Um vídeo gravado pela deputada federal evangélica Priscila Costa (PL/CE), oferece a seguidores conteúdo marcado por pânico com o tema do “banheiro unissex”. A deputada diz que tal política teria sido “instituída pelo governo Lula”, causando riscos às filhas das famílias brasileiras, que entrarão em banheiros e “encontrarão marmanjos”.
O vídeo voltou a circular em grupos de WhatsApp e em perfis diversos de mídias sociais desde 10 de novembro de 2023.
Imagem: reprodução do Facebook
Imagem: reprodução de perfil do TikTok
Bereia já havia checado este conteúdo, em setembro passado, publicado por outros parlamentares identificados com a extrema-direita, o que foi classificado como ENGANOSO.
Nos últimos dias de setembro, as redes digitais foram tomadas por discursos que atribuem ao presidente da República e ao ministro dos Direitos Humanos a decretação de uma medida que supostamente implementaria, obrigatoriamente, banheiros unissex nas escolas do país.
Entre os maiores disseminadores dos conteúdos estão parlamentares com identidade religiosa evangélica, como os deputados federais Nikolas Ferreira (PL-MG) e Filipe Barros (PL-PR), e o senador Sérgio Moro (União Brasil-PR). Bereia checou informações sobre o caso.
O discurso sobre banheiro unissex
O deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) publicou, em 22 de setembro, um vídeo em seu perfil do Instagram em que afirma que o ministro de Direitos Humanos Silvio Almeida “instituiu o banheiro unissex para todas as escolas do Brasil”.
Ferreira faz a leitura de uma cláusula em texto apontado por ele como oficial. Ao final do vídeo, inclui trechos de entrevistas e falas do presidente Lula da Silva sobre banheiros unissex e embates entre pessoas LGBTs e outras contrárias ao uso dos banheiros conforme identificação de gênero.
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No mesmo dia, o deputado federal Filipe Barros (PL-PR) também publicou um vídeo na mesma rede digital, onde afirma em tom alarmante: “Lula acaba de instituir o banheiro unissex no Brasil, é isso mesmo que você ouviu!”. Barros segue dizendo que o Ministro dos Direitos Humanos de Lula “editou e publicou a resolução” que institui a medida, “inclusive para menores de idade”.
Da mesma forma que Ferreira, o deputado paranaense utiliza cortes de vídeos com declarações do atual presidente sobre o tema, durante a campanha eleitoral de 2022. Um dos trechos que viralizou nas mídias sociais mostra Lula da Silva, falando em tom de indignação sobre as falsas informações acerca da criação de banheiros unissex em seu governo, ainda no período eleitoral. A fala transcorreu durante encontro de Lula com evangélicos em São Paulo, conforme mostrou o portal UOL, no YouTube.
No entanto, um recorte do trecho do vídeo, com apenas uma frase, que diz “só pode ter saído da cabeça de satanás a história de banheiro unissex”, tem sido usada por líderes religiosos para construir a falsa noção de que Lula tenha atribuído à figura do mal, a ideia de criar banheiros unissex e agora estaria, ele próprio, tomando esta iniciativa.
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Barros também incita preocupação ao citar um trecho do texto que diz condenar. Segundo ele, o documento obrigaria pais contrários à decisão de um filho, de utilizar o banheiro de acordo com o gênero que se identifica, a se justificarem à escola. O deputado encerra o vídeo afirmando ter protocolado um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para revogar a resolução.
Imagem: reprodução Instagram
Já o senador Sérgio Moro (União Brasil – PR), utilizou a mídia digital X para acusar o presidente de impor “banheiros unissex para todas as escolas públicas do país”. Conforme publicação em seu perfil na rede digital, com mais de 330 mil visualizações, Moro afirma que Lula teria tomado uma espécie de decisão arbitrária.
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O jornal Gazeta do Povo publicou, ainda em 22 de setembro, matéria com o título ‘Governo orienta escolas a permitir uso de banheiro de acordo com identidade de gênero’ bastante compartilhada. O jornal afirma que o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania publicou documento com orientação a todas as escolas do país para permitirem o uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero e complementa, “abrindo brecha para que uma pessoa que se considere mulher, mesmo tendo nascido homem, use o banheiro feminino”.
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Documentos utilizados pelos parlamentares como base do discurso
Os documentos que os parlamentares utilizam para desinformar são, na verdade, resoluções do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ (CNLGBTQIA+), publicadas em 22 de setembro. O órgão, que havia sido extinto no.governo.anterior e foi restabelecido este.ano, sob o novo governo, é composto por 19 representantes do governo federal e 19 representantes da sociedade civil. O conselho existe com o intuito de fortalecer o diálogo com a sociedade e assegurar a participação social na formulação de políticas voltadas às pessoas LGBTQIA+.
Durante o governo de Jair Bolsonaro, foram adotadas medidas que enfraqueceram a participação social nos temas associados à causa LGBTQIA+. Uma delas foi um decreto, de 2019, que extinguiu conselhos de políticas públicas voltadas para a população LGBTQIA+. Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal (STF) limitou os efeitos do decreto. Em 2021, o governo Bolsonaro fez nova investida contra órgãos semelhantes, extinguindo o Departamento de Promoção dos Direitos de LGBT, como demonstra o panorama de políticas públicas para a população LGBTQIA+ produzido pelo Nexo Jornal. O restabelecimento do CNLGBTQIA+, em 2023, se deu na esteira da retomada de políticas específicas para a população.
Como informou a Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal, as resoluções nº 1 e nº 2, utilizadas para promover a desinformação, foram elaboradas sem a participação do ministro dos Direitos Humanos e do Presidente da República. As resoluções, que não têm caráter vinculante, ou seja, não são de cumprimento obrigatório, têm o caráter de recomendação, e foram assinadas pela presidente do Conselho Janaína Barbosa de Oliveira.
Além de os documentos não terem sido editados por Lula ou pelo ministro Silvio Almeida, não consta menção a “banheiro unissex”, como diversas publicações nas redes querem fazer crer. As resoluções abordam, essencialmente, a questão do uso de banheiros, vestiários e outros espaços segregados por gênero em escolas de acordo com a identidade de gênero dos estudantes.
Entre as orientações previstas na Resolução nº 2 estão, ainda, a implementação de ações que busquem minimizar os riscos de possíveis violências e discriminações. Para tanto, a resolução sugere que, para além dos banheiros masculinos e femininos já existentes nos espaços públicos, sejam instalados também “banheiros de uso individual, independente de gênero”. O termo “unissex” não é utilizado, apesar de ser prática comum a muitos espaços como ônibus para percursos longos, aviões, alguns estabelecimentos de serviços e universidades, como demonstrou, em 2018, matéria da Folha de São Paulo.
Apesar dos discursos que buscam mobilizar pânico moral na sociedade, tem crescido, nos últimos anos, o entendimento acerca da utilização de banheiros de acordo com a identidade de gênero. Em 2015, o então Procurador-Geral da República (PGR) Rodrigo Janot defendeu o uso de banheiros em respeito à identidade de gênero, sob a alegação que “impedir que alguém que se sente mulher e se identifica como tal de usar o banheiro feminino é, sem dúvida, uma violência.” No mesmo ano, o ministro do STF Luís Roberto Barroso deu voto favorável ao uso de banheiros de acordo com a identidade de gênero.
Novos incidentes têm gerado decisões judiciais favoráveis à utilização de banheiros de acordo com a percepção individual de gênero. Um deles é o caso do recente entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), que declarou inconstitucional uma lei que proibia a instalação de banheiros unissex no município de São Bernardo do Campo.
Informações divulgadas pela imprensa esclarecem sobre as resoluções
Após as publicações enganosas que acusam o governo federal de ter implementado banheiros unissex nas escolas terem viralizado nas redes digitais, diversas agências especializadas realizaram checagem sobre o caso. Aos Fatos, Lupa e Reuters caracterizaram o conteúdo como “falso”. Além disso, o Projeto Comprova produziu conteúdo informativo sobre o tema, explicando o caráter das resoluções e aspectos relacionados.
Como destacou o Estadão, a viralização de publicações desinformativas relacionadas a banheiros unissex “ocorreu na mesma semana em que foram reveladas uma das informações mais fortes sobre a delação de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência da República”. Porém, outros indícios apontam para o uso do tema como estratégia política.
Desde 2020, Bereia vem publicando uma série de checagens e artigos que indicam a mobilização de pânico moral na política brasileira. Em janeiro daquele ano, durante sua própria gestão à frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a então ministra Damares Alves afirmou que havia risco de a pedofilia ser legalizada no Brasil. A alegação era falsa.
Em novembro de 2020, outra checagem apontou como enganosa informação segundo a qual uma ação, supostamente proposta pelo PSOL, obrigaria o ensino de “ideologia de gênero” nas escolas. A chamada “ideologia de gênero” é um dos temas que mais mobilizou desinformação em espaços religiosos nas eleições de 2022.
O discurso envolvendo “banheiro unissex” também não é uma novidade. A ferramenta Google Trends, que reúne dados relativos ao uso da internet, aponta um pico de pesquisas sobre o termo durante a campanha eleitoral de 2022. Bereia já mostrou a mobilização do tema associado a contextos escolares.
O próprio deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), em março deste ano, durante discurso na Câmara dos Deputados, fez alusão a banheiros unissex e promoveu outras mentiras. À época, o discurso foi considerado enganoso por Bereia e o parlamentar foi acusado de transfobia.
Reação do ministro dos Direitos Humanos e consequências aos parlamentares
O ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida enviou um ofício à Advocacia Geral da União (AGU), na sexta-feira, 22 de setembro, solicitando a responsabilização dos propagadores das falsidades. O texto requer a “tomada das providências cabíveis em âmbito administrativo, cível e criminal, inclusive com o pedido de retirada das postagens das redes sociais”.
No documento, o ministro aponta que os deputados propagaram fake news com o claro motivo de causar “pânico moral”. Em seu perfil no X, Silvio Almeida voltou a citar o discurso de ódio contra minorias.
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Em nota, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) esclareceu as competências da Resolução publicada e do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ (CNLGBTQIA+). Segundo o portal de notícias Poder360, a AGU informou, por meio de comunicado, o recebimento do ofício que tratava o caso como fake news e crimes contra o ministro e o presidente, e determinou à Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD) que seja feita análise do caso.
A chefe da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do MDHC secretária Symmy Larrat também se manifestou contra as fake news e esclareceu a função da resolução em vídeo que foi divulgado pelo perfil do MDHC no X.
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Durante audiência pública realizada, na última terça-feira, 26, pela Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, com ministro Silvio Almeida, o deputado Filipe Barros (PL-PR) trouxe o assunto à tona. Barros se referiu ao ofício enviado à AGU sobre a sua conduta, e ao questionar o líder da pasta sobre as convicções do ministro acerca de identidade de gênero.
Apesar do assunto não ser pauta da audiência, Silvio Almeida afirmou que se tratava de uma oportunidade para esclarecer a confusão em torno do assunto. Durante a fala, Almeida explicou a incoerência contida na ação do parlamentar ao protocolar um PDL para um documento que não tem caráter vinculante, e sim consultivo. O ministro ainda reforçou as justificativas que o levaram a tomar a medida junto a AGU.
Em sua tréplica, o deputado adotou tom agressivo e fez o uso de ofensas ao acusar o ministro de ser abusador, covarde e insinuar que fosse analfabeto. Ao tentar responder, Silvio Almeida foi interrompido diversas vezes, até que o deputado André Janones (Avante-MG) reivindicasse o silêncio de Filipe Barros. Em decorrência dos extremismos, sucederam-se xingamentos, empurrões, uma expulsão e a sessão teve que ser suspensa por alguns minutos.
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Bereia classifica os conteúdos checados como enganosos. As declarações em vídeo e texto publicadas por parlamentares nas redes digitais não têm substância factual, como uma lei instituída, decretos ou outros documentos de força legislativa, assinados pelo presidente Lula da Silva ou pelo ministro dos Direitos Humanos e Cidadania Silvio Almeida, que obriguem o estabelecimento de banheiros unissex.
Portanto, tais afirmações se constituem como conteúdo enganoso. As informações reunidas e apresentadas pelas autoridades, pelas checagens, tanto do Bereia como de outras agências, contradizem com clareza o que foi apresentado pelos políticos de extrema-direita, ficando classificado, então, como desinformação.
Conforme apresentado pela imprensa, o assunto ficou entre os mais comentados no X, por perfis de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, após o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) se tornar réu por transfobia e o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro afirmar, em delação, que o ex-presidente se reuniu com as Forças Armadas para orquestrar uma intervenção militar e anular as eleições de 2022.
Outro aspecto que corrobora a prática de deturpação de informações no âmbito deste tema é o uso do fragmento do vídeo de um discurso de Lula, durante campanha eleitoral. Na ocasião, o então candidato se posicionava com indignação contra falsas informações que associavam seu possível mandato à instituição obrigatória de banheiros unissex para a população LGBT. A manipulação intencional da frase do atual presidente constrói a imagem de um traidor que prometeu algo em campanha, mas depois de eleito mudou de ideia.
Ambas as estratégias, de sobrepor um assunto e destruir a imagem de um político de oposição, estão pautadas pelo objetivo de causar pânico moral e ganhar visibilidade com sensacionalismo. Bereia reafirma que oposição é importante em uma democracia, que precisa de uma oposição para o papel crítico e de pressão a governos eleitos. Porém, tal postura é relevante quando praticada com dignidade e não com mentiras e enganos.
No último 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) subiu à tribuna da Câmara dos Deputados e, aproveitando-se da data em homenagem às mulheres, proferiu discurso que gerou forte reação negativa nas redes digitais, e por parte de políticos e grupos sociais. Ironizando a realidade de pessoas transgênero, o deputado vestiu uma peruca amarela e passou a falar como se fosse uma mulher de nome “Nicole”. A fala repercutiu como ofensa não apenas às mulheres trans, mas também às mulheres em geral e à sociedade brasileira.
Eleito na esteira do avanço conservador capitaneado pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro, o filho e neto de pastor Nikolas Ferreira, vinculado à Comunidade Evangélica Graça e Paz, foi o deputado federal mais votado em 2022, com campanha em que se apresentou, genericamente, como “cristão”. Pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (ISER) que levantou a identidade religiosa de parlamentares eleitos para o mandato 2023-2017 aponta que, desde as eleições municipais de 2020, políticos passaram a utilizar o termo genérico “cristão” como estratégia para alcançar diferentes segmentos da sociedade que se identificam com as moralidades e valores cristãos. Ele é conhecido por suas polêmicas envolvendo temas religiosos, pautas anti-feministas e LGBTQIAP+ e a defesa de posições radicais.
Bereia checou a fala do deputado e constatou, entre outros temas, falsas menções a “banheiro unissex”, a acusação de pedofilia à intelectual feminista Simone de Beauvoir (1908-1986) e interpretações pessoais do papel supostamente reservado às mulheres na sociedade.
Banheiro unissex
Em seu discurso, o deputado Nikolas Ferreira fez alusão aos “banheiros unissex”, afirmando que defendia a liberdade “de um pai recusar (…) um marmanjo entrar no banheiro da sua filha sem você ser considerado um transfóbico”. A frase apela para uma das mais utilizadas fake news em campanhas eleitorais nos últimos anos. Ao abordar o assunto, o deputado do PL cria uma situação hipotética de abuso infantil, utilizando o medo como principal recurso retórico.
A fake news do banheiro unissex foi amplamente utilizada na campanha presidencial de 2022, em que apoiadores do candidato Jair Bolsonaro atribuíam a Luís Inácio Lula da Silva um falso projeto de implementar banheiros compartilhados por homens e mulheres nas escolas infantis brasileiras.
Em entrevista à Folha de São Paulo, a pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Viviane Vergueiro, afirma que “não necessariamente a demanda da população trans parte da bandeira de banheiros multigênero ou unissex. Ela parte da ideia de que as pessoas trans, como todas as pessoas, têm o direito de utilização dos espaços públicos”.
No entanto, assim como a fake news do “kit gay”, a do banheiro unissex segue sendo utilizada por políticos conservadores para manter suas bases de apoio permanentemente engajadas contra pautas associadas aos grupos progressistas.
A narrativa dos banheiros compartilhados tem sido cada vez mais frequente em diversas disputas ideológicas. Conforme Bereia já publicou, sites religiosos e políticos já exploraram o tema de maneira inadequada, acusando adversários políticos sem apresentar provas ou fontes que sustentem suas alegações.
Simone de Beauvoir e pedofilia
A fala do deputado Nikolas Ferreira, proferida no Dia Internacional da Mulher, contemplou uma crítica ao feminismo. Entre outros trechos questionáveis do ponto de vista factual, o deputado acusou a intelectual francesa Simone de Beauvoir, célebre feminista, de apoiar a pedofilia.
O parlamentar evangélico fez referência ao controverso episódio, ocorrido em 1977, em que vários intelectuais, incluindo Beauvoir, defenderam, perante o Parlamento francês, a abolição da idade de consentimento para o ato sexual, o que não significa defesa da pedofilia.
A pedofilia é considerada uma doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde os anos 1960. Segundo reportagem publicada pelo TAB/UOL, são considerados pedófilos – ou seja, portadores da doença pedofilia – pessoas que sentem atração sexual compulsiva por crianças abaixo de 13 anos. A equivocada associação da doença com o crime contra a dignidade sexual da criança, previsto no arcabouço jurídico brasileiro, é utilizada pela extrema direita no intuito de confundir e causar pânico, conforme Bereia checou.
O deputado utilizou-se do caso específico na França, em 1977, desconhecido por boa parte da população, para menosprezar o feminismo enquanto luta pela justiça de gênero. “Mulheres, vocês não devem nada ao feminismo, pelo contrário”, afirmou.
Trata-se de uma polêmica antiga no Brasil e que já havia demonstrado seu poder de promover agitação ideológica. Os ataques contra Simone de Beauvoir avolumaram-se após o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) abordar, em 2015, a obra da escritora em uma de suas questões. Nos dias seguintes à realização do exame, uma enxurrada de críticas circulou na internet.
Conforme consta em matéria da BBC divulgada à época, o verbete sobre Beauvoir no site Wikipedia foi alterado diversas vezes, ridicularizando a feminista. Segundo a BBC, de 250 visitas diárias, o verbete passou para 35 mil visitas em um só dia e as edições foram tantas que o site restringiu a possibilidade de alteração do texto, considerando o que ocorreu como “vandalismo excessivo”.
Violência política de gênero no Dia Internacional da Mulher
Em outro trecho de sua fala na tribuna, o deputado do PL dirige-se às mulheres: “retomem sua feminilidade, tenham filhos, amem a maternidade, formem a sua família porque, dessa forma, vocês colocarão luz no mundo e serão, com certeza, mulheres valorosas”. Segundo a avaliação do Instituto de Estudos da Religião (ISER), utilizando a religião como alicerce de posições políticas conservadoras – o deputado escreveu o livro “O Cristão e a Política”, em que reúne o conteúdo de suas palestras – Nikolas Ferreira valeu-se do Dia Internacional da Mulher para, a partir de suas crenças pessoais, ditar às mulheres como proceder em suas vidas.
Segundo matéria da BBC, o relatório “Evangélicos nas redes”, elaborado pelo NetLab, grupo de pesquisa da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), identificou que os conteúdos divulgados por Nikolas Ferreira caracterizam-se por propor uma oposição entre evangélicos e figuras ligadas à esquerda do espectro político, sejam políticos ou meros apoiadores. O grande alcance que possui, materializado no expressivo número de votos que obteve no pleito de 2022 – 1,47 milhão de votos, recorde histórico para o cargo de deputado federal –, está relacionado, entre outros fatores, à vinculação da política à religião.
No discurso de 8 de março, Ferreira, enquanto ataca pautas progressistas, defende referências religiosas anti-feministas com base na sua interpretação e na sua opinião, ignorando um fenômeno nada novo na religião: o feminismo de orientação cristã, como recordam as pesquisadoras do ISER. Mundo afora, mulheres protestantes e católicas dedicam-se a uma leitura feminista da Bíblia, ressaltando figuras bíblicas femininas que fogem do modelo de submissão e devoção apregoado por muitos.
Conforme divulgado pelo jornal El País em matéria publicada em 2018, o livro “Uma Bíblia das Mulheres”, desenvolvido por teólogas e historiadoras, apresenta um olhar feminista sobre os ensinamentos bíblicos. Na reportagem, Lauriane Savoy, codiretora do projeto argumenta que “pode-se ler a Bíblia sendo feminista, e inclusive a leitura da Bíblia pode nos nutrir como feministas”.
O feminismo na religião está presente também no Brasil. Odja Barros, que se diz uma “feminista da Bíblia” e é pastora da Igreja Batista do Pinheiro, em Maceió (AL), recebeu apoio do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil (Conic) após sofrer ameaças de morte por ter celebrado um casamento homoafetivo. Em entrevista ao blog Universa, do UOL, a pastora afirma que “argumentar dizendo ‘É bíblico’ é terrível. Impede o diálogo, é simplesmente para fechar uma postura conservadora e encerrar a conversa”.
Existem, ainda, grupos como o Evangélicas pela Igualdade de Gênero que, no Facebook, descreve-se como uma “ação coletiva em que as mulheres tomam controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida e de seu destino”.
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O discurso proferido pelo deputado federal evangélico Nikolas Ferreira (PL-MG) na tribuna da Câmara dos Deputados no dia 8 de março foi checado por Bereia, que considerou o conteúdo veiculado como enganoso. As informações expostas necessitam de correções, substância e contextualização. Além disso, faz uso do pânico moral para captar apoios e confunde o público dando caráter de informação a interpretações e posições pessoais exclusivistas de leitura da Bíblia, em detrimento das outras abordagens existentes.
O parlamentar exerceu seu direito de discursar para o plenário, utilizando-se de sensacionalismo com discurso transfóbico e de desrespeito à história das lutas das mulheres por direitos, para conquista de audiência, especialmente na data em que o fez, em que se comemorou o Dia Internacional da Mulher.
São quatro as campanhas eleitorais para prefeituras consideradas as mais sujas do Brasil, no tocante à disseminação de desinformação e calúnia contra concorrentes. O Coletivo Bereia teve acesso a materiais impressos e digitais de contracampanha para prefeituras do Rio de Janeiro, Fortaleza, Recife e São Gonçalo, e identificou conteúdos muito semelhantes, com alertas de pânico moral, acusações e mentiras, especialmente contra de candidatos de partidos de esquerda com chances de vitória. Além da disseminação de desinformação, com linguagem religiosa voltada a eleitores evangélicos, a quase totalidade tem autoria desfocada ou era anônima, o que configura crime eleitoral.
Na transmissão, Jair Bolsonaro (sem partido) repetiu conteúdo da campanha difamatória contra o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em favor do candidato a reeleição no Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos). A campanha ataca o PSOL para atingir o concorrente de Crivella, Eduardo Paes (DEM). Depois de ser derrotado no primeiro turno das eleições, o PSOL não declarou apoio em Eduardo Paes, mas conclamou seus partidários a derrotarem Crivella nas urnas no segundo turno. O partido foi mais bem sucedido em São Paulo, com a candidatura de Guilherme Boulos que disputou o segundo turno com Bruno Covas (PSDB). Bereia publicou matéria sobre as fake news contra o PSOL proferidas por Marcelo Crivella o início do segundo turno.
Bolsonaro estava acompanhado na transmissão ao vivo pelo pastor evangélico ministro da Educação, Milton Ribeiro. Foram feitas várias afirmações contra a política de educação dos governos anteriores e contra o fechamento das escolas durante a pandemia. Ele desafiou que alguém provasse que tenha chamado a COVID-19 de gripezinha. A doença atingiu mais de 6 milhões de brasileiros e já matou mais de 171 mil – entre os quais um senador da República, o integrante da bancada evangélica Arolde de Oliveira (DEM-RJ), apoiador de Bolsonaro e crítico das medidas de contenção. Esta mentira proferida pelo presidente repercutiu fortemente nas mídias noticiosas, uma vez que um dos usos do termo “gripezinha” por Bolsonaro ocorreu em março passado, em pronunciamento oficial.
“Domingo eu vou no Rio de Janeiro, está previsto vou votar. O pessoal já sabe em quem eu vou votar. Fiz campanha pro Marcelo Crivella. Não me interessa pesquisa. Nunca acreditei em pesquisa. E quem vai pro segundo turno, boa sorte. Uma boa decisão. E leva em conta, sim, o partido, a qual esse candidato no segundo turno pertence. O que esse partido defende, sempre defendeu . Ideologia de gênero, desgaste dos valores familiares, ignorando educação, um montão de coisa. Veja o que esses partidos defenderam, e você então não votar nesses candidatos a prefeitos, desses partidos. Vocês sabem é PT, PC do b, PSOL, PDT entre outros ali. Esse é o apelo que eu faço, porque o futuro do teu filho vai passar pelas mãos desse prefeito. Esse prefeito vai decidir se a escola vai tá fechada, ou não. E o que em parte vai ser ensinado em sala de aula. O quê ele vai defender. O que, muitas vezes, esse candidato a prefeito prometeu a um partido coligado a ele. Por exemplo, vamos supor, no Rio de Janeiro o candidato a prefeito lá, prometeu ao Psol a secretaria da educação. Se esse cara ganhar, não reclame do lixo que teu filho vai ter, quando chegar em sala de aula”.
Bereia ouviu o advogado Gabriel Antunes, que fez o alerta de que os eleitores ou candidatos que veicularem, ou repassarem este tipo de propaganda, em tese, podem ser responsabilizados perante a Lei Eleitoral. De acordo com o disposto na Lei 13.834, de 4 de junho de 2019, os perfis de mídias sociais e os usuários poderão ser enquadrados no crime de denunciação caluniosa com finalidade eleitoral. São considerados agravantes, o anonimato e aquele que divulga “incorrerá nas mesmas penas deste artigo quem, comprovadamente ciente da inocência do denunciado, e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído”. A aplicação dessa pena, ou mesmo indiciamento, porém, ainda não está clara. Todavia, o alerta é: se há lei, está tipificado o crime.
O curioso ataque em São Gonçalo
O presidente Jair Bolsonaro também declarou curioso apoio a uma candidatura de cidade com pouco destaque no quadro político nacional, São Gonçalo, da região do Grande Rio.
O capitão Nelson, candidato do Avante a prefeito em São Gonçalo, agradeceu ao presidente Bolsonaro pelo apoio nos segundo turno e fez circular o vídeo que lhe é favorável. O adversário de Nelson é Dimas Gadelha, do PT, cuja vitória no primeiro turno reforça tendência de consolidação de um “cinturão da esquerda” na região metropolitana do Rio, o que pode explicar a investida do presidente.
A campanha pró-Nelson usa o mesmo argumento de pânico moral pró-Crivella, de que PT, PSOL e a esquerda são contra a família, a favor da “ideologia de gênero” e da erotização de crianças nas escolas. Uma das mentiras propagadas era a de que o candidato adversário iria instalar banheiros unissex nas escolas da cidade. O boato foi desmentido pelo site Boatos.org.
São Gonçalo já teve uma prefeita evangélica, Aparecida Panisset (PDT), de 2005 a 2012. Ela foi denunciada pelo Ministério Público por repasses de verbas à duas igrejas evangélicas em um convênio de 600 mil reais. Além da pauta de costumes, comum aos evangélicos, Aparecida Panisset também promovia “guerras espirituais” contra as religiões e monumentos de matriz africana. Desde Panisset, a força do eleitorado evangélico é disputada por todos os candidatos em São Gonçalo.
As acusações contra Marília Arraes (PT) no segundo turno em Recife, seguem os mesmos temas de pânico moral e, também, a mesma estética dos demais folhetos espalhados entre eleitores cristãos no Rio e em Fortaleza.
O ataque a João Sarto, em Fortaleza, mesmo ele sendo evangélico
O candidato ao segundo turno de Fortaleza João Sarto (PDT) é evangélico, mas isto não foi suficiente para livrá-lo dos ataques que apelam à fiéis do segmento a não votarem nele, favorecendo o concorrente, o Capitão Wagner (PROS).
O mesmo tipo de material impresso, sem autoria, foi distribuído em Fortaleza nos últimos dias.
O Coletivo Bereia chama a atenção para a análise publicada no Observatório das Eleições, do UOL, que constatou que as campanhas de desinformação buscaram mobilizar grupos de eleitores conservadores contra os líderes em intenção de voto da esquerda, em uma reação às derrotas do primeiro turno e ao encolhimento das bancadas conservadoras para Câmaras Municipais em várias cidades. A estratégia de voltar às pautas morais exploradas na campanha eleitoral de 2018 é uma tentativa de repetir os êxitos e surpresas daquele ano. Somente após a divulgação dos resultados será possível avaliar se a estratégia alcançou resultado.