Site gospel manipula conteúdo antigo para ligar casos recentes de violência na Nigéria à religião islâmica

Veículos religiosos alinhados ao extremismo de direita no Brasil continuam explorando o tema da violência contra cristãos na Nigéria, seja por meio da reprodução de informações antigas como se fossem atuais, seja por meio da falta de contextualização de fatos para estabelecer outro sentido a eles. Bereia identificou que em abril passado, o portal gospel Pleno.News reproduziu dados sobre ataques na região central de Plateau, na Nigéria, publicados em 2023, pelo jornal Gazeta do Povo, como se fossem atuais, e ainda atribuiu o caso a um ataque de islâmicos a cristãos.
Imagem: matéria PlenoNews de 2025
Imagem: matéria Gazeta do Povo 2023
Ambas as matérias são marcadas pela descontextualização e a exploração de dados superficiais sobre a violência contra populações de determinadas áreas na Nigéria, como se fossem ações de motivação religiosa, exclusivas contra cristãos. Bereia tem observado, no monitoramento sobre a veiculação de tais conteúdos, como eles servem como combustível para a propagação de medo em relação a uma possível perseguição a cristãos no Brasil, que vem sendo denominada politicamente como “cristofobia”.
Bereia checou o conteúdo e apurou dados sobre a realidade da Nigéria, permeada por conflitos e tensões que afetam grupos religiosos.
Conflitos e tensões na Nigéria: marcas de um histórico conturbado
Como os muitos países da África, depois de sofrer invasões e explorações diversas do território, por séculos povoado e governado por reinos e impérios, a região onde se localiza hoje o Estado da Nigéria, foi colonizada pela Grã-Bretanha no final do século 19. O país tornou-se independente em 1960, mas anos depois teve que enfrentar uma guerra civil e vários golpes militares. O comando da nação foi assumido alternadamente por governos civis democraticamente eleitos e por ditaduras militares. As eleições presidenciais de 2011 foram as primeiras consideradas razoavelmente livres e justas.
A Nigéria se tornou uma potência importante do continente africano, especialmente por contra do petróleo. O país é habitado por mais de 500 grupos étnicos, entre os maiores estão os hauçás, os ibos e os iorubás. Do ponto de vista das religiões, o país é dividido igualmente entre os islâmicos. A maioria dos cristãos vive no sul e nas regiões centrais, e os islâmicos se concentram mais ao norte. Uma pequena parcela da população pratica as religiosidades tradicionais e locais denominadas ibo e iorubá, que tem marcas nas diversas expressões culturais e nas vivências das duas principais religiões do país.
Nestas décadas do século 21, a Nigéria ainda enfrenta o desafio de manter a unidade nacional diante de divisões étnicas e religiosas. Nas últimas décadas, milhares morreram em ataques de grupos extremistas autoidentificados islâmicos jihadistas, estabelecidos no nordeste do país, especialmente o Boko Haram, que também sequestra estudantes para exigir resgates ou usá-los em atentados. Movimentos separatistas, como o do Delta do Níger e o que defende a independência da região de Biafra, ganharam força.
Sobre os conflitos na região de Plateau, áreas de Bokkos e Bassa
A matéria do Pleno.News, em abril de 2025, que reproduz informações de notícia da Gazeta do Povo, de dezembro de 2023, refere-se a ataques ocorridos no estado de Plateau, região central da Nigéria. Bereia apurou que ataques foram, de fato, registrados, naquela localização, em 14 de abril deste ano, porém com informações divergentes.
Em entrevista ao Bereia, o executivo do Programa de Promoção da Paz na África do Conselho Mundial de Igrejas e pastor da Convenção de Igrejas Batistas da Nigéria Dr. Ibrahim Wushishi Yusuf reforçou que o norte da Nigéria continua sofrendo ataques violentos de extremistas e terroristas muçulmanos, como o Boko Haram.
Segundo Yusuf, alguns pastores de gado criminosos, da etnia Fulani, também realizam atos de violência nas comunidades. “Vão de aldeia em aldeia matando e sequestrando pessoas para pedir resgate. A maioria das comunidades no planalto, Takum, sul de Kaduna e Benue — que são predominantemente cristãs — sofreram mais em alguns desses ataques de abril passado. Algumas comunidades de Katsina, Zamfara, Yobe e Maiduri, com maioria muçulmana, também tiveram vítimas como consequência disso”.
O pastor batista confirmou o ataque em 14 de abril passado, que causou a morte de 51 pessoas do povo Irigwe, em Zikke, distrito de Kwall, área de governo local de Bassa. Yusuf relatou ao Bereia que milícias Fulani atacaram na madrugada daquela segunda-feira, 14 de abril, em operação que durou cerca de 90 minutos, contra homens e mulheres, crianças e idosos. Mais de dez pessoas ficaram gravemente feridas e receberam atendimento em diferentes centros médicos. Para agravar a destruição contra aquela comunidade, muitas casas e propriedades foram incendiadas pelos agressores, prática que é comum nesse tipo de ataque.
Ibrahim Wushishi Yusuf calcula que este foi o quarto ataque às mesmas comunidades, vitimando pessoas sem distinção da afiliação religiosa. “Ambas as religiões, cristã e muçulmana, sofreram com as ações desses criminosos. Existem muçulmanos bons e moderados na Nigéria que amam e pregam a paz”.
Em manifesto divulgado no próprio 14 de abril de 2025, que relata o ocorrido em Bassa, e expõe os nomes dos 51 mortos e suas idades, que variam entre 3 e 69 anos, o secretário nacional de Comunicação do Movimento Juvenil Irigwe Joseph Chudu Yonkpa declara:
Como povo, todos os nossos esforços para amplificar nossa voz e mostrar ao mundo o genocídio contínuo em nossa terra têm sido ignorados. Mais de 30 pessoas foram mortas no último mês em ataques e emboscadas separados, totalizando quase 100 mortes entre dezembro de 2024 e hoje, com destruição incalculável de lavouras e propriedades. Esses ataques são excessivos, e o povo Irigwe está profundamente preocupado se realmente é considerado cidadão da Nigéria, pois nossos agressores continuam a mutilar e destruir nosso povo com impunidade e sem que os criminosos sejam presos.
Nunca passamos por algo tão grave quanto o assassinato dessas 51 pessoas em nossa terra. Estamos clamando por ajuda do governo, de organizações não governamentais, de organizações da sociedade civil e de pessoas solidárias, para que não apenas condenem essa situação, mas se juntem a nós na exigência de justiça por todos os nossos irmãos assassinados, cujas vidas foram interrompidas pelas milícias Fulani.
Exigimos que um comitê independente seja criado pelo Comando de Defesa Nacional para investigar todas as formas de genocídio na terra Irigwe, prender os responsáveis, seus financiadores e cúmplices, com a esperança de trazer a justiça que nosso povo merece.
Também apelamos à NEMA, à PLASEMA, ao Ministério dos Assuntos Humanitários, a empresas e pessoas solidárias que venham em socorro ao nosso povo, pois suas casas, negócios, lavouras e, em alguns casos, os provedores das famílias foram afetados por esses ataques renovados.
Continuaremos a buscar justiça para nosso povo dentro dos limites da lei e oramos para que Deus conceda descanso às almas de nossos entes queridos.
Bereia levantou informações oferecidas pela rede de comunicação pública alemã Deutsche Welle (DW) de que os casos estão inseridos em um contexto de impunidade contra a violência mortal em áreas rurais. Os ataques são motivados por frequentes disputas de terra entre os pastores/criadores de gado, da etnia islâmica Fulani, e agricultores, não exclusivamente, mas majoritariamente, cristãos.
Segundo o DW, o aumento populacional na Nigéria ocasiona um crescimento no número de terras destinadas à agricultura, porém, as mudanças climáticas interferem na disponibilidade de terras para pastagens. Esta situação evidencia a natureza econômica, climática, étnica e política do conflito, longe de ter motivações religiosas.
Em uma entrevista ao portal de notícias do Vaticano, em 2018, o padre missionário salesiano na Nigéria Roberto Castiglione falou sobre a violência em Plateau. “A polícia não é eficiente. Os pastores Fulani avançam armados e querem obrigar, com o medo e ameaças, as populações locais a abandonarem suas terras para depois tomar posse e reivindicar a propriedade”.
O mau uso da ideia de perseguição religiosa na Nigéria
A afirmação de que “A violência religiosa é um problema grave” na Nigéria é um dos dez “mitos” desmentidos pelo projeto de pesquisa Nigeria Watch, uma base de dados que monitora a violência letal, os conflitos e a segurança humana na Nigéria, desde 2006. No relatório sobre os principais mitos acerca da violência no país, a iniciativa rebate a ideia de uma “oposição irredutível” entre um “Norte muçulmano” e um “Sul cristão”.
A análise é categórica ao declarar que “identificar a religião como a causa de confrontos fatais é bastante complexo. A violência que envolve questões religiosas ou que opõe muçulmanos e cristãos pode ser política, econômica ou social, como no caso das disputas de terra e dos conflitos entre pastores/criadores de gado no estado de Plateau. Essa é a razão pela qual, ao estudar o papel da religião na violência, é mais preciso focar nos detalhes dos atores rotulados como ‘cristãos’ ou ‘islâmicos’”.
Um segundo levantamento do Nigeria Watch também aponta o estado de Plateau como um dos que registram maior número de mortes devido a conflito de terras, e destaca as questões entre fazendeiros e pastores de animais, e os conflitos étnicos da região. O documento do projeto de pesquisa, que trata do “mito” da violência religiosa, inclui dados que mostram que os confrontos com morte entre organizações islâmicas e cristãs são muito raros. O texto reforça que os incidentes fatais, com ao menos uma organização político-religiosa, envolvem principalmente o grupo jihadista Boko Haram (BH), classificado como organização islâmica terrorista, que age contra as forças de segurança do país.
A iniciativa de pesquisa ressalta que a violência religiosa na Nigéria não é apenas inter-religiosa e mostra que o Boko Haram mata principalmente muçulmanos. O documento do Nigeria Watch destaca que é simplista considerar que confrontos letais entre cristãos e muçulmanos têm o potencial de segregar o país. Outras formas de intolerância também resultam em violência fatal na Nigéria, como a “caça às bruxas”, com falsas alegações de bruxaria contra expressões religiosas locais. Tais acusações, em alguns casos, são difundidas por pastores evangélicos do ramo pentecostal, e apoiadas por discursos que reforçam a crença em formas culturais locais de superstição.
Iniciativa de promoção da paz
O pastor Yusuf revelou ainda, ao Bereia, que, em 2012, foi realizada uma visita de líderes inter-religiosos, promovida pelo Conselho Mundial de Igrejas e pelo Instituto para o Pensamento Islâmico Royal Aal al-Bayt, um centro de estudos islâmicos com sede na Jordânia, ligado à família real daquele país, que frequentemente colabora com líderes religiosos cristãos e muçulmanos em iniciativas de diálogo e reconciliação. Nessa visita foi identificada a necessidade de apoiar o Conselho Cristão da Nigéria e a organização Jama’atul Nasril Islam, que representa muçulmanos e cristãos nacionais.
Como resultado, foi fundado um centro inter-religioso como espaço de cooperação em enfrentamento às ações dos extremistas. Como integrante do Conselho Mundial de Igrejas, pastor atuante na Nigéria, Yusuf tornou-se responsável pelo centro inter-religioso, situado em Abuja, norte da Nigéria.
“Supervisiono a iniciativa de construção da paz na África desde o ano passado, em meio a muitas dificuldades para oferecer apoio. São necessárias várias respostas, mas o centro continua enfrentando problemas de financiamento. O Conselho Mundial de Igrejas tem tentado conseguir financiamento para permitir uma atuação mais eficaz do centro diante dos conflitos violentos contínuos no norte da Nigéria”, afirmou o pastor batista.
Foto: Conselho Mundial de Igrejas
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Bereia conclui que veículos de imprensa gospel no Brasil têm destacado enganosamente apenas cristãos como vítimas dos ataques violentos na Nigéria, como ocorreu com a matéria do Pleno.News, publicada em abril passado. Há apenas a reprodução de informações enviadas por grupos do exterior ou levantadas por veículos brasileiros, sem apuração e sem contextualização sobre as razões dos conflitos.
O mau tratamento do tema acaba produzindo material inusitado como o texto que repete, em 2025, dados publicados em 2023, inflando o número de mortos no atentado em questão. O conteúdo termina por produzir a propagação de pânico e de intolerância, ao fortalecer um discurso de perseguição religiosa contra cristãos, por parte de islâmicos.
Além do conteúdo disseminado no Brasil omitir a informação sobre islâmicos serem também vítimas dos ataques que não têm motivação religiosa, silencia também sobre iniciativas de paz e reconciliação no país, realizadas e financiadas em conjunto por cristãos e islâmicos.
Diferentemente do que tem sido propagado no Brasil, a quase totalidade dos conflitos que envolvem grupos extremistas como o Boko Haram e Fulani na Nigéria, não se trata de ataques religiosos, nem tampouco de perseguição religiosa nacional. As motivações para os casos têm fundamentalmente caráter político, econômico, étnico e cultural, ou seja, os atos são praticados por grupos extremistas, com interesses específicos diversos e que têm uma identidade religiosa.
Veículos de notícias religiosos e não religiosos no Brasil têm o dever de contextualizar e produzir informação completa e digna sobre estas situações para que não haja promoção de intolerância nem uso sensacionalista do tema por parte de quem faz política com uso da religião, para evitar equívocos e se possa produzir solidariedade com a população nigeriana que sofre com tamanha violência.
Referências da checagem
Deutsche Welle
https://www.dw.com/en/nigeria-amnesty-condemns-government-after-deadly-attack/a-72245453 Acesso em 23 ABR 25
Vatican News
https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2018-07/nigeria-pastores-fulani-salesianos.html Acesso em 30 ABR 25
Nigeria Watch
https://www.nigeriawatch.org/index.php Acesso em 23 ABR 25
https://www.nigeriawatch.org/media/html/Nigeria_Watch_10_MythFinal.pdf Acesso em 23 ABR 25
https://www.nigeriawatch.org/media/html/File/NW10Myths2023.pdf Acesso em 23 ABR 25
Carta Capital
https://www.cartacapital.com.br/educacao/o-avanco-do-terror-na-nigeria/ Acesso em 30 ABR 25
BBC News Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cvgeyw81y12o Acesso em 23 ABR 25
Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília
http://www.gepsi.unb.br/index.php?option=com_content&view=article&layout=edit&id=28&Itemid=599 Acesso em 30 ABR 25