como a Teologia o Povo. No entanto, no que se refere aos debates de gênero, o Papa é alinhado discursivamente, e logo politicamente, ao conservadorismo. A intensificação das campanhas anti-gênero entre 2013 e 2019 contou com auxílio do papado de Francisco por meio de documentos pontifícios, pronunciamentos papais, em voga nos termos de “colonização ideológica” e “ideologia de gênero”, ambas citadas no papado a partir de 2013. Termos esses propagados também pelas redes sociais oficiais de Francisco.
Uma das características dessa intensificação das campanhas anti-gênero é justamente como ela vem sendo apropriada por setores protestantes, gerando um ecumenismo neoconservador em torno da agenda anti-gênero.
Observando o campo evangélico, multifacetado e diverso como o catolicismo, temos o exemplo da Ministra Damares Alves, agente política histórica das campanhas internacionais “pró-vida e pró-família” no Brasil. Suas declarações no Twitter sobre “defesa da vida e da família” são constantes, o que proporciona uma reflexão de que o uso das redes sociais por atores religiosos conservadores e neoconservadores são uma arena midiática em disputa na agenda anti-gênero. Ambos atores religiosos conservadores executam estratégias discursivas semelhantes (“ideologia de gênero”, propagação da família, defesa da vida, liberdade religiosa) mas o fazem de diferentes maneiras na arena pública.
Partindo das perguntas-pistas, reflito que a noção de “ideologia de gênero” foi apropriada nos canais midiáticos e nas redes sociais pela direita religiosa como uma forma comum de referir-se a gênero pela direita política até tornar-se uma pauta de Estado, como na interferência nos planos de educação, por exemplo. O sintagma inicial da “ideologia de gênero” inicia-se no campo católico, se espraia para os setores evangélicos e afunila sua agenda nos grupos anti-direitos como um todo, sendo religiosos ou não.
A “ideologia de gênero” não ficou restrita à sua origem católica, ela foi, ao longo do tempo, sendo ressignificada e retrabalhada pela direita política junto a outros setores religiosos não-católicos. Há desalinhamentos teológicos no modo de promoção da “cidadania anti-política” mas há um pacto programático de setores religiosos, portanto ecumênicos, na hora de executar a mesma agenda político-discursiva contra o gênero.
O ecumenismo (neo)conservador compartilha um pacto programático de caráter global que tem como foco a propagação de uma aliança transnacional pró-família (familismo) e que se desdobra no questionamento político dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (DSDR). Setores religiosos atuam com campanhas transnacionais em torno de um programa com dois eixos principais: a defesa da vida desde a concepção (pró-vida) e a defesa da família (nos moldes do familismo).
Dessa forma, conclui-se que a agenda anti-gênero executada pelo ecumenismo (neo)conservador tem como objetivo a propagação de um neoconservadorismo cristão pela retomada da “moral familista unitária” (Vaggione, Biroli, Campos Machado, 2020) no que refere-se a moral sexual cristã. São as agendas anti-gêneros “novas formas de totalitarismo”[1] (Bracke, Paternotte, 2018) no século XXI baseadas em dogmas religiosos cristãos conservadores que visam a defesa da “lei natural” e provocam um retorno da Igreja Católica aliada a setores pentecostais a um regime de diferença sexual. Regime este desempenhado pelo ecumenismo (neo)conservador na utilização estratégica das redes sociais com objetivo de modernizar a retórica dos discursos reacionários.
[1] Ver Sara Bracke e David Paternotte, “Desentrañando el pecado del género”. Habemus Género! La Iglesia Católica y la Ideología de Género. Gênero & Política América Latina e Sexuality Policy Watch, 2018, pp. 08-25.
Referências
BIROLI, Flávia, MACHADO, Maria das Dores Campos e VAGGIONE, Juan Marco. Gênero, Neoconservadorismo e Democracia: disputas e retrocessos na América Latina. 1. ed – São Paulo. Boitempo, 2020.
BRACKE, Sara e PATERNOTTE, David. “Desentrañando el pecado del género”. Em: Sara Bracke e David Paternotte (eds.), Habemus Género! La Iglesia Católica y la Ideologia de Género. Gênero & Política América Latina e Sexuality Policy Watch, 2018, pp. 08-25.
GREPO, Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Seminário Internacional: catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. 31 de março de 2021 e 01 de maio de 2021. Youtube. Disponível em 10/04/2021 <https://www.youtube.com/watch?v= m0fG3Wbh1Dk & t=3092s>.
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Tabata Pastore Tesser é mestranda em Ciência da Religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e integrante do Grupo de Estudos em Gênero, Religião e Política da PUC/SP (GREPO).
O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03/21 e 01/04/21, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a primeira de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LAR-UNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO/PUC-SP e LAR/Unicamp, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).
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Foto de capa: Marcha da Família Cristã pela Liberdade (Reprodução).
Circulou em matérias jornalísticas na última semana a declaração do Ministro da Educação Milton Ribeiro, em sua participação na Aula Magna da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em 26 de abril. No evento, transmitido ao vivo pelo canal da instituição no Youtube, o ministro disse que crianças de 9 e 10 anos não sabem ler, mas sabem colocar camisinhas.
“Ludmila, professora Ludmila [referindo-se a Ludmila Oliveira, reitora da Universidade Federal do Semi-Árido (Unifersa), que estava presente no evento], crianças com 9 anos, 10 anos, não sabem ler… Sabe tudo, – com respeito a todas essas senhoras presentes – sabe até colocar uma camisinha, mas não sabe que ‘B’ mais ‘A’ é ‘BA’. Estava na hora de dar um basta nisso”, afirmou o ministro a partir de 32 minutos e 50 segundos.
Em seguida, Ribeiro disse que foi levado ao Tribunal de Contas da União (TCU) por ter retirado o item de questões de gênero do edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para crianças de 6 a 10 anos. “Onde já se viu eu começar a discutir esses assuntos? Não que eu seja contra, respeito a orientação de todos, mas acho que não temos o direito de violar a inocência de uma criança nessa idade, de 6 a 10 anos. (…) Não pode ser assim. As pessoas têm liberdade para escolher o que querem, mas nesse ponto sou bem radical. Eu acho que existe idade para tudo. Pago esse preço, mas quero dar minha contribuição com o futuro do Brasil”, disse o ministro, que ainda falou ter recebido apoio do Tribunal.
O MEC no Tribunal de Contas da União
Ao mencionar que o MEC foi levado ao TCU, o ministro fez referência à ação da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) contra o MEC. O assunto do processo era, de acordo com TCU: “a inscrição e avaliação de obras didáticas, literárias e pedagógicas para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD)”. O PNLD cumpre a função de comprar e distribuir livros didáticos para educação básica (até o ensino médio) e possui critérios para participação das obras no programa.
Em suas redes, o ministro comemorou a vitória se referindo ao Ensino Infantil. Pelo sistema de busca do TCU não foi encontrado outro processo relacionado ao PNLD 2023, o programa que abrange conteúdos dos anos iniciais do Ensino Fundamental e que foi modificado pelo MEC em relação à versão anterior.
O que mudou no PNLD 2023
O Ministro faz referência em seu discurso na UFPB ao edital do PNLD 2023, direcionado aos anos iniciais do Ensino Fundamental, que promoveu mudanças em relação ao Programa de 2019. Essa última edição foi redigida no governo Michel Temer (PMDB) pelo ministro Rossieli Soares (atual secretário estadual de Educação do Estado de São Paulo).
O edital de 2019 tinha uma seção específica de avaliação com o título “Observância de princípios éticos e democráticos necessários à construção da cidadania, ao respeito à diversidade e ao convívio social republicano” (p. 29). Nele, eram excluídos livros que contém diversos estereótipos e preconceitos, entre eles, religioso, socioeconômico, racial, orientação sexual. Em outro tópico, o texto exclui explicitamente obras que tratam da temática de gênero de forma “sexista não igualitária, inclusive no que diz respeito à homo e transfobia” (p. 31).
Já o PNLD 2023 não fala em exclusão, mas em avaliação com uma seção específica nomeada “Observância aos princípios éticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social republicano” (p. 37). Ficaram de fora, portanto, os termos “democráticos” e “respeito à diversidade”. Dentro dessa seção, o texto diz que as obras devem “representar a diversidade cultural, social, histórica e econômica do país nos textos, enfoques e exemplos utilizados nas obras, evidenciando a contribuição de diferentes povos na formação do Brasil e suas regiões” (p. 38). Além disso, a seção também diz que as obras devem “estar livre de preconceitos ou discriminações de qualquer ordem;” e “estar isenta de qualquer forma de promoção da violência ou da violação de direitos humanos” (p. 39).
A única outra menção à sexualidade que o PNLD 2019 faz é aquela em que diz seguir a Resolução 7/2010 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE/CBE) no item “Observância de temas contemporâneos no conjunto dos conteúdos da obra” (p. 33). O PNLD 2023 também afirma observar a Resolução 7/2010.
Vale destacar que a Resolução 7/2010 fixa Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental anos. Consta no parágrafo 3º do artigo 16º: “Aos órgãos executivos dos sistemas de ensino compete a produção e a disseminação de materiais subsidiários ao trabalho docente, que contribuam para a eliminação de discriminações, racismo, sexismo, homofobia e outros preconceitos e que conduzam à adoção de comportamentos responsáveis e solidários em relação aos outros e ao meio ambiente” (p. 5).
É ao se referir a essas alterações que Ribeiro se diz contra “violar a inocência” de crianças de 6 a 10 anos. A mudança, na verdade, foi a retirada da menção explícita de uma série de preconceitos e discriminações que não deveriam existir em livros didáticos do anos iniciais do ensino fundamental, segundo documento de 2019. O documento 2023 apenas diz que as obras devem estar isentas de preconceitos e discriminações. Portanto, nada relacionado à sexualidade, como o ministro quer fazer crer, tema recorrente por políticos que disseminam desinformação por pânico moral, como tratado em diversas matérias do Coletivo Bereia.
Repercussão da mudança
A retirada desses termos repercutiu quando o edital foi publicado, em fevereiro de 2021. A deputada federal Tábata Amaral (PDT-SP) protocolou um Projeto de Decreto Legislativo que pede a suspensão de trechos do PNLD 2023. A crítica da parlamentar se concentrou na retirada dos termos “especial atenção para o compromisso educacional com a agenda da não-violência”, e a vedação de retratar “negativamente a imagem da mulher” (substituída por “promover positivamente a imagem dos brasileiros, homens e mulheres”). Tábata também criticou a retirada dos termos “respeito à diversidade” e “democráticos”.
O chefe do MEC respondeu em uma sequência de tweets, argumentando que o Programa não está fora da lei e segue a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, que orienta os currículos de escolas privadas e públicas do país). A BNCC, argumentou ele, trata de racismo no 8º ano do Ensino Fundamental e da violência contra a mulher no 9º ano desta etapa.
Em resposta ao ministro, a assessoria da parlamentar afirmou que “os anos iniciais não são compostos apenas de português e matemática, conforme o ministro Milton Ribeiro afirmou. Nesta fase, os currículos já são ampliados, com as disciplinas de história, geografia e ciências. Ou seja, a criança já tem contato com conceitos como escravidão, culturas, descendências, diversidade, dentre outros”.
Claudia Costin, ex-secretária de municipal educação do Rio de Janeiro e especialista na área, comentou ao G1 o argumento do ministro. “Mas por que não pode falar sobre isso antes? Não tem nada na BNCC que permita obras com conteúdos que fomentem violência contra a mulher. Nós não temos que ter livros preconceituosos, isso seria motivo para rejeitar, como estava no edital de 2019″.
Já Augusto Buchweitz, cientista que contribuiu para o PNLD 2022 (de educação infantil) avalia que a mudança não terá efeitos práticos sobre as obras didáticas. “O PNLD, em primeiro lugar, observa a Constituição e a BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Depois, vem outras leis complementares. Você não pode, à revelia da Constituição, ter um material que afronte minoria, que afronte idoso. Isso não vai acontecer.”
“Pretende-se que os estudantes, ao terminarem o Ensino Fundamental, estejam aptos a compreender a organização e o funcionamento de seu corpo, assim como a interpretar as modificações físicas e emocionais que acompanham a adolescência e a reconhecer o impacto que elas podem ter na autoestima e na segurança de seu próprio corpo. É também fundamental que tenham condições de assumir o protagonismo na escolha de posicionamentos que representem autocuidado com seu corpo e respeito com o corpo do outro, na perspectiva do cuidado integral à saúde física, mental, sexual e reprodutiva.” (p. 323).
Fazem parte das habilidades previstas ao 8º ano do Ensino Fundamental conhecimento sobre mudanças da puberdade, métodos contraceptivos, doenças sexualmente transmissíveis e discussão das múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética). Todas descritas na página 345 do documento. No 9º ano, a habilidade EF09HI26 prevê “Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas”. Essa habilidade foi mencionada pelo próprio ministro Milton Ribeiro ao rebater críticas ao PNLD 2023.
A última avaliação da alfabetização feita pelo Ministério da Educação (MEC) aconteceu no âmbito do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) em 2019. A prova, no entanto, analisou o desempenho dos alunos no 2º ano do Ensino Fundamental. Isso já inviabiliza uma comparação direta entre os dados das duas avaliações. Outra mudança foi nos níveis de desempenho. A ANA possuía quatro patamares do rendimento dos alunos na prova, o Saeb 2019 produziu oito níveis. Apesar dos resultados apontarem se os estados atingiram ou não a média brasileira, apenas os níveis 1, 2 e 8 foram detalhados da divulgação. Não ficou claro se a média está dentro, acima ou abaixo do desejável.
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Bereia conclui que a declaração do Ministro é enganosa. Em primeiro lugar porque a vitória do MEC no TCU diz respeito ao PNLD 2022 (educação infantil), e não a conteúdos ligados à sexualidade nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Além disso, as mudanças do PNLD 2023 também não retiram temas de sexualidade nos anos iniciais pois não são tratados nesta faixa escolar apenas mudam a redação a respeito de preconceito e descriminação nos livros didáticos. Vale lembrar que a BNCC prevê que temas de sexualidade sejam tratados nos anos finais do Ensino Fundamental. Por isso, apesar de ter se referido corretamente aos problemas que o país ainda enfrenta com a alfabetização de crianças com menos de dez anos, a menção do ministro a crianças de nove anos saberem usar camisinhas não tem base concreta, não tem fonte verificável. Todos estes elementos levam à conclusão de que Milton Ribeiro usou o tema da alfabetização apenas como recurso para fazer críticas ao processo de educação sexual que, na verdade, não é dirigido a esta faixa etária, com disseminação de desinformação por meio de pânico moral.
*Foto de Capa: Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil (Reprodução Fotos Públicas)
As eleições municipais deste ano ocorreram sob condições atípicas. Com todos afetados de um jeito ou de outro pela pandemia, seja enclausurando-se em casa e cumprindo com os protocolos de higiene, seja pela obrigatoriedade da máscara, aferição de temperatura ou álcool em gel em espaços comuns, as mídias digitais angariaram mais tempo, olhos e atenção. Muito se falou sobre as campanhas virtuais, mas a realidade refletiu certa manutenção no modo de fazer campanha: ainda vimos carreatas, panfletagem e encontros presenciais.
Em meio a isso, o agravante da desinformação. Em reportagem no dia 23 de novembro para a Folha, Patrícia Campos Mello expõe os resultados preliminares de pesquisa sobre desinformação na pandemia. A pesquisa é bem enfática, já nessa fase: aqui, a desinformação sobre saúde se ancora na desinformação em benefício político. O escopo é a repercussão de fake news sobre cloroquina, mas podemos nos afastar e observar como a estrutura da desinformação dialoga, em geral, com os interesses políticos. E então vamos para São Gonçalo, cidade da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
O candidato à Prefeito pelo Partido dos Trabalhadores (PT) Dimas Gadelha, que venceu o primeiro turno e agora concorre ao cargo com o Capitão Nelson (Avante), reuniu-se com lideranças evangélicas em São Gonçalo, onde o seguinte material foi distribuído.
O comportamento pode ser uma reação à articulação do pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, que visa denunciar um favorecimento do atual prefeito José Nanci (partido), à candidatura de Gadelha. No discurso em vídeo divulgado em mídias sociais Silas Malafaia denuncia que parte da política municipal do candidato do PT envolveria a divulgação e o ensino da famigerada “ideologia de gênero”.
O assunto é batido nos meios de desinformação, mas a reiteração funciona como um jeito de vencer a entropia natural na transmissão de mensagens: garantir que a informação chegue o mais intacta possível. Logo, não custa lembrar que a terminologia “ideologia de gênero” não existe.
Vamos ser mais específicos: ela existe, mas como um termo cunhado pela própria Igreja Católica, aparecendo em registros a partir de 1990. O objetivo da igreja era criticar o uso do termo “gênero” pela ONU. É o argumento do espantalho: cria-se um argumento para o adversário que nunca foi dito por ele. No caso, acusa-se a ONU e as políticas nacionais de educação de incentivarem a prática sexual entre crianças e adolescentes e os direciona a se tornarem gays.
Já há muito trabalho em desenhar todo o processo ocasionado por declarações como essa, sem que o campo progressista adote também a terminologia (consequentemente, endossando-a). Mas é justamente o que faz Dimas Gadelha. O candidato tem denunciado em sua página uso de fake news pela oposição contra ele. Em meio a isso, porém, se vê rendido a acatar o termo enganoso e garantir que não estaria promovendo a ideologia – que não existe.
Comprometendo-se a ser contra a “ideologia de gênero, a liberação do aborto, a liberação das drogas, ofensas religiosas, doutrinação nas escolas e destruição dos valores da família”, o candidato endossa e afirma que isso existe – e que ele é contra. O comportamento grita o impacto que as fake news têm, em sua campanha e no imaginário popular a seu respeito. No contexto eleitoral, em que cada voto conta (e, portanto, não se mede a “qualidade” do voto), essa adoção visa se aproximar das igrejas, mas faz um desserviço ao campo progressista de esquerda que se propõe a apoiá-lo.
Dois vídeos com conteúdo falso estão sendo utilizados, desde 19 de novembro, em mídias sociais e sites gospel, pela campanha de reeleição do bispo da Igreja Universal do Reino de Deus Marcelo Crivella (Republicanos) à Prefeitura do Rio de Janeiro.
Um deles é a gravação de uma transmissão ao vivo, na manhã de 19 de novembro, na qual Marcelo Crivella aparece sentado a uma mesa, conversando em com o deputado federal, vinculado às Assembleias de Deus, Otoni de Paula (PSC/RJ).
Na conversa, o atual prefeito do Rio Marcelo Crivella afirma que se o seu concorrente no segundo turno das eleições, Eduardo Paes (DEM), vencer o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) será responsável pela educação pública e levará “a pedofilia para as escolas infantis da cidade”. A declaração é confirmada por Otoni de Paula, que diz “já está negociando [a secretaria de educação]… é o que a gente está sabendo”.
Na gravação, Crivella cita Jair Bolsonaro, ao afirmar que o presidente tem um inimigo que, se pudesse, lhe daria outra facada. “Tem um inimigo que queria acabar com Bolsonaro, se pudesse dar outra facada no Bolsonaro, que é o PSOL. O PSOL está com Eduardo Paes. O PSOL, dizem, irá tomar conta da secretaria de Educação”, diz Crivella. “Agora você imagina pedofilia nas escolas. Eu fico imaginando um irmão meu, evangélico, batista, metodista, assembleiano, alguém da Universal, um metodista… imaginando… Jesus disse pra nós que o Reino de Deus é das crianças. Deixar vir a mim os pequeninos porque deles é o Reino dos Céus. Quem recebe uma criança recebe a mim. Jesus se comparou às crianças. E nós vamos aceitar pedofilia na escola, no ensino infantil?”, diz o bispo prefeito. “É o risco que nós estamos correndo se o Eduardo for eleito”, conclui o deputado Otoni de Paula no vídeo.
O deputado do PSC no Rio também publicou vídeo com o mesmo conteúdo em suas mídias sociais. “Estou sabendo que eles [políticos do PSOL] estão negociando, quem sabe, a secretaria de educação e você diz ‘meu Deus, que coisa’. Não, você não tem direito de dizer ‘meu Deus, que coisa’ se você vota no Eduardo Paes [enquanto Otoni de Paula fala, entram imagens de notícias do site Metrópoles e da CBN com o título “Pais reclamam e escola tira livro do deputado Chico Alencar da lista” e “Livro é retirado de escola após pais perceberem que obra é de Chico Alencar”]. Se você é conservador, se você é cristão, e acha normal uma aliança destas do Eduardo com o PSOL vota nele. Só não diga que você não foi avisado depois [entra música com som de terror e a frase “Fontes indicam que a secretaria de educação foi negociada com Freixo e PSOL” seguida de imagem do título de notícia do site Gazeta Brasil “Atendendo pedido do PSOL, STF vai julgar ‘ideologia de gênero’ nas escolas na semana que vem” e da frase “Você sabe o risco que isso significa para nossas crianças?]”. Ao final do vídeo aparece gravação de Jair Bolsonaro, com o crédito “Presidente da República”, em que ele afirma: “Eles querem legalizar a pedofilia, eles querem sexualizar as nossas crianças precocemente nós vamos combater, ou melhor, continuaremos a combater esse tipo de material para os nossos filhos, porque as crianças têm que ser respeitadas em sala de aula [o candidato à presidência mostra o livro que havia citado em campanha e em entrevista no Jornal Nacional à Globo News, em 2018].
A transmissão ao vivo divulgada pela campanha de Marcelo Crivella foi matéria do site de notícias Pleno News, que reproduziu o conteúdo sem contextualização, e afirmou, ao final, em duas linhas que “por conta do conteúdo, o PSOL decidiu acionar a Justiça Eleitoral contra Crivella, segundo o colunista Lauro Jardim, do jornal O Globo” [mídia apontada por Crivella na campanha como um desafeto].
Motivações para o conteúdo
Os dois vídeos da campanha de Marcelo Crivella foram divulgados um dia depois de dois acontecimentos: o primeiro, foi a divulgação, em 18 de novembro, da pesquisa do IBOPE para o segundo turno, que indicou que Eduardo Paes venceria com folga as eleições, com 53% de intenção de votos contra 23% do atual prefeito do Rio.
O segundo foi a nota pública do PSOL, do mesmo 18 de novembro, que proclama “Nenhum voto em Crivella, seguiremos nas ruas e no parlamento defendendo um projeto de esquerda para o povo carioca”. A nota diz que o PSOL, que perdeu o primeiro turno no Rio com a candidata Renata Souza, “não alimenta ilusões com Eduardo Paes” e tece uma série de críticas à gestão dele como prefeito da cidade, por dois mandatos, de 2008 a 2016. O partido afirma, no entanto, que “Marcelo Crivella representa o fundamentalismo religioso o projeto de poder”, portanto, “deve ser derrotado nas urnas”. Nessa posição, o PSOL diz compreender que “o voto em Paes (…) é um veto a Crivella e ao bolsonarismo”.
Reações aos vídeos
Horas depois que os vídeos da campanha de Marcelo Crivella circulavam pelas mídias digitais, o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL/RJ), declarou, em transmissão ao vivo, que o partido entrou com processo contra Marcelo Crivella e Otoni de Paula por acusações caluniosas. Ele nega que haja qualquer negociação com Eduardo Paes por cargos para o partido e fala diretamente a Crivella, a quem classifica como “o pior prefeito do Rio”: “Você vai ser processado, vai responder na Justiça. Isso é o desespero de quem vai tomar uma surra eleitoral. Você vai sair da prefeitura como um ser rastejante. Você é um ser político rastejante, Crivella”.
O vereador eleito pelo PSOL Chico Alencar, que aparece como exemplo no vídeo de Otoni de Paula, também denunciou as afirmações do bispo como mentirosas, em seus espaços em mídias sociais.
Já o candidato Eduardo Paes divulgou uma nota em que também afirma que processará o atual prefeito do Rio:
“Na tarde de hoje, o atual prefeito do Rio Marcelo Crivella fez uma declaração pública de que um acordo meu com o Psol, garantiria a eles a secretaria de Educação e que este fato levaria à promoção de pedofilia nas escolas e que por isso, representaria um risco para as nossas crianças. Em primeiro lugar, não há qualquer acordo político, nem troca de cargos com o Psol, nem de minha parte, nem da deles e, esta atitude reflete o desespero dele com a crescente perspectiva de derrota nas urnas, mas não imaginava que seria capaz de ir tão longe na baixeza e na mentira. Ele será processado eleitoral, cível e criminalmente por essa gravíssima e mentirosa acusação”
Eduardo Paes
As mentiras proferidas por Marcelo Crivella e Otoni de Paula
Desde a campanha eleitoral de 2018, candidatos que buscam apoio de eleitores religiosos recorrem a conteúdo falso e ao pânico moral (terrorismo verbal produzido para criar aversão social a pessoa ou grupo) com base em temas relacionados à sexualidade humana, ao que é denominado “defesa da família tradicional” aliado a “proteção das crianças nas escolas”, e ao enganoso conceito de “ideologia de gênero”.
Bereia já publicou matéria sobre debate entre os candidatos à prefeitura do Rio no primeiro turno, quando Crivella já havia usado de conteúdo falso sobre o PSOL ao dirigir-se à candidata do partido, Renata Souza. Naquele debate, Crivella lançou mão do argumento do “kit gay nas escolas” a ser implantado pelo PSOL, caso vencesse a eleição. Foi a repetição da falsidade disseminada pela campanha de Jair Bolsonaro à Presidência, em 2018.
Sobre a gravação de Jair Bolsonaro utilizada no vídeo do deputado Otoni de Paula, trata-se de vídeo da campanha à Presidência da República em 2018. Na peça, distribuída em mídias sociais em agosto daquele ano, o discurso é dirigido contra o candidato opositor Fernando Haddad, incluindo crítica ao Partido dos Trabalhadores (PT) e às esquerdas, e não especificamente ao PSOL, como Otoni de Paula quer fazer crer. Isto já caracteriza o vídeo do apoiador de Marcelo Crivella como conteúdo enganoso, pois faz parecer que foi produzido por Jair Bolsonaro neste momento da campanha para Prefeituras.
O livro que Jair Bolsonaro mostra na gravação é “Aparelho Sexual e Cia – Um guia inusitado para crianças descoladas”, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, de autoria dos educadores da Suíça e França, Phillipe Chappuis, com o coidinome ZEP e Hélène Bruller. A obra publicada pela Companhia das Letras é destinada à crianças e jovens de 11 a 15 anos, e não para crianças a partir de 6 anos, como circulou nas mídias sociais da época e foi reforçado por Jair Bolsonaro em entrevistas ao Jornal Nacional (Rede Globo) e Globo News, em 28 de agosto de 2018.
Bolsonaro afirmava que o livro foi comprado pelo Ministério da Educação para distribuição em escolas, o que nunca ocorreu, tanto que o PT entrou com representação contra a campanha de Jair Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que resultou na decretação, pelo órgão, de que o “kit gay” não existe e ainda a suspensão de links de sites e mídias sociais com a expressão “kit gay”, usados pela campanha de Bolsonaro para atacar o candidato do PT, Fernando Haddad.
Bolsonaro foi proibido, de acordo com a sentença, de compartilhar este conteúdo, pois ele foi classificado, pela justiça, como notícia falsa. “Nesse quadro, entendem comprovada a difusão de fato sabidamente inverídico, pelo candidato representado e por seus apoiadores, em diversas postagens efetuadas em redes sociais, requerendo liminarmente a remoção de conteúdo. Assim, a difusão da informação equivocada de que o livro em questão teria sido distribuído pelo MEC gera desinformação no período eleitoral, com prejuízo ao debate político”, concluiu o ministro do TSE Carlos Horbach, que assinou a sentença.
Por que Marcelo Crivella usa de mentiras para atacar o PSOL que perdeu o primeiro turno das eleições para a Prefeitura do Rio? Bereia ouviu dois especialistas do Rio que estudam a relação entre política e religião.
A antropóloga pesquisadora do ISER (Instituto de Estudos da Religião) e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ Livia Reis avalia que “por mais que o kit gay seja um projeto relacionado ao PT, como um nome pejorativo do projeto Escola Sem Homofobia ligado ao Fernando Haddad (ex-ministro da educação), o PSOL é um partido que se destaca por defender as pautas identitárias mais incisivamente. A questão da pedofilia é relacionada por estes políticos, que se denominam conservadores, à questão sobre a identidade de gênero, somada à discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos. Eles compreendem que tratar destes temas sexualiza as crianças e abre um precedente para a prática de pedofilia”.
Livia Reis recorda que o PSOL foi o autor da ação no Supremo Tribunal Federal (ADI 5668) sobre a garantia de que o enfrentamento da homofobia aconteça nas escolas, com base no Plano Nacional de Educação [tema de matéria do Coletivo Bereia]. O que se soma à nota do PSOL chamando ao “não voto em Crivella.
A pesquisadora avalia que “como o PSOL foi o partido de esquerda que mais cresceu na Câmara Municipal do Rio nestas eleições, passa a ter sete vereadores, deverá ter uma atuação contundente na próxima gestão e se torna, então, um partido a ser atacado mesmo. Apesar de todos estes temas estarem relacionados ao PT também, é possível inferir que o PSOL se torna alvo de ataques porque cresceu em visibilidade e aumentou o número de vereadores na Câmara”.
Já o sociólogo pesquisador do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde da UFRJ Alexandre Brasil Fonseca avalia que “com alto nível de rejeição, parece que a campanha de Crivella optou por entrar na linha do tudo ou nada. A estratégia escolhida tem parentesco com muitas dos conteúdos e dos imaginários utilizados na campanha de Bolsonaro de 2018. Com isso sela-se uma união e uma estratégia de fazer política compartilhada por ambos. Provavelmente teremos intensa disseminação desse conteúdo por diversos meios e formatos nos próximos dias”.
O sociólogo reconhece que “é lamentável que a estratégia de campanha do prefeito tenha como um dos focos principais a propagação de mentiras que não possuem nem possibilidade causal”. Ele diz não duvidar “da força de uma campanha intensa como parece estar dispostos a fazer, mas imagino que o pouco tempo, a alta rejeição e o acumulado do eleitorado geral, como também do evangélico, em relação ao que foi visto na eleição anterior, devem levar a pouca reverberação disso”. “Por outro lado, a alcunha de “pai da mentira” dada por Paes a Crivella [no debate promovido na noite 19 de novembro pela Rede Bandeirantes] me parece ter muito mais chances de emplacar nessa reta final da campanha”, afirma Alexandre Brasil.
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Bereia classifica os conteúdos dos vídeos da campanha de Marcelo Crivella que circulam em mídias sociais e sites de notícias ligados a pessoas e grupos religiosos como falsos. São ainda caluniosos no tocante ao PSOL ser inimigo de Jair Bolsonaro e desejoso de dar outra facada no presidente. O vídeo publicado por Otoni de Paula é também enganoso pois usa material de campanha de Jair Bolsonaro, de 2018, proibido pelo TSE de ser utilizado à época, fazendo parecer a seguidores que foi produzido em 2020 pelo, hoje, presidente da República.
Em um dos debates promovidos pela Rede Bandeirantes de TV com candidato/as a Prefeituras de 14 cidades do Brasil, na noite de 1 de outubro, o atual prefeito do Rio de Janeiro Bispo Marcelo Crivella (Republicanos), da Igreja Universal do Reino de Deus, recorreu a conteúdos falsos para confrontar debatedora.
Crivella que tenta a reeleição fez uso de mentiras já na primeira pergunta direta que deveria fazer a outro/a candidato/a. Ele escolheu a deputada estadual do PSOL Renata Souza, para indagar o que ela faria, caso vença as eleições, a respeito da “ideologia de gênero nas escolas” e do combate às drogas entre alunos.
Renata Souza respondeu com uma crítica ao prefeito da cidade, acusando-o de negligenciar a pandemia. Na réplica, Crivella retomou a pergunta e acusou:
“Se o PSOL ganhar a eleição nossas crianças vão ter uma coisa que tinham que ter em casa, orientação sexual. Vai ter kit gay na escola e vão induzir à liberação das drogas. Esse é o perigo do PSOL e por isso ela não quer tocar no assunto”.
Na tréplica, Renata Souza retomou a crítica que tinha feito:
“Estou falando de gente que morreu e o senhor quer falar do que o professor quer ensinar na escola? O professor tem que ter debate pedagógico, tem que ter autonomia”.
Ideologia de gênero e kit gay: duas falsidades político-religiosas
O prefeito Marcelo Crivella, que encontra dificuldades para se reeleger no pleito de 2020 por conta denúncias de corrupção, conseguiu se blindar na Câmara de Vereadores contra dois pedidos de impeachment em um período de 15 dias (casos de propina à Prefeitura e “Guardiões do Crivella). Porém, na Justiça o candidato à reeleição tem encontrado mais obstáculos: em 24 de setembro, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) decidiu por unanimidade, por 7 votos a 0, declará-lo inelegível até 2026 por abuso de poder político e conduta vedada a agente público. A defesa de Crivella está recorrendo da decisão e, por isso, ele pode disputar o pleito. Caso seja eleito, precisará de uma liminar para derrubar a decisão do TRE.
Enquanto briga para permanecer candidato, Marcelo Crivella participa dos debates recorrendo a conteúdos que fizeram sucesso entre o público cristão, durante a campanha de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018.
Os dois temas, “ideologia de gênero” e “kit gay”, são objeto de estudos no Brasil e no exterior e de investigações sobre desinformação como estratégia para conquistar apoios políticos, com recurso a valores religiosos, para interferência de líderes e grupos em temas de interesse público.
A estratégia é embasada em terrorismo verbal, impondo o medo de que valores caros a pessoas religiosas, como a família, seriam destruídos. Da mesma forma, toca na questão da sexualidade, aspecto da vida humana tratado de forma frágil por grupos cristãos, frequentemente embasado em repressão e pouco em educação, conforme abordado no clássico estudo “Protestantismo e Repressão”, de Rubem Alves (Editora Ática, 1979). O recurso ao tema da educação e das crianças, como elementos que estariam em risco numa “guerra a inimigos da família”, é usado insistentemente neste tipo de desinformação sem que haja evidências do terror indicado.
Perguntada pelo Coletivo Bereia sobre o que significa Marcelo Crivella usar deste tipo de conteúdo mentiroso para atacar uma adversária, a antropóloga, pesquisadora em Política e Religião, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do ISER Profa. Christina Vital afirma que “Crivella não foi o único a tentar produzir medos nos cidadãos sobre seus adversários. No entanto, diferente dos outros, mobilizou pânicos morais. A sua única intervenção mais detida sobre o tema da educação foi na pergunta que fez à candidata Renata Souza, do PSOL. A um só tempo ele retoma uma pauta das eleições presidenciais de 2018 e outra muito forte na produção da Base Comum Curricular Nacional”.
A Profa. Christina Vital acrescenta que:
“o pertencimento religioso de vários candidatos e candidatas no debate emergiram de um modo menos caricato do que vimos em outras campanhas. Isso chama atenção no sentido de que foi naturalizada aquela identidade e as menções a Deus e à Bíblia não precisavam ser expostas de modo virulento”.
“Este ponto torna mais interessante o pleito: qual ou quais serão então as cartas na manga dos concorrentes à prefeitura? Se a religião não servir como apelo exclusivo de um ou outro, quais serão as estratégias narrativas mais utilizadas? Acompanhemos. Crivella ficou fora do tom ao trazer supostamente valores religiosos daquele modo antigo, como acusação. Foi démodé!”, avalia a antropóloga ouvida pelo Coletivo Bereia.
O cientista político da Fundação Joaquim Nabuco e pesquisador em Política e Religião Prof. Joanildo Buriti foi entrevistado sobre o tema pelo Coletivo Bereia e avalia:
Há muito me acostumei com a forma desabusada como muitos líderes evangélicos inventam consequências ou perigos de certas coisas sem qualquer preocupação com os fatos. Mas não faziam isso no espaço público. Reservaram aos sermões, palestras e aulas de escola bíblica. Não admira que, numa conjuntura que favorece o uso destemperado e aleivoso da linguagem, esse estilo se torne parte do debate público. Não começou com Crivella. Mas ele parecia ter mais compostura em outros tempos. Não há nenhuma evidência de que jamais tenha existido o tal kit gay, nem que a chegada de uma liderança de esquerda à prefeitura signifique que haverá indução à liberação de drogas. Esta nunca foi uma prática de gestores de esquerda até hoje no país. Por que seria agora? Parece que, confrontado com o que foram os pontos fracos de sua gestão, o atual prefeito sente-se em maior segurança recorrendo a um velho estilo de “denúncia do mal” que implica no ataque ad hominem e na transformação de mentiras em verdades.
Bereia classifica a afirmação do candidato Marcelo Crivella à reeleição para a Prefeitura do Rio de Janeiro como falsa. Para retomar a credibilidade com apoiadores religiosos, diante dos casos de corrupção relacionados à sua gestão, o bispo recorre a conteúdos falsos que foram eficazes na campanha eleitoral de 2018, para desqualificar adversários, buscando resultado semelhante.
Este foi o pedido de uma criança ao presidente Jair Bolsonaro durante evento de hasteamento da Bandeira Nacional, em Brasília, no dia 12 de maio deste ano.
Após ouvir o pedido, o Presidente da República Jair Bolsonaro declarou:
No mesmo dia 12, o deputado federal Filipe Barros (PSL-PR) apresentou na Câmara dos Deputados um projeto sobre a questão da ideologia de gênero. O texto determina que tanto o sexo biológico como as características sexuais primárias e cromossômicas devem definir o gênero do indivíduo no país.
Em matéria divulgada na Gazeta do Povo dia 17 de maio, Filipe Barros afirmou:
“Gênero e sexo biológicos sempre foram sinônimos. Quando a teoria queer começa a ser formulada e passa a ganhar espaço em especial nas universidades públicas, gênero passa a significar algo diverso do sexo biológico. Acontece que isso é uma mera teoria, não é ciência”, afirma o deputado. De acordo com ele, o principal objetivo do seu projeto é “desfazer a confusão linguística criada propositalmente por grupos radicais.”
A campanha de Jair Bolsonaro e dos seus apoiadores/as contra a noção falaciosa de ideologia de gênero é antiga. Desde o período de eleitoral para a Presidência em 2018, notou-se que esta seria uma pauta importante em seu mandato.
Mas o que é ideologia de gênero?
O termo surgiu pela primeira vez em 1998, na América Latina, na Conferência Episcopal do Peru em documento eclesiástico intitulada “Ideologia de gênero: seus perigos e alcances”. Mas foi no debate do Plano Nacional de Educação (PNE), que dita as diretrizes e metas da educação, sancionado em 2014, que o termo ganhou força.
Na ocasião, as bancadas religiosas afirmaram que as expressões – igualdade, identidade de gênero, orientação sexual e sexualidade nas escolas – valorizavam uma “ideologia de gênero”, corrente que deturparia os conceitos de homem e mulher, destruindo o modelo tradicional de família.
“Toda a campanha dos setores religiosos conservadores contra a diretriz do PNE deu-se pautada na luta contra o que se classificou como “ideologia de gênero”. Sob o argumento de que gênero constituía uma ameaça contra a família, pois subverteria a sexualidade e a família “natural”, esses setores apostaram fortemente nos sentidos objetivados, portanto dominantes, de sexo e família, para encamparem sua luta contra a discriminação das desigualdades de gênero e de orientação sexual e, não esqueçamos, contra a discriminação das desigualdades étnico-raciais e regionais.”
Desde seu surgimento, a expressão “ideologia de gênero”carrega um sentido pejorativo(negativo, ofensivo). Por meio dela, setores mais conservadores da sociedade protestam contra atividades que buscam falar sobre a questão de gênero e assuntos relacionados, como sexualidade nas escolas. As pessoas que concordam com o sentido negativo empregado no termo “ideologia de gênero” geralmente temem que, ao falar sobre as questões mencionadas, a escola vá contra os valores da família.
Sobre isto, a doutora Sandra Duarte afirma:
“O modelo de família reivindicado por esses grupos, referido sempre como “modelo natural”, responderia aos objetivos divinos para a criação do ser humano. A família só seria legítima se acompanhasse o modelo homem, mulher e filhos, sendo descartadas outras composições. Para isso, é preciso vigiar o sexo, vigiar os corpos e regular a sexualidade, e um dos meios mais eficazes para isso tem sido o da produção do pânico moral por meio da construção do inimigo: as feministas.”
A expressão “ideologia de gênero” não é admitida no mundo acadêmico. Nas universidades, apenas o termo teoria de gênero é reconhecido, e estabelece que gênero e orientação sexual são construções sociais e não apenas determinações biológicas. Já para segmentos da direita, a “ideologia de gênero” é um ataque ao conceito tradicional de família.
O Presidente Bolsonaro faz uso frequente do conceito para criticar governos de esquerda e políticas educacionais que estariam, na visão dele, desviando da concepção tradicional cristã de família, comporta por um homem e uma mulher.
Jair Bolsonaro e “Ideologia de Gênero”
Este casamento ganhou força em 2018 por meio de uma fake news amplamente divulgada pelo então candidato à presidência, Jair Bolsonaro. Em entrevista ao Jornal Nacional, em 28 de agosto de 2018, apresentou o livro –Aparelho Sexual e Cia, da Editora Companhia das Letras, e afirmou categoricamente que a obra fazia parte do material intitulado pejorativamente por ele como “kit gay”, que teria sido distribuído em escolas públicas pelo Ministério da Educação quando Haddad era o ministro da pasta.
“Nesse quadro, entendem comprovada a difusão de fato sabidamente inverídico, pelo candidato representado e por seus apoiadores, em diversas postagens efetuadas em redes sociais, requerendo liminarmente a remoção de conteúdo. Assim, a difusão da informação equivocada de que o livro em questão teria sido distribuído pelo MEC… gera desinformação no período eleitoral, com prejuízo ao debate político”, concluiu o ministro do TSE.
A pesquisadora americana Amy Erica Smith, professora associada de ciência política na Universidade de Iowa e autora do livro Religião e Democracia Brasileira: Mobilizando o Povo de Deus, afirmou que há lideranças evangélicas na política nacional que priorizam duas pautas: “defender interesses institucionais, principalmente a capacidade de evangelizar”, e “combater o que chamam de ideologia de gênero”.
Desde sua campanha para presidente, Jair Bolsonaro fez da pauta “ideologia de gênero” uma de suas prioridades.
No dia 23 de outubro de 2018, cinco dias antes do segundo turno, Bolsonaro afirmou em entrevista para a Rede Gospel de Televisão que se fosse eleito, a “ideologia de gênero” deixaria de existir. Veja a afirmação no minuto 3’40’’ do vídeo.
“Com o tempo começou a se instituir outras coisas à sociedade, como, por exemplo, a mal fadada ideologia de gênero, dizendo que ninguém nasce homem ou mulher, que isso é uma construção da sociedade. Isso é uma negação a quem é cristão e acredita no ser humano. Ou se nasce homem, ou se nasce mulher.”
No discurso de posse no primeiro dia do ano de 2019, Bolsonaro afirmou:
“Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um país livre de amarras ideológicas.”
No mês de junho, o Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores), incorporou o mesmo discurso do presidente criando uma guerra na política externa. Em pelo menos duas reuniões, na ONU e na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, os diplomatas receberam a instrução de ressaltar aos outros países a visão do governo brasileiro, de que “a palavra gênero significa o sexo biológico: feminino ou masculino”.
“Se querem que eu acolha isso, apresente uma emenda à Constituição e modifique o artigo 226. Lá está escrito que família é homem e mulher. Mesmo mudando isso, como não dá para emendar a Bíblia, vou continuar acreditando na família tradicional”, afirmou.
“A educação do Brasil, com as exceções de praxe, não vai muito bem Em grande parte, devemos isso a uma ideologia que, ao longo de décadas, foi se aproximando das escolas. O que nós queremos é que os nossos filhos sejam bem instruídos. O trabalho é de tirar e afastar certas ideologias, como a ideologia de gênero, pessoas que estão preocupadas apenas em fazer com que, no futuro, tenhamos militância.”
No início de setembro, em seu Twitter, Bolsonaro determinou que o Ministério da Educação (MEC) elaborasse um projeto de lei contra a “ideologia de gênero” no ensino fundamental. O anúncio não especifica o que seria considerado um conteúdo inadequado.
Em novembro passado, na 1ª Convenção Nacional do Aliança pelo Brasil, partido que Bolsonaro tentou criar mas não obteve sucesso, foram lidos os cinco princípios da nova sigla. No terceiro princípio nota-se o combate à “ideologia de gênero”. Leia na íntegra:
3º -Defesa da vida, da legítima defesa, da família e da infância: o partido está convicto de que nenhum progresso seria obtido sem a defesa da vida humana, desde a concepção. A vida é o primeiro dos efeitos, sem vida, não há mais o que defender, pois a morte já terá encerrado a possibilidade de qualquer outro direito. Todas as propostas do partido relacionadas à saúde deverão ter como norte a defesa da vida humana, em todas as suas fases. (…) A Aliança pelo Brasil defende também o valor da maternidade como um dos fundamentos da sociedade, para que todas as mulheres gestantes e mães tenham condições dignas de vida, de gestação e criação de seus filhos. Outrossim, o partido se compromete a lutar incansavelmente até que todos os brasileiros tenham o direito de possuir e portar armas para sua defesa e a dos seus. (…) Defesa da família como núcleo fundamental da sociedade. (…) Combaterá a pedofilia e o tráfico de crianças. (…) Combaterá ainda a erotização da infância e a ideologia de gênero. (…) tirar o Brasil dos índices de analfabetismo.
Ainda em 2019, noúltimo dia do ano, Bolsonaro postou em seu Twitter que a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) incluía a “nefasta ideologia de gênero e o aborto”.
Em 2020, a luta contra a falaciosa “ideologia de gênero” continua. Em 12 de janeiro de 2020, Bolsonaro postou em seu Twitter um vídeo do Ministro da Educação, Abraham Weintraub, no qual defende a distribuição de livros didáticos para estudantes da escolas públicas. Ele destaca, contudo, que o material não deve ter “ideologia”.
“É para ensinar a ler, escrever, ciências, matemática, não é para doutrinar.”
Para a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) no Brasil, aprofundar o debate sobre sexualidade e gênero contribui para uma educação mais inclusiva, equitativa e de qualidade, não restando dúvida sobre a necessidade de a legislação brasileira e os planos de educação incorporarem perspectivas de educação em sexualidade e gênero.
“As desigualdades de gênero, muitas vezes evidenciadas pela violência sexual de meninas, expõem a necessidade de salvaguardar marcos legais e políticos nacionais, assim como tratados internacionais, no que se refere à educação em sexualidade e de gênero no sistema de ensino do país.”
Em entrevista ao Nexo, apedagoga e educadora sexual Caroline Arcari, , especialista em Educação Sexual pelo Centro de Sexologia de Brasília e mestre em Educação Sexual pela Unesp, afirmou:
“A visão distorcida sobre a educação sexual virou pauta política conservadora, e as notícias falsas infelizmente contribuem para a reprodução do mito de que ela erotiza as crianças e facilita o acesso de abusadores aos seus corpos.Políticos que vociferam contra a educação sexual sem fundamentação científica alguma, pautados na mentira e na polêmica, estão prestando um enorme desserviço à proteção de crianças e adolescentes contra a violência sexual.”
Bereia conversou com Valéria Vilhena, coordenadora nacional da EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero, sobre as consequências da narrativa conservadora do governo Bolsonaro sobre “ideologia de gênero”. Vilhena afirma que nunca existiu uma “ideologia de gênero”.
“Essa narrativa foi construída para se opor aos direitos da mulher e da população LGBT. Eles constroem esse discurso para mais uma vez se posicionarem e reforçarem a negação da dignidade humana. Essa é a questão. Porque não existe uma “ideologia de gênero” – algo que se referem como uma “crença”, uma crença que se impõe para destruir a família.
Na verdade, não existe e nunca existiu uma ideologia de gênero. O que há é a construção de uma narrativa se utilizando do conceito “gênero” que vem dos estudos de gênero, mas que não tem nada a ver com o que dizem. É muito interessante como eles constroem algo em cima do inexistente. Para pensar o que seria “ideologia de gênero”, primeiro teríamos que pensar sobre o que é gênero. E gênero está especialmente ligado aos estudos das construções e dos papéis sociais, que são imbuídos e intencionalmente definidos ou pré-definidos para homens e mulheres. Não sendo papéis sociais soltos, desconectados de um sistema político-econômico. Se separados, criam mais estereótipos, binarismos. Gênero, ou categoria de gênero, está ligado a relações de poder, e é por isso que não pode estar deslocado das políticas estruturantes do nosso sistema econômico.
O governo Bolsonaro construiu uma narrativa que foi muito bem desenvolvida no sentido de confundir a população, que ganhou bastante força nas últimas eleições por meio de fake news, mas que na realidade é mais uma forma de reproduzir e reforçar a negação de direitos e da dignidade humana para mulheres e populações LGBT.”
Bereia conclui que o modo como o Presidente Jair Bolsonaro trata a temática “ideologia de gênero” corresponde à postura de uma parcela de líderes religiosos no Brasil. Ela tem sido considerada por educadores e pesquisadores uma das mais bem sucedidas noções criadas e propagadas no ambiente religioso para desinformar a opinião pública.
Surgido no ambiente católico e abraçado por grupos evangélicos distintos, o termo trata de forma depreciativa a categoria científica “gênero”, que emergiu de estudos acadêmicos sobre questões relativas a gênero e sexualidade na sociedade, nos EUA, a partir dos anos 1970. O uso da ideia de “ideologia de gênero” desqualifica as lutas por justiça de gênero, pela busca da igualdade de condições entre homens e mulheres e ampliação de direitos para LGBTI+.
Atrela-se, portanto, a categoria científica e as lutas por justiça à noção de “ideologia”, no sentido banalizado de “ideia que manipula, que cria ilusão”. Em oposição à ciência e às causas, defensores do termo propagaram a ideia de que “gênero” seria um instrumento político da esquerda para impor uma sexualidade libertada do que dita a natureza, para permitir que as mulheres tenham liberdade total com seus corpos e para promover o matrimônio homossexual.
A plataforma multimídia brasileira de cobertura diária dedicada à verificação do discurso público Aos Fatos publicou a matéria “Desenhamos fatos sobre a ‘ideologia de gênero’” com esclarecimentos sobre esta desinformação.
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Referências de Checagem:
Youtube: Palácio da Alvorada – 12/05/2020 – Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f9iE_y-CqBc
Gazeta do Povo – Bolsonaro quer lei contra ideologia de gênero. E não é o único. Veja como está a batalha no Congresso. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/ideologia-de-genero-lei-bolsonaro-congresso/
Postagem no perfil do twitter do youtuber Bernardo Küster no dia 18 de novembro de 2019 informou aos seus mais de 300 mil seguidores que, ao que tudo indicava, o presidente dos EUA Donald Trump teria sido alvo de envenenamento intencional. O post também dizia que “seu provador de comida foi hospitalizado e Trump segue para o hospital para exames”. O tweet foi curtido pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL – SP) e teve 15 mil curtidas e quase 4 mil retweets.
Bereia verificou o noticiário nacional e internacional, bem como as mídias de Donald Trump e não encontrou informação de envenenamento do presidente dos Estados Unidos.
De acordo com a secretária de imprensa da Casa Branca Stephanie Grisham, Trump passou por “um exame de rotina, parte de seu exame físico anual” e deixou o hospital depois de duas horas. Ela disse também que o presidente “permanece saudável e enérgico, sem queixas”.
Donald Trump publicou no twitter uma declaração sobre o motivo de sua visita ao hospital: visitar a família de um jovem que passaria por uma cirurgia, aproveitando para fazer a fase um do seu exame físico anual. “Tudo muito bom (ótimo!). Será concluído ano que vem”.
Bereia afirma, portanto, que a postagem do youtuber Bernardo Küster é falsa e tem como objetivo disseminar fake news e obter dividendos políticos com a viralização. Os dados disponíveis sobre a situação em questão contradizem objetivamente o que é apresentado na postagem.
Depois de um ano de ter afirmado que Adelio Bispo de Oliveira, acusado de ser o autor do atentado a faca contra o então candidato a presidente da República Jair Bolsonaro, era militante do PT e assessor da campanha de Dilma ao Senado por Minas Gerais, o líder da igreja evangélica Assembleia de Deus Vitória em Cristo pastor Silas Malafaia publicou, em 9 de novembro passado, em sua conta no Twitter, um vídeo com um desmentido.
As postagens feitas pelo pastor, em 6 de setembro de 2018, tiveram muita repercussão. Matéria do jornal O Globo sobre conteúdo falso relacionado ao atentado a Jair Bolsonaro, publicada dois dias depois, citou o levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas (DAPP) da Fundação Getúlio Vargas. A pesquisa mostrou que uma das postagens sobre o episódio com maior repercussão no Twitter foi a do pastor Silas Malafaia, apoiador da candidatura de Bolsonaro, ligando PT e Dilma Rousseff a Adelio Bispo. Naqueles mesmos dias já se sabia que o homem preso em flagrante não era integrante de nenhum partido político. Até 2014 foi filiado ao PSOL, e não havia qualquer evidência de que atuasse em prol da campanha da ex-presidente Dilma Rousseff.
A matéria do jornal O Globo questionou, à época o pastor sobre a postagem. Silas Malafaia afirmou que, ao usar a palavra assessor, quis dizer que Adélio fazia campanha para a petista. “Não estou falando que ele era empregado de Dilma, nem funcionário de Dilma. Cada um entenda o que quiser. Com todo respeito, não vou ficar dando justificativa para ninguém”, afirmou.
Em declaração ao site de notícias BuzzFeed News, o pastor Malafaia afirmou que se baseou no que leu a respeito nas redes sociais. “Tá na mídia, em todos blogs, em tudo que é lugar”, disse o pastor por telefone. “Que o cara trabalhava, não que ele fosse funcionário dela, nada disso. Não tem nada a ver com [ser] funcionário dela. Não é funcionário dela, mas tava ajudando na campanha porque ele é esquerdopata. Tava ajudando. Tá aí, todo mundo fala. É só pegar o que apanharam lá da página dele na internet, tá lá. Não tem nada a ver como funcionário da Dilma, assessor como funcionário. Falo de assessoramento no sentido de apoio, é isso que estou falando”, reafirmou Silas Malafaia no contato telefônico.
Ao ser indagado pelo BuzzFeed pelo fato de não haver nenhuma referência à ex-presidente Dilma Rousseff na página de Adelio Bispo no Facebook, o evangelista disse: “Não tinha nada de Dilma, mas tem tudo em vários blogs, várias redes. Anunciou que ele estava apoiando, fazendo campanha pra ela, pô. Tá em rede social, eu só repliquei. Para bater nessa cambada.”
Ao jornal Folha de S. Paulo, o líder religioso afirmou, em 7 de setembro de 2018, que o autor do crime é militante de esquerda pelo que viu em fotos na internet. “Esses esquerdopatas são os reis da dissimulação e do cinismo, eles mesmos que infiltram notícias falsas”, declarou.
Na abertura do vídeo postado em 9 de novembro de 2019, o pastor Silas Malafaia inicia dizendo que o atentado estava completando um ano, o que corrigiu (o caso ocorreu em 6 de setembro). “Eu digo sempre que a grandeza de um ser humano não são os seus acertos, é reconhecer seus erros e corrigir suas rotas”, afirma o pastor na gravação antes de se retratar. “Na época, eu disse que o tal do Adélio era assessor de Dilma. Nunca foi assessor de Dilma. Tem que ser honesto com isso aí. Ele já teve vínculo lá atrás com o PSOL, mas nunca assessorou Dilma em campanha. Estou aqui corrigindo porque eu fiz uma declaração na época e essa declaração, e olha que eu sou cuidadoso, de ver coisa em rede social e soltar. Mas na época, eu soltei, postei no Twitter fazendo a reconsideração, e agora to reconsiderando aí nesse vídeo. Tá certo? A verdade é a verdade”, disse o líder da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo.
Bereia verificou que o vídeo de Silas Malafaia é verdadeiro. No entanto, não conseguiu informações do porquê desta retratação ter sido publicada mais de um ano depois, mesmo tempo posterior à investigação da Polícia Federal ter sido encerrada afirmando que Adelio Bispo de Oliveira agiu sozinho por motivação política.
Em maio de 2019, a justiça já havia decidido que o autor do atentado tem transtorno mental e é inimputável (incapaz de entender o caráter de crime que cometeu e de responder por seus atos) e foi mantido em presídio para cumprir medida de segurança.
O pastor Malafaia não deu declarações sobre as razões da retratação tanto tempo depois. Estima-se que seja resultado de processo judicial. Já em 2018, a assessoria de Dilma Rousseff disse que ela entraria com processo por calúnia, injúria e difamação contra o pastor Malafaia.
Outra possibilidade para o ato tão defasado no tempo são os avanços nas investigações da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que apura a divulgação de informações falsas para influenciar no resultado das eleições presidenciais de 2018, a chamada CPI das Fake News, instalada em 4 de setembro de 2019.
Bereia afirma, portanto, que a cobertura que envolve a publicação do vídeo de retratação do pastor Silas Malafaia em relação às mentiras que publicou em 2018 é inconclusiva pois não foram reunidos dados suficientes sobre a motivação para a devida informação do público. Bereia continuará apurando o caso.
Referências da checagem:
CANOFRE, Fernanda. Juiz
que declarou Adélio inimputável decide absolvê-lo e mantê-lo em presídio. Folha
de S. Paulo, 14 jun 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/06/juiz-que-declarou-adelio-inimputavel-decide-absolve-lo-e-envia-lo-para-manicomio.shtml
CPMI das Fake News é
instalada no Congresso. Senado Notícias, 4 set 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/09/04/cpmi-das-fake-news-e-instalada-no-congresso
Matéria publicada pelo portal de notícias Gospel Prime, em 27 de outubro, afirma que a deputada federal Benedita da Silva acredita que a Bíblia trata sobre gênero.
O texto se baseia em entrevista publicada pelo jornal O ESTADÃO (imagem abaixo), em 25 de outubro de 2019, intitulada “A Bíblia fala de gênero”, diz Benedita da Silva. A chamada destaca que a deputada federal, que é evangélica, vê retrocesso na política para mulheres, mas destaca atuação da bancada feminina na Câmara.
A entrevista trata de vários temas relacionados à presença das mulheres no parlamento e às políticas referentes aos direitos das mulheres no Brasil. São oito perguntas publicadas pelo Estadão, indicadas como “os principais trechos da entrevista”.
O portal Gospel Prime deteve-se em apenas uma pergunta dos jornalistas, que trata da avaliação da atuação da ministra Damares Alves: “Como a senhora avalia a atuação da ministra Damares Alves? Observa algum avanço?” A resposta ao jornal foi: “Não há avanço. Há retrocesso. Inventaram de combater uma tal de ideologia de gênero, que até hoje eu não sei o que é. Eu sou evangélica e a Bíblia fala de gênero. A palavra era essa. Nós, mulheres, temos grandes conquistas, até mesmo na igreja. Esse mundo é das mulheres. Nós vamos chegar lá. Mas vamos encontrar resistências também, né? Os homens se sentem ameaçados porque eles sempre estiveram no comando”
A matéria do Gospel Prime reproduz o conteúdo desta
resposta. Nesse sentido, a declaração de Benedita da Silva (PT-RJ) registrada
no portal religioso é verdadeira.
Um aspecto chama a
atenção na avaliação de Bereia: a
abertura da matéria do Gospel Prime oferece
um tom pejorativo quanto à identidade evangélica da deputada Benedita da Silva:
“A deputada Benedita da Silva (PT-RJ), que diz ser membro de uma igreja
presbiteriana…”.
Benedita da Silva é
declaradamente evangélica desde os anos 60, quando aderiu à Assembleia de Deus.
O estudioso da relação evangélicos-política no Brasil Paul Freston registra
isto em seus livros. Nos anos 90, a deputada tornou-se presbiteriana, vinculada
à Igreja Presbiteriana Betânia, na cidade de Niterói-RJ. As motivações e os
resultados da mudança estão registrados na biografia de Benedita da Silva
(BeneDita, da editora Mauad, 1997). Em suas mídias sociais, Benedita da Silva
periodicamente publica fotos de eventos da igreja aos quais esteve presente.
Na perspectiva
jornalística a matéria de Gospel Prime
que se oferece como informativa torna-se opinativa quando questiona a
identidade evangélica de Benedita da Silva com o termo “diz ser” relacionado ao
fato de ter “criticado a atuação da ministra Damares Alves” e ter declarado que
encontra a temática de gênero na Bíblia.
Referências de Checagem:
CACERES, Michael.
Benedita da Silva acredita que a Bíblia “fala de gênero”. Gospel Prime, 27 out 2019. https://www.gospelprime.com.br/a-biblia-fala-de-genero-diz-deputada-benedita-da-silva/
Gayer, Eduardo, Ortega,
Pepita. ‘A Bíblia fala de Gênero’, diz Benedita Da Silva. O Estado de São Paulo,
25 out 2019. https://www.estadao.com.br/infograficos/brasil,a-biblia-fala-de-genero-diz-benedita-da-silva,1048434
Circulam nas redes sociais charges sugerindo que a Venezuela é responsável pelo vazamento de óleo nas praias nordestinas e que há um silêncio por parte dos partidos de esquerda, Ongs, ambientalistas e ativistas, como a sueca Greta Thunberg, o presidente francês Emmanuel Macron, o papa Francisco e a deputada Marina Silva.
O vazamento, que começou a ser noticiado no final de agosto, atinge pelo menos 225 localidades de mais de 80 municípios em todos os nove estados do Nordeste. Além das charges, sites de notícias reproduzem a afirmação, como Pleno News, no dia 10/10:
Nova análise confirma que óleo tem origem da Venezuela
O óleo que resultou nas manchas encontradas em mais de 130 localidades do litoral nordestino tem origem da Venezuela. É o que afirmou a pesquisadora Olívia Oliveira, em entrevista coletiva no Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia (UFBA) na manhã desta quinta-feira (10).
A pedido da Marinha, o Laboratório de Métodos Computacionais em Engenharia (Lamce) da Coppe/UFRJ, sob a coordenação dos pesquisadores Luiz Landau e Luiz Assad, realizou um estudo para identificar o ponto de origem do vazamento de óleo. Utilizou-se um modelo matemático de correntes marinhas no Atlântico para cruzar os dados com o mapa de manchas de óleo encontradas na costa do Nordeste. Ao inverterem o sentido temporal do modelo, a partir dos pontos de destino do óleo fragmentado, chegaram a uma estimativa sobre sua origem. A área apontada fica fora da zona econômica exclusiva do Brasil em águas internacionais, entre 600 km e 700 km da costa brasileira, numa faixa de latitude com centro na fronteira entre Sergipe e Alagoas. Essa parte da análise foi entregue à Marinha.
Durante uma coletiva de imprensa, realizada no dia 10 de outubro, a diretora do Instituto, Olívia Oliveira, afirmou que análise dos biomarcadores e da presença de carbono apontaram que o material contaminante tem semelhança com um dos tipos de petróleo produzido na Venezuela. “Nenhum petróleo produzido no Brasil apresenta distribuição de biomarcadores similar aos resultados encontrados”. A coleta de amostras ao longo da costa sergipana foi realizada em parceria com Universidade Federal de Sergipe (UFS). Ambos os estudos descartam a possibilidade do vazamento ter sido ocasionado em território nacional.
Em entrevista ao jornal Correio, da Bahia, Olívia explicou que “existem alguns organismos que só viveram em determinado período da nossa era geológica, então quando identificamos esses organismos, chamados de biomarcadores, sabemos dizer quando ele viveu e comparamos com a idade das bacias petrolífera.
De acordo com a pesquisadora em conversa com o Coletivo Bereia, o laudo completo está em posse da Polícia Federal (PF), do Ministério Público Federal (MPF) e do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema).
No dia 22 de outubro, o comandante da Marinha Brasileira, responsável pela investigação a respeito da origem do petróleo, Ilques Barbosa, declarou que o governo está concentrando as investigações sobre as causas da mancha de óleo nas praias do Nordeste em 30 navios de dez países diferentes. Mas, para ele, a maior probabilidade é que o vazamento partiu de um navio irregular, chamado de dark ship. A informação se contrapõe às declarações do presidente Jair Bolsonaro e do ministro de que se trata de uma ação criminosa. Essa embarcação. O comandante também afirma que o vazamento não tem origem nas bacias brasileiras.
“O que se sabe pelos cientistas é que o petróleo é de origem venezuelana. Não quer dizer, que houve em algum momento, e não houve isso, envolvimento de qualquer setor responsável, tanto privado quanto público, da Venezuela nesse assunto”, afirmou o almirante-de-esquadra.
Dark ship é um navio que tem seus dados informados às autoridades, mas, em função de qualquer restrição, de embargo que acontece, ele tem uma carga que não pode ser comercializada. Então, segundo o comandante, ele busca vias de comunicação marítimas que não são tão frequentadas, procura se evadir das marinhas de guerra e não alimenta seus sistemas de identificação. “Ele procura as sombras. E essa navegação às sombras produz essa dificuldade de detecção”, explicou.
No dia 23 de outubro, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles fez um pronunciamento em cadeia nacional afirmando que o presidente Bolsonaro determinou que o governo federal solicite à Organização dos Estados Americanos (OEA) um esclarecimento formal da Venezuela sobre o ocorrido. De acordo com o ministro, “as amostras analisadas em laboratório especializado identificaram que [as manchas] não vieram de território nacional, mas provêm de território venezuelano”.
Após o pronunciamento, na quinta-feira, dia 24, Salles sugere que navio da Ong Greepeace derramou óleo no Nordeste. A declaração surge um dia depois de manifestantes do Greenpeace terem sido presos após protestar contra o avanço do óleo na frente do Palácio do Planalto e poucas horas depois de o próprio ministro reafirmar que o resíduo partiu da Venezuela.
“Tem umas coincidências na vida né… Parece que o navio do #greenpixe estava justamente navegando em águas internacionais, em frente ao litoral brasileiro bem na época do derramamento de óleo venezuelano…”, escreveu Ricardo Salles no Twitter, junto com uma foto de um navio do Greenpeace.
O GreenPeace divulgou o posicionamento sobre as declarações do Salles:
Ricardo Salles foge de sua responsabilidade mais uma vez
O nosso navio Esperanza faz parte de uma campanha internacional chamada “Proteja os Oceanos”, que saiu do Ártico e vai até a Antártida ao longo de um ano, denunciando as ameaças aos mares. Ele passou pela Guiana Francesa, entre agosto e setembro, onde realizou uma expedição de documentação e pesquisa do sistema recifal conhecido como Corais da Amazônia, com o propósito de lutar pela proteção dos oceanos e contra a exploração de petróleo em locais sensíveis para a biodiversidade marinha. No momento, o navio está atracado em Montevidéu, no Uruguai.
Tomaremos todas medidas legais cabíveis contra todas as declarações do Ministro Ricardo Salles. As autoridades têm que assumir responsabilidade e responder pelo Estado de Direito pelos seus atos.