Políticos apoiadores de padre indiciado em trama golpista usam falsa acusação de perseguição religiosa

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e extremistas da direita política usaram seus perfis nas mídias digitais para denunciar uma suposta perseguição religiosa contra o padre de Osasco (SP) José Eduardo de Oliveira e Silva, um dos 37 indiciados no inquérito da Polícia Federal (PF) sobre a tentativa de um golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito durante e depois das eleições de 2022. O plano visava manter no governo o candidato derrotado à reeleição Jair Bolsonaro (PL).

O relatório da PF foi concluído em 21 de novembro e enviado ao STF. O ministro destacado pela Corte para relatar o caso, Alexandre de Moraes, retirou o sigilo da investigação e determinou o encaminhamento do relatório final à Procuradoria-Geral da República (PGR), em 26 de novembro. Além do padre indiciado, o documento com 884 páginas cita também outros três religiosos católicos: os padres Genésio Lamounier Ramos, da Diocese de Anápolis (GO), e Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, da Paróquia Cristo Rei, em Várzea Grande (MT), além do frei Gilson da Silva Pupo Azevedo, frade carmelita e cantor católico. Leia checagem do Bereia sobre os demais investigados.

Os perfis de mídias sociais de Bolsonaro e apoiadores atuaram em reação contrária ao conteúdo do relatório.  Bereia checou algumas dessas manifestações referentes ao indiciamento do padre José Eduardo Silva.

Estamos cada vez mais próximos da Nicarágua de Ortega. Segundo o Metrópoles, três padres foram citados no fantasioso relatório final da PF divulgado ontem. O inquérito também cita um frei e outras figuras religiosas por causa de orações, atendimentos espirituais e conversas aparentemente sem nenhum problema que foram transformadas em evidências de uma “trama golpista”. Não se esqueçam que na Nicarágua, Ortega também justifica a perseguição de religiosos e opositores acusando-os de tramarem golpes. Coincidência? Que Deus tenha misericórdia do Brasil”, declarou o católico Jair Bolsonaro em sua conta no X e no Instagram no dia 27 de novembro. 

Imagem: reprodução/Instagram

A deputada católica Bia Kicis (PL-DF) também se manifestou em sua conta no Instagram. “Nosso grande Padre @pejoseduardo é ferrenho defensor das famílias, combatendo de forma firme e corajosa o avanço da ideologia de gênero e tantas outras agendas que vieram para degradar o ser humano. Nossa solidariedade ao Padre José Eduardo, e a todos os cristãos do Brasil que estão sendo perseguidos. Basta dessa ditadura!”. 

Imagem: reprodução/Instagram

O vereador de Niterói (RJ) Allan Lyra (PL), também católico, pede a seus mais de 16 mil seguidores para orar pelo padre, a quem chama de amigo e grande sacerdote. “Faça uma oração pelo Padre José Eduardo, pelo presidente Jair Bolsonaro e por todas as tantas vítimas dos desmandos do judiciário. Estamos vivenciando uma escalada de injustiças que coloca em risco os pilares da nossa nação, incluindo a liberdade e a fé”. 

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A investigação

O inquérito da PF que apura a tentativa de golpe de Estado em 2022 indiciou 37 pessoas, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro e o padre José Eduardo de Oliveira e Silva, por envolvimento na tentativa de golpe de Estado. 

Consta no relatório da PF que, além de reuniões com integrantes do governo anterior, o padre elaborou uma “oração ao golpe” e participou de discussões relacionadas à “minuta” da trama, que detalhava ações para reverter os resultados das eleições presidenciais de 2022. Os indiciados são acusados de crimes como organização criminosa e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. Os planos investigados incluíam ações extremas, como o assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), do vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e do ministro Alexandre de Moraes (STF).

As investigações, conduzidas ao longo de dois anos, identificaram a existência de núcleos organizados que buscaram planejar ações para a manutenção ilegítima do poder. Revelaram ainda que os conspiradores utilizaram desinformação como uma estratégia central para desacreditar o processo eleitoral brasileiro para conquista de apoio popular. Isso incluía a disseminação de teorias conspiratórias, falsas alegações de fraude eleitoral e ataques sistemáticos às urnas eletrônicas, mesmo sem provas. Esses discursos foram amplamente divulgados por meio de redes sociais, aplicativos de mensagens e discursos públicos, com o objetivo de minar a confiança na Justiça Eleitoral e no resultado das eleições presidenciais de 2022.

As provas foram obtidas por meio de quebras de sigilo e ações coordenadas pela PF. O ministro do STF destacado para relatar o caso, Alexandre de Moraes, retirou o sigilo do relatório, permitindo o acesso público às informações, embora parte das investigações, ainda em andamento, permaneça confidenciais​.


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Quem é o padre José Eduardo

O padre José Eduardo de Oliveira e Silva é pároco em Osasco, na Grande São Paulo. Influenciador digital, com cerca de 430 mil seguidores no Instagram, o religioso mantém ainda um site em que vende cursos online sobre “teologia moral”, “o código do matrimônio” e “Batalha espiritual”. Para fazer parte da comunidade do padre e ter acesso a todos os cursos, é necessário desembolsar R$ 897 por ano. O pároco foi ordenado padre da Igreja Católica há 18 anos, em 2006, e tornou-se  doutor em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma (Itália), em 2012.

Segundo as investigações, Silva teria participado de uma das reuniões sobre o plano golpista no Palácio do Planalto, em 19 de dezembro de 2022, um mês depois das eleições. O sacerdote foi alvo de mandado de busca e apreensão pela PF em 8 de fevereiro de 2024, como parte da Operação Tempus Veritatis, como suspeito de integrar  o núcleo jurídico no planejamento do golpe.  O padre atuaria “no assessoramento e na elaboração de minutas de decretos com fundamentação jurídica e doutrinária que atendessem aos interesses golpistas do grupo investigado“. Ele foi citado 74 vezes no relatório final da investigação da PF. 

José Eduardo Oliveira tinha relacionamento anterior com o ex-presidente. Por conta disto, ele ofereceu “apoio espiritual” a Jair Bolsonaro em 2018, após o então candidato a presidente sofrer o atentado a faca em Juiz de Fora (MG). Já em 2022, durante as eleições presidenciais, o padre participou de uma reunião em Brasília, que, segundo a PF, fez parte de uma série de encontros comandados por Bolsonaro para discutir “tratativas com militares de alta patente sobre a instalação de um regime de exceção constitucional”.

De acordo como o relatório da PF, Silva  além de colaborar na elaboração da minuta da trama, criou uma espécie de “oração ao golpe” em que pedia que os brasileiros incluíssem os nomes de militares, líderes da ação,  em suas preces. A oração foi resgatada do aparelho celular do padre. No texto distribuído por aplicativo de mensagem, o religioso pede “que todos os brasileiros, católicos e evangélicos, os incluam em suas orações, os nomes do Ministro da Defesa e de outros dezesseis Generais 4 estrelas ‘pedindo para que Deus lhes dê a coragem de salvar o Brasil, lhes ajude a vencer a covardia e os estimule a agir com consciência histórica e não apenas como funcionários público de farda”.

Em 27 de novembro passado, o padre indiciado se pronunciou por meio de comunicado oficial em seu perfil no Instagram. A nota, publicada em colaboração com o escritório de advocacia Miguel Vidigal, defende a inocência do padre José Eduardo Oliveira e Silva e ressalta que o relatório aponta incoerências e injustiças que a investigação da PF teria cometido.

Imagem: reprodução/Instagram

Porta-voz da Diocese de Osasco disse ao jornal O Globo, que o órgão está “acompanhando atentamente a investigação” e que aguarda “o desfecho do processo” para se pronunciar. O sacerdote não foi afastado e segue realizando suas atividades eclesiásticas normalmente.

As origens do conservadorismo católico e ligação com golpes de Estado

O conservadorismo católico no Brasil tem raízes históricas profundas, Bereia já checou notícias e acontecimentos de ações ultraconservadoras ligadas à  Igreja Católica. O Centro Dom Vital, hoje em plena atividade, foi fundado em 1922 pelo leigo católico Jackson de Figueiredo, para promover um pensamento autoritário, antiliberal e antissocialista. Movimentos como a Sociedade de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), liderada por Plinio Corrêa de Oliveira, expandiram essas ideias e influenciaram as grandes mídias. Após a morte de  Plínio Oliveira, em 1995, Olavo de Carvalho emergiu como uma figura central no fortalecimento do ultraconservadorismo católico no Brasil.

Historicamente, a ligação de movimentos católicos com rupturas políticas é marcante. A Ação Integralista Brasileira, liderada por Plínio Salgado, nos anos 1930, inspirada no fascismo europeu, apoiou o golpe que instituiu o Estado Novo em 1937. Em 1964, setores conservadores católicos participaram da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que reforçou o movimento que viria a se concretizar no golpe militar. Esses eventos mostram o papel contínuo do catolicismo conservador na articulação de ações políticas autoritárias no Brasil.

Acusação de rompimento do Acordo Brasil-Vaticano

Segundo os aliados do padre José Eduardo Oliveira e Silva, um dos motivos que invalidam a ação da PF é um acordo firmado entre o Brasil e o Vaticano que garante o sigilo sacerdotal. Bereia checou a existência e as características deste acordo. 

O Decreto nº 7.107/2008, promulga o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no país, firmado na Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008.

O acordo reconhece a autonomia e os direitos da Igreja Católica em suas atividades no país, como a missão apostólica, a administração de instituições de ensino e a prestação de assistência espiritual em hospitais e prisões. Além disso, ele garante imunidade tributária para bens e serviços ligados a finalidades essenciais da Igreja e equipara suas atividades sociais e educacionais às de entidades filantrópicas. O documento também prevê a proteção a lugares de culto e objetos religiosos, reconhece o efeito civil do casamento canônico.

Adicionalmente, o documento estabelece diretrizes para o ensino religioso como disciplina facultativa em escolas públicas e detalha que vínculos religiosos não geram automaticamente vínculos empregatícios, salvo em casos de desvirtuamento. As relações diplomáticas entre Brasil e Santa Sé são reafirmadas, com a manutenção de representantes formais, e prevê-se a possibilidade de ajustes complementares entre órgãos brasileiros e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Além disso, o acordo assegura o sigilo do ofício sacerdotal, como na confissão sacramental. Contudo, o decreto não especifica outros casos em que o sigilo do ofício sacerdotal é garantido e aponta que em caso de divergências sobre a aplicação do acordo, elas devem ser resolvidas por negociações diplomáticas diretas, reforçando a cooperação histórica e o respeito mútuo entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica.

Acusação de alinhamento com a Nicarágua

Desde 2021, aumentaram as ações de repressão do governo de Daniel Ortega na Nicarágua, contra a Igreja Católica e lideranças religiosas críticas às suas ações. A prisão de bispos e o cancelamento de registros de organizações de diferentes grupos religiosos, como católicas, evangélicas, judaicas e islâmicas foram intensificadas nos últimos anos. Em agosto de 2024, 1.5 mil organizações sem fins lucrativos, incluindo igrejas, tiveram seus registros cancelados, Bereia já checou este assunto.

Segundo o governo nicaraguense, o fechamento dessas instituições ocorreu pela falta de transparência financeira. Contudo, desde 2018, mais de 5.100 organizações já tiveram seus registros anulados, em um cenário de crescente controle estatal e repressão à sociedade civil. A relação entre o governo Ortega e a Igreja Católica tem se deteriorado desde os protestos de 2018, quando líderes católicos foram tratados como oposição, enfrentando exílios e prisões. 

As comparações entre o indiciamento do padre José Eduardo de Oliveira e Silva no Brasil  e as ações de repressão na Nicarágua sugerem que líderes religiosos estariam sendo alvo de investigações governamentais da PF com motivações políticas. 

Contudo, na Nicarágua, o governo de Daniel Ortega persegue organizações religiosas e líderes, especialmente da Igreja Católica, como parte de uma repressão mais ampla contra críticos do regime político. O indiciamento do padre José Eduardo Oliveira e a citação de outros dois líderes religiosos no inquérito sobre a tentativa de golpe de Estado levou outros citados no relatório e integrantes da extrema direita política a alegarem que a ação fere o direito à liberdade religiosa e viola acordos internacionais. Este discurso cria uma associação entre contextos diversos para sugerir que a investigação no Brasil é uma tentativa de silenciar vozes religiosas críticas, o que não se revela nas provas levantadas pela PF, conforme detalhadas no relatório.

De acordo com o doutor em Antropologia Social, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro  Rodrigo Toniol, é preciso levar em consideração que o que está em jogo é a participação de um sacerdote e não significa a participação e o envolvimento da Igreja Católica como instituição. “Ao contrário de outros momentos em que os representantes legais da instituição, por exemplo, a CNBB,  atuaram durante o golpe de 64, aqui não é o caso. A gente está falando de um sacerdote católico. Mas a presença dele nos lembra a participação de católicos nessa trama golpista, de católicos em um universo de comunicação bolsonarista algo que usualmente é esquecido deixado de ser dito”, destaca o professor. 

Para Toniol, não houve quebra de sigilo sacerdotal porque a participação do padre Oliveira na tentativa de golpe vai além do serviço espiritual de tomar confissões. “Há uma lei, de fato, de proteção a esse modo de atendimento dos sacerdotes, a acolhida do guia espiritual. Ao que parece, a participação do padre não esteve limitada ao atendimento espiritual. Foi uma participação no plano, de forma ativa e não simplesmente de atendimento religioso”.

Segundo o professor, não há paralelo entre o Brasil e a Nicarágua como alegam os defensores do padre da Diocese de Osasco. “A gente não está diante de uma perseguição sistemática contra sacerdotes católicos no exercício da sua fé ou no exercício do seu ofício vocacional, mas o que a gente está diante é da acusação de um sujeito com CPF que, por um acaso, é um sacerdote católico. Ou seja, a acusação não é uma perseguição sistemática a católicos ou a líderes religiosos, a acusação é contra um sujeito que é sacerdote católico e estava planejando um golpe de Estado”, ressalta.  

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Bereia checou as afirmações de perseguição religiosa contra o padre José Eduardo de Oliveira e Silva publicadas em perfis de mídias sociais de lideranças políticas e concluiu que são acusações fraudulentas, apelativas, sem provas que corroborem ou sustentem essa tese. 

O relatório da Polícia Federal é robusto e composto de provas minuciosas que justificam o indiciamento. Cabe ao Ministério Público “exclusivamente, decidir pelo oferecimento de denúncia ou solicitação de arquivamento do inquérito ou peças de informação”. 

Conforme afirmou o professor  Rodrigo Toniol, a acusação não é contra o sacerdote, mas contra o cidadão José Eduardo de Oliveira e Silva que, conforme o relatório da PF, colaborou ativamente com o plano frustrado de golpe de Estado em 2022. Portanto, é conteúdo inventado, desinformativo, usado para dar aos seguidores dos políticos em questão a falsa ideia de que há perseguição religiosa por parte da Polícia Federal e do Judiciário brasileiro a católicos no país. 

Referências de checagem

Coletivo Bereia.

https://coletivobereia.com.br/extremismo-religioso-na-politica-stf-recebe-mensagem-com-ameaca-ilustrada-com-simbolos-catolicos/. Acesso em: 28 de novembro de 2024.

https://coletivobereia.com.br/mensagem-em-grupos-religiosos-engana-e-cria-alarde-sobre-fechamento-de-igrejas-na-nicaragua/. Acesso em: 28 de novembro de 2024.

Planalto.

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7107.htm. Acesso em: 28 de novembro de 2024.

CNN.

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/entenda-as-principais-revelacoes-do-relatorio-da-pf-sobre-tentativa-de-golpe/. Acesso em: 28 de novembro de 2024.

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/pf-indicia-padre-no-inquerito-do-golpe-saiba-quem-e/. Acesso em: 28 de novembro de 2024.

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/grupo-dos-malucos-relatorio-cita-esquema-de-desinformacao-envolvendo-membros-da-pf/. Acesso em: 28 de novembro de 2024.

BBC.

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62668700. Acesso em: 28 de novembro de 2024.

Supremo Tribunal Federal.

https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/supremo-envia-investigacao-sobre-tentativa-de-golpe-de-estado-a-pgr/. Acesso em: 28 de novembro de 2024.

https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/supremo-envia-investigacao-sobre-tentativa-de-golpe-de-estado-a-pgr/Acesso em: 28 de novembro de 2024.

Revista Fórum. 

https://revistaforum.com.br/brasil/2024/11/28/golpe-santo-quem-so-os-padres-citados-no-relatorio-da-pf-170021.html?dc_data=6014291_samsung-carnival-br&utm_source=taboola&utm_medium=taboola_news&ui=e94581971758fac8f9191da5465cca13fb7034eb08327570821bf160a9041282. Acesso em: 28 de novembro de 2024.

GOV.br.

https://www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/noticias/2024/11/pf-conclui-investigacao-que-apurou-golpe-de-estado-e-abolicao-violenta-do-estado-democratico-de-direito. Acesso em: 28 de novembro de 2024.

Terra.

https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/quem-e-o-padre-que-participou-de-plano-de-golpe-com-bolsonaro-segundo-pf-veja,5759fa0f44a0b892af33d81d6f1923bag99m1j2r.html. Acesso em: 28 de novembro de 2024.

Globo.

https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/11/27/diocese-de-osasco-acompanha-investigacao-atentamente-mas-padre-indiciado-pela-pf-por-golpismo-segue-celebrando-missas.ghtml. Acesso em: 28 de novembro de 2024.

Foto de capa: reprodução/Instagram

60 anos do golpe militar: mentiras sobre a ditadura persistem nos espaços digitais religiosos

Em 1º de abril de 2024, o golpe militar que depôs João Goulart completa 60 anos. Durante 21 anos (1964-1985), o Brasil viveu sob um regime que, além de atentar contra o Estado Democrático de Direito, privilegiou interesses empresariais e militares e promoveu graves violações de direitos humanos. 

Na última década, com a popularização das mídias sociais, algumas interpretações distorcidas sobre a ditadura militar brasileira ganharam adeptos e passaram a ocupar o debate público. Nesse contexto, há disseminação de desinformação sobre ditadura e religião no Brasil.

Na marca de 60 anos do golpe, Bereia relembra checagens e artigos que produziu sobre o tema.

Não é possível afirmar que o coronel Ustra tenha sido presbiteriano

Publicações de perfis evangélicos nas redes digitais afirmavam, em outubro de 2020, que o coronel do Exército e comandante da tortura de presos da ditadura militar no Brasil Carlos Alberto Brilhante Ustra, tratado como herói pela extrema-direita e exaltado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, seria integrante da liderança da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), o que Bereia classificou como informação imprecisa. 

Após verificação dos fatos, ficou esclarecida a impossibilidade de confirmar a fonte da informação propagada pelo teólogo e pastor da Igreja Presbiteriana Unida (IPU) Zwinglio Motta Dias, durante palestra na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) em 2014, e anteriormente, em um capítulo de sua autoria no livro ‘Cristo e  Processo Revolucionário Brasileiro’, publicado em 2012.

A checagem produzida pela editora-geral Magali Cunha, com a colaboração de André Mello, também incluiu a verificação dos materiais produzidos pela Comissão Nacional da Verdade, por meio da qual foi possível encontrar o depoimento de uma das vítimas torturadas pelo regime militar, quem teria afirmado ter ouvido do próprio Ustra, que este seria metodista como ela. Também não foram encontradas provas contundentes de sua vinculação à denominação evangélica.

Por fim, o texto apresenta o histórico de cerimônias católicas associadas à morte do coronel, o linguajar característico do Catolicismo adotado por ele, e uma declaração pessoal de sua fé católica feita a jornalistas da revista Época, em 2008, como indícios  da ligação do militar, agente da ditadura, com a Igreja Católica.

A ameaça comunista e outras mentiras sobre o golpe

Em abril de 2021, após chamado do governo Jair Bolsonaro para as comemorações dos 57 anos do início da ditadura militar, líderes religiosos e fiéis exaltaram o golpe em espaços digitais religiosos. Os argumentos mentirosos mais comuns que circularam tentavam sustentar que o golpe teria ocorrido para “salvar” o Brasil da implantação do comunismo.

À época, Bereia reproduziu conteúdo publicado pelo UOL Confere que desmentiu, com auxílio de historiadores especialistas em ditadura militar, a existência de uma ameaça comunista no Brasil. Conforme contribuição do historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Fico, as tentativas de implantar o comunismo foram tímidas e sem apoio da população, e não chegaram a constituir uma ameaça.

A mesma publicação, assinada pela editora-geral do Bereia Magali Cunha, veiculou o material “10 mentiras sobre a ditadura militar no Brasil”, produzido pela Associação de Docentes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Adur-RJ). Entre as falácias desmentidas estão a ideia de que não houve corrupção na ditadura, de que a tortura não foi uma política de Estado, de que não havia violência urbana no período ditatorial, entre outras.

A ditadura militar fechou, sim, igrejas, deputado!

Em abril de 2021, Bereia publicou artigo de opinião assinado por Leonardo Viana e intitulado “A ditadura militar fechou, sim, igrejas, deputado!”. O artigo é uma resposta à declaração do deputado federal Marco Feliciano (então filiado ao Republicanos-SP, hoje filiado ao PL-SP) de que a “revolução” militar não teria fechado igrejas.

Viana demonstra informações que constam no relatório final da Comissão Nacional da Verdade e comprovam diversos ataques a pessoas e instituições religiosas. Destacam-se: violência contra 352 cristãos, assassinato de 18 católicos (entre eles, três padres), prisão de 27 evangélicos (com tortura na maioria dos casos), assassinato ou desaparecimento de sete evangélicos, fechamento de duas Faculdades de Teologia.

O artigo traz, ainda, alguns relatos de fiéis que contam sobre o fechamento de igrejas presbiterianas em Vitória (ES) e no Rio de Janeiro (RJ), ao contrário do que defendeu o deputado federal evangélico Marco Feliciano.

Falsa narrativa da ameaça comunista continua circulando nas mídias sociais

Em março de 2023, matéria assinada por Gabriella Vicente e João Pedro Capobianco mostrou que lideranças religiosas e políticos conservadores continuavam a propagar conteúdo falso sobre suposta “ameaça comunista”, desta vez associada ao atual governo federal liderado por Lula da Silva (PT).

O conteúdo traz pesquisa da doutora em linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Bethania Mariani, que explica as origens da retórica de “ameaça comunista” ainda na década de 1920, no imediato pós-Revolução Russa.

Além de evidenciar a desinformação veiculada por personalidades e perfis religiosos em mídias sociais, Bereia demonstrou como o tema da “ameaça comunista” é amplamente explorado em contextos de desinformação e espalham pânico moral associado às ideologias de esquerda.

Filho de sindicalista morta pela ditadura desinforma sobre história da mãe

Bereia checou, em abril de 2022, a declaração de José de Arimatéia Alves, filho da sindicalista e mártir da luta camponesa Margarida Alves, assassinada na Paraíba durante o regime militar, sobre a reparação e indenização à família pelo crime que vitimou sua mãe, por parte do governo Bolsonaro. 

Alves, que é pastor da Assembleia de Deus, se disse agradecido ao governo Bolsonaro pela reparação e indenização do crime, durante cerimônia de filiação ao Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), em 17 de março de 2022. Naquele ano filiou-se ao partido aliado do então governo, e candidatou-se a deputado estadual pela Paraíba. 

Dias antes, o candidato já havia citado Sérgio Queiroz, então pré-candidato a senador pelo PRTB e integrante do segundo escalão do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos do governo Bolsonaro, como responsável pela resolução do caso que perdurava 20 anos, em discurso durante evento pelo Dia Internacional da Mulher, em João Pessoa.

No entanto, conforme levantado por reportagem de Magali Cunha e Xênia Casséte, a declaração de Alves é enganosa, por fazer uso de sensacionalismo para conquista de audiência em favor do então presidente Jair Bolsonaro, em ano de eleição, e não contextualizar que se tratou do cumprimento de uma decisão judicial, resultante de ações de diversas entidades e órgãos durante mais de 20 anos. 

Comunismo vs. patriotismo: desinformação em espaços religiosos

Levantamento do Bereia, realizado entre o período eleitoral iniciado em 2021 e 2 de outubro de 2022, apontou que o pânico associado ao comunismo, falso argumento utilizado largamente durante o regime militar e que cresceu em importância com amplos significados na sociedade brasileira desde então, permeia os cinco temas identificados como mais recorrentes em conteúdos falsos e enganosos disseminados em espaços digitais religiosos. 

A matéria ‘Comunismo e “ameaça comunista” vs. patriotismo é argumento que embasa temas com mais desinformação em espaços religiosos nas eleições’ aponta que a “ameaça comunista” é tema presente nas disputas políticas intensificadas pela imprensa brasileira desde os anos 1920, e especialistas defendem que há documentos do Exército que comprovam que o país nunca correu este risco. 

De acordo com texto de Hugo Silva e Diego Custódio, pesquisa do UOL Confere relatou que um informe do Serviço Nacional de Informações (SNI) já citava o desgaste do comunismo na Europa Ocidental e os militares também concluíram que não havia clima para a instalação do comunismo no Brasil, enquanto o historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Fico disse à BBC, em 2019,   que as tentativas de implementar o comunismo no Brasil foram movimentos inexpressivos e não contavam com o apoio majoritário da população.

A pesquisa concluiu que, quando associado à religião, o termo ‘ameaça comunista’ assume o papel de enfrentamento moral/espiritual, e é colocado como afronta à família e à Igreja ao ligar-se a temas como perseguição religiosa e direitos sexuais e reprodutivos.

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O golpe militar de 1964 foi dado com base em desinformação e pânico moral sobre uma inexistente “ameaça comunista”. Lamentavelmente, esta estratégia política persiste e se fortaleceu com as mídias digitais. A tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023 é o mais forte exemplo da continuidade dessa estratégia e serve como alerta para as graves consequências políticas da desinformação.

Nesta oportunidade dos 60 anos do golpe militar de 1964, Bereia conclama leitores e leitoras à leitura crítica e ponderada dos fatos e de discursos políticos, especialmente daqueles que ocupam rapidamente os espaços digitais e utilizam o pânico moral como estratégia de mobilização.

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Foto de capa: Marcha da Família Com Deus Pela Liberdade, 1964/Memorial da Democracia

60 anos do Golpe Militar de 1964: memória e ressurreição

Em plena ditadura militar, estes versos compostos pelo então pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil João Dias de Araújo (1931-2014), transformados em canção pelo médico e músico Décio Lauretti, refletem uma compreensão de fé que insiste em subsistir entre evangélicos brasileiros:

Que estou fazendo se sou cristão? Se Cristo deu-me o seu perdão

Há muitos pobres sem lar, sem pão, há tantas vidas sem salvação

Meu Cristo veio pra nos remir, o homem todo sem dividir,

não só a alma do mal salvar, também o corpo ressuscitar.

Há muita fome em meu país, há tanta gente que é infeliz,

Há criancinhas que vão morrer, há tantos velhos a padecer.

Milhões não sabem como escrever, milhões de olhos não sabem ler

Nas trevas vivem sem perceber que são escravos de outro ser.

Aos poderosos eu vou pregar, aos homens ricos vou proclamar

Que a injustiça é contra Deus, e a vil miséria insulta aos céus

(a canção pode ser ouvida na gravação do Grupo Milad, disco Água Viva, 1985)

Para além da busca pela salvação da alma com uma morada no céu, o pastor João Dias e muita gente no seu tempo haviam construído um jeito de entender a fé e a relação com Deus que ia além do individual e passava por um olhar para o ser humano total, marcado por misericórdia e solidariedade, inspirados na ação de Jesus de Nazaré tal como relatada na Bíblia cristã. Esta fé gerava compromissos por relações justas entre as pessoas, e entre elas e as lideranças públicas. E estes compromissos se desdobravam em ações com base na compreensão expressa no refrão daquela mesma canção de 1967: “a injustiça é contra Deus e a vil miséria insulta os céus”.

Neste 31 de março, de celebração da Páscoa, que nos faz vir à tona a memória dos chamados “anos de chumbo”, com o aniversário de 60 anos do golpe militar de 1964, é significativo lembrar esta canção. Hoje ela ainda é cantada em uma pequena parcela de igrejas e em grupos ecumênicos que buscam superar tanto a lógica individualista do mercado da música religiosa quanto a predominância dos conteúdos musicais que passam longe desse jeito de entender a fé expresso na poesia da canção.

A memória dos anos que se sucederam ao Golpe Militar guarda um lugar especial para cristãs e cristãos, entre eles muitos evangélicos, tanto entre as vítimas, aquelas que tiveram liberdades suprimidas e direitos violados por meio da censura, de prisões arbitrárias, da tortura e das execuções sumárias, quanto entre os omissos e os colaboradores, que no balanço, foram todos apoiadores. Os dois grupos se colocaram assim contraditoriamente em nome da sua compreensão de fé e de relação com Deus.

O primeiro grupo pagou o preço de viver a fé que questiona “Que estou fazendo se sou cristão?”, inspirado na justiça e na paz, como viveu Jesus de Nazaré, que também foi vítima de um sistema repressivo que tinha na religião uma aliada. Essas mulheres e homens, boa parte deles em plena juventude, carregaram sua cruz, mas finalmente encontram sua Páscoa, revivendo na memória de muitos grupos hoje com a retomada das ações pela busca da verdade e da justiça que lhes foi negada.

É fato que o jeito de entender a fé entre evangélicos brasileiros que predominou na história e é enfatizado no nosso tempo é aquele voltado para a salvação individualista, seja da alma, das finanças, de projetos pessoais ou políticos, ou mesmo para uma fé intimista muito pouco ou quase nada marcada por um olhar para o ser humano, com misericórdia, solidariedade e sentimento de justiça. No entanto, é significativo guardar a memória de que, ainda assim, tanto no passado quanto no presente esta não é uma unanimidade. Cristãos evangélicos hoje, como o pastor João Dias de Araújo, e tantos outros que os precederam, ainda se inspiram na humanidade divina de Jesus de Nazaré e buscam respostas para a pergunta “Que estou fazendo se sou cristão?” com base na compreensão de que “a injustiça é contra Deus e a vil miséria insulta os céus”.

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Foto de capa: Arquivo Público do Distrito Federal

Suspeitos presos em operação policial do golpe do “octilhão de reais” não são pastores

* com a colaboração de Viviane Castanheira

Notícia com grande repercussão no noticiário, viralizada nas mídias sociais, informou, nos últimos dias, sobre operação da Polícia Civil do Distrito Federal, denominada “Falso Profeta”. Houve cumprimento de dois mandados de prisão preventiva e 16 mandados de busca e apreensão contra golpistas que prometiam lucro financeiro de um octilhão de reais. O objetivo da operação é combater uma organização que atua em práticas de estelionato e de outros crimes em Brasília e em outros estados usando o viés religioso para atrair suas vítimas. 

O que foi muito explorado pelas mídias foi o fato de, entre os suspeitos, estarem pessoas apresentadas como pastores evangélicos. Entretanto, a  nota da operação policial oferece nítida explicação, não abrindo margem para tal conclusão: 

A Polícia Civil do Distrito Federal, por meio da Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Ordem Tributária, vinculada ao Departamento de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (DOT/DECOR), deflagrou, na manhã de hoje (20), a operação denominada “FALSO PROFETA”, para o cumprimento de dois mandados de prisão preventiva e dezesseis mandados de busca e apreensão, com o objetivo de combater organização que atua na prática de estelionato e outros crimes no Distrito Federal e em várias outras unidades da federação(…) O golpe consiste na conversa enganosa através de redes sociais (Youtube, Telegram, Instagram, Whatsapp, etc.), abusando da fé alheia, da crença religiosa e invocando de uma teoria conspiratória apelidada de “Nesara Gesara”, para convencer as vítimas, em sua grande maioria evangélicas, a investirem suas economias em falsas operações financeiras ou falsos projetos de ações humanitárias, com promessa de retorno financeiro imediato e rentabilidade estratosférica. Foi detectada, por exemplo, a promessa de que somente com um depósito (“aporte”) de R$ 25 as pessoas poderiam receber de volta nas “operações” o valor de Um Octilhão de Reais, ou mesmo “investir” R$ 2.000 para ganhar 350 bilhões de centilhões de euros.” 

Reprodução do site da Polícia Civil do DF

Bereia, porém, verificou que as notícias sobre a operação do DF, disseminadas pelas mídias sociais, geraram uma avalanche de comentários, generalizações e ampliações, tendo até mesmo registrado menções a “centenas de presos”. Invariavelmente, as chamadas traziam o texto “Pastor preso”, em referência ao golpista Osório Lopes Júnior. 

Bereia já havia checado conteúdo sobre o perfil de Osório Lopes Júnior , em abril 2022, por conta de outros golpes de mesma natureza, e concluiu que o uso do título religioso de “pastor” era enganoso. 

Reprodução do site do Coletivo Bereia 

Quem é Osório Lopes Junior?

Osório José Lopes Junior já teve problemas com a justiça. Em 2018, o falso pastor foi preso por estelionato em Goianésia, na região central de Goiás, acusado de obter R$15 milhões aplicando golpes, mesmo crime imputado pelo MP paulista. À época, Lopes Junior foi preso com o Pr. Alencar Santos Buriti, este, sim, com comprovação de vínculo eclesiástico com a Assembleia de Deus – Missão. Eles eram suspeitos de obter R$ 15 milhões aplicando golpes em fiéis de Goianésia. 

Segundo a Polícia Civil, a dupla alegava que havia ganhado um título de R$ 1 bilhão, mas precisava reunir fundos para conseguir recebê-lo. Utilizando-se dessa mesma história, o estelionatário retomou a prática, mas desta vez, em São Paulo, para onde se mudou em 2021.  

O uso de uma teoria conspiratória apelidada de “Nesara Gesara” (que envolvia o Banco Central dos EUA, o Vaticano e o FMI) para convencer as vítimas, em sua grande maioria evangélicas, a investir suas economias em falsas operações financeiras ou falsos projetos de ações humanitárias, com promessa de retorno financeiro imediato e rentabilidade estratosférica é uma atualização do “método”.

Reprodução do canal do autodenominado “pastor” Osório Lopes no YouTube

O que é “NESARA – GESARA”?

Os nomes parecem palavras em hebraico, mas são siglas de uma teoria conspiratória. National Economic Security and Recovering Act (NESARA) — ou Ato para Recuperação e Segurança da Economia Nacional, em inglês — surgiu em uma tese de doutorado, nos anos 90, nos Estados Unidos, como alternativa para substituir o Imposto de Renda. Tornou-se parte de uma teoria da conspiração nos anos 2000 quando, na esteira dos vídeos que impulsionavam criptomoedas, apresentou-se a correção das flutuações dos câmbios entre as moedas com uma possível (futura) adoção da Global Economic Security and Recovering Act (GESARA). 

Essa suposta reorganização financeira promoveria uma “redistribuição de renda” no mundo e todos ficariam ricos. Porém, os primeiros a receber as suas cotas seriam os que contribuíram para o projeto. A desinformação sobre NESARA/GESARA tem dimensões internacionais e é associada ao Apocalipse e ao governo central do Anticristo. E, curiosamente, o fim do mundo gera um mundo de investimentos sem fim.

Imagem: Entrevista na CBN News com o autor do livro “End Times [Fim dos tempos]”, Jeff Kinley, que propaga a NESARA/GESARA, em 23 jun 2022

Nesse sentido, a atual operação do DF é a ponta de um iceberg – pois o número de golpes financeiros e de teorias conspiratórias associadas a câmbios de moedas e criptomoedas tem crescido no monitoramento de todas as mídias sociais.

Imagem: Matéria do Linkedin

Desinformação caça-cliques

Embora a polícia tenha sido criteriosa ao notificar o nome da operação e o relato das prisões, o uso do título religioso segue um padrão de “clickbait” (caça-clique). Um termo relacionado às mídias digitais, definido como uma isca que gera envolvimento emocional ou curiosidade no leitor. Algo (como um título) projetado para fazer os leitores quererem clicar em um hiperlink, especialmente quando o link leva a conteúdo de valor ou interesse duvidoso. 

Bereia já observou, por meio de várias checagens de conteúdo, que o uso de manchetes sensacionalistas e/ou imagens em miniatura, ou vídeos chamativos para incentivar o compartilhamento do material pelas redes sociais não é uma boa prática e incentiva a disseminação de desinformação. Além disso, caça-cliques costumam prover informação superficial e insuficiente, ou apenas um mínimo necessário, para atiçar a curiosidade e levar as pessoas a clicarem no conteúdo vinculado. 

Por que os golpistas se intitulam pastores?

Da mesma forma que os estelionatários se fazem passar por pastores, o conteúdo desinformativo também pode chamar de pastor/pastora alguém que não tem essas credenciais, para gerar confusão e atrair atenção de leitores. 

Com isso, a chamada com a prisão de um pastor gerou manchetes, títulos ou links e se espalhou por portais, sites, blogs, mídias sociais e rádios. Como no exemplo da Folha de S. Paulo.

Em uma prática de informação coerente e digna, o título correto (com uma apuração cuidadosa) seria “FALSO PASTOR É PRESO”, igualmente  “SUPOSTA PASTORA” para o mesmo caso, em matéria do Globo.

Uma leitura atenta da matéria que o Globo publicou, em 21 de setembro de 2023, demonstra que a “suposta pastora” – a “missionária Maria Aparecida Gomes Barbosa” –  presa em Santa Catarina, na casa da filha, também poderia não ser liderança formal de alguma igreja.  

Perguntas básicas de apuração jornalística não foram respondidas pelo jornal, como: “A qual igreja pertence Maria Aparecida Gomes Barbosa?”A notícia da prisão traz uma nota da defesa: “Até o momento, conforme se extrai da decisão que decretou a prisão preventiva da indigitada, não há nos autos provas e/ou informações concretas que justifiquem a segregação cautelar da Sra. Maria, uma vez que, todas as provas elencadas pela defesa até o momento demonstram que a mesma é mais uma vítima do suposto Pastor Osorio e não uma criminosa, como quer fazer crer as mídias sociais”. A nota assinada pelos advogados Mateus Ghizi da Silva e Daniel Luis Dauer, segundo o jornal, lança uma dúvida, que deveria constar no título. Nota-se que ela não é identificada pelos advogados como religiosa.

Bereia considera a titulação de “pastor”, “pastora” ou “missionária”, atribuída nas mídias noticiosas, a suspeitos presos na operação “Falso Profeta” da Polícia Civil do DF, divulgada em setembro de 2023, como enganosa. Os suspeitos, de fato, se apresentavam como pastores, mas não há registros do vínculo de tais pessoas com uma igreja ou denominação evangélica. O uso excessivo da titulação religiosa nas chamadas para o caso leva à conclusão de que os veículos de mídia de notícias desinformam, com o intuito de aumentar o interesse do público em suas publicações.

Bereia recomenda que as mídias de notícias provejam o processo correto de apuração de fatos e que  sejam ouvidas as igrejas – comunidades ou denominações – apontadas pelos veículos ou notícias aos quais estariam vinculados os religiosos citados. Igualmente, Bereia recomenda aos  leitores e leitoras que tenham cuidado, ao comentar e disseminar notícias sobre prisões de pessoas suspeitas. Desinformação sobre religiões servem para alimentar intolerâncias, já tão em curso no espaço público do Brasil.

Bereia alerta ainda, que é importante estar atentos e atentas para o número de estelionatos por meios eletrônicos, golpes financeiros ancorados em teorias conspiratórias e novas moedas, que têm aumentado e gerado alertas no sistema financeiro nacional . A não-regulação das mídias, inclusive, que torna sem controle a atuação da Plataformas, que têm ganhos financeiros com o que é publicado, tem colocado o Brasil na liderança do ranking de golpes digitais. Recomenda-se, assim, cuidado e apuração em todos os casos.

Referências:

 Folha –  https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/09/policia-do-df-busca-pastor-apontado-como-lider-de-grupo-que-aplicava-o-golpe-do-octilhao-de-reais.shtml – Acesso em 22 setembro de 2023

G1 – https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2023/09/21/nesara-gesara-quem-e-a-pastora-presa-em-sc-apontada-por-golpe-que-prometia-lucro-de-um-octilhao-de-reais.ghtml – Acesso em 22 setembro de 2023

Bereia – https://coletivobereia.com.br/fantastico-erra-ao-chamar-de-pastor-estelionatario-que-enganou-mais-de-mil-pessoas-pelo-brasil/ – Acesso em 22 setembro de 2023

CBN News – https://www.youtube.com/watch?v=BvPyk3QG4bM&t=38s – Acesso em 22 setembro de 2023

Linkedin – https://www.linkedin.com/news/story/brasil-%C3%A9-l%C3%ADder-mundial-em-golpes-digitais-5189241/ – Acesso em 22 setembro de 2023

Infomoney – https://www.infomoney.com.br/guias/piramide-financeira/ – Acesso em 22 setembro de 2023

Valor Econômico – https://valorinveste.globo.com/educacao-financeira/noticia/2023/05/25/nao-caia-em-tentacao-o-que-e-piramide-financeira-e-como-escapar-do-golpe.ghtml  – Acesso em 22 setembro de 2023

G1 – https://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2023/03/30/brasil-teve-mais-de-3-milhoes-de-tentativas-de-golpes-financeiros-na-internet-nos-primeiros-cinco-meses-de-2022.ghtml – Acesso em 22 setembro de 2023

Linkedin – https://www.linkedin.com/news/story/brasil-%C3%A9-l%C3%ADder-mundial-em-golpes-digitais-5189241/ – Acesso em 22 setembro de 2023