Um boletim de áudio semanal, lido por lideranças comunitárias das periferias de Belo Horizonte (MG), vem se tornando uma ferramenta inovadora no enfrentamento à desinformação em ambientes religiosos. O Boletim de Fé é uma iniciativa do Observatório Participativo da Desinformação, da ONG Agência de Iniciativas Cidadãs (AIC), em parceria com o Coletivo Bereia, especializado em checagens de conteúdo religioso.
O programa traz uma reflexão bíblica seguida de uma checagem de informação que circulou nos grupos religiosos. O conteúdo é produzido pela equipe da AIC e veiculado em uma lista de WhatsApp, além de ser disponibilizado em plataformas digitais. Junto ao áudio, os ouvintes recebem um resumo escrito e o link para a fonte confiável da informação.
A ideia nasceu a partir da percepção, relatada por lideranças ouvidas pelo Observatório, de que a desinformação muitas vezes se apoia em interpretações distorcidas da Bíblia para se espalhar nas comunidades de fé. Na visão do coordenador de projetos Juliano Antunes, se a desinformação muitas vezes chega amparada por uma reflexão teológica, a estratégia de enfrentamento também precisa oferecer esse mesmo suporte.
“No Observatório, temos cada vez mais entendido que a desinformação está sempre muito relacionada a um contexto de ideias e discursos. Em nossa escuta com 21 lideranças evangélicas, muitos apontaram que uma leitura fundamentalista e distorcida da Bíblia tem favorecido a promoção de desinformações sobre várias questões — desde políticas públicas, como a Lei Maria da Penha, até temas relacionados à comunidade LGBTQIA+ e às religiões de matriz africana”, detalha Antunes.
O episódio de estreia do Boletim de Fé tratou de uma checagem do Bereia sobre vídeos e mensagens que alegavam perseguição e mortes em massa de cristãos na Síria. O conteúdo que citava um suposto massacre de 1.800 cristãos foi classificado como enganoso. As informações não foram confirmadas por agências internacionais como ONU, BBC e CNN, e os relatos indicam que os ataques recentes atingiram majoritariamente a minoria alauita e não cristãos.


Imagem: acervo/AIC
A escolha de uma liderança local como a voz do boletim é estratégica: ao reconhecer a força dos laços comunitários, o projeto busca tornar o porta-voz da verdade alguém em quem a audiência já confia. O objetivo é nítido — reduzir o impacto das fake news nas comunidades de fé, muitas vezes mais suscetíveis à desinformação pela própria lógica de confiança e compartilhamento nos grupos religiosos. Para a diretora da AIC e coordenadora do Observatório, Emanuela São Pedro, o engajamento das lideranças religiosas é fundamental nesse processo.
“As lideranças estão próximas das pessoas, convivem com seus desafios e são referências de confiança. Quando falamos de lideranças religiosas, essa relação é ainda mais forte, pois lidamos com as crenças e a fé. Por isso, é fundamental que essas lideranças se comprometam em orientar de forma crítica e segura sobre as informações que circulam, e promovam o crescimento das pessoas, não alimentando informações enganosas ou distorcidas. Achamos que esse é um caminho coerente com a mensagem cristã”, afirma a diretora.
Criado pela AIC em 2022, o Observatório Participativo da Desinformação tem como missão fomentar formas coletivas, colaborativas e criativas de combate às fake news, sempre a partir da escuta e articulação com iniciativas locais. “A partir dessa escuta, temos desenvolvido campanhas que respondem demandas trazidas por lideranças comunitárias no enfrentamento à desinformação. Além disso, já realizamos campanhas sobre o direito à moradia, golpes cibernéticos, eleições municipais, dentre outras”, afirma Emanuela São Pedro. O projeto atua hoje na região Metropolitana da capital mineira e em territórios como o Morro do Papagaio, o Aglomerado da Serra, a Pedreira Prado Lopes e Ribeirão das Neves, mobilizando jovens, coletivos e lideranças comunitárias.
A proposta do Observatório parte da premissa de que a desinformação é uma ameaça concreta ao Estado de Direito, às instituições democráticas e à formulação de políticas públicas. Por isso, aposta em ações enraizadas na comunicação comunitária, buscando enfrentar a desinformação com estratégias próximas, afetivas e de pertencimento.
Quando fé vira alvo da mentira
A relação entre desinformação e religião tem sido objeto de diversas pesquisas. Durante a pandemia, o uso de aplicativos de mensagens por igrejas e comunidades de fé se intensificou. Estudo do Grupo de Estudos sobre Desigualdades na Educação e na Saúde (Gedes) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostrou que 49% dos entrevistados afirmaram ter recebido conteúdos enganosos em grupos religiosos. Quase 30% admitiram ter repassado esses conteúdos, mesmo sabendo que eram falsos, por concordarem com a mensagem.
Outro levantamento, realizado pela Universidade de Brasília, revelou em 2023 que o perfil mais associado à disseminação de fake news sobre vacinas no Brasil é formado por pessoas evangélicas, com idade entre 35 e 44 anos, escolaridade até o ensino médio e pertencentes às classes D e E. Os principais canais utilizados foram o Telegram, o TikTok e o Jornal da Record.
Desinformação: um risco em escala global
A urgência do enfrentamento à desinformação não se restringe às comunidades locais. De acordo com o Relatório de Riscos Globais 2025, publicado durante o Fórum Econômico Mundial, a desinformação está entre as maiores ameaças à estabilidade democrática, à saúde pública e à convivência social no mundo.
Estudos do projeto Cybersecurity for Democracy, da Universidade de Nova York (NYU), mostram que perfis de extrema-direita têm maior alcance nas redes e raramente são penalizados, mesmo propagando informações falsas. Nesse cenário, cresce a importância de iniciativas educativas e de checagem acessíveis à população.
Com iniciativas como o Boletim de Fé, o Observatório aposta na reversão desse quadro. A ideia é simples, mas potente: promover informação de qualidade por meio de vozes em quem as comunidades já confiam — e assim, criar um elo entre fé, cidadania e verdade.