A cruzada de Michelle: fé, pânico moral e desinformação na estratégia nacional do PL Mulher

Desde que deixou o Palácio da Alvorada, Michelle Bolsonaro se tornou mais do que a ex-primeira-dama do governo de Jair Bolsonaro (PL, 2019-2022): hoje, ela é o principal rosto feminino da nova direita cristã no Brasil. À frente do PL Mulher, a esposa do ex-presidente comanda o Projeto Alicerça Brasil, uma iniciativa que mistura devoção, nacionalismo e ativismo político sob a linguagem da fé.

A trajetória que levou Michelle Bolsonaro à política 

Nos últimos anos, Michelle Bolsonaro percorreu um caminho singular: de esposa reservada de um deputado do baixo clero a uma das figuras mais influentes da nova direita cristã brasileira. Em 2018, quando Jair Bolsonaro lançou sua candidatura à Presidência, ela se manteve quase invisível. Não existe qualquer menção ao nome de Michelle Bolsonaro nos acervos de grandes jornais antes daquele ano.

Como mostrou reportagem do El País, no contexto da posse do novo presidente em 2019, durante a campanha eleitoral, ela acompanhou o marido de forma discreta, raramente subiu a palanques e chegou a fechar seus perfis em redes sociais para evitar a exposição. Vestida com simplicidade — “calça cinza e camiseta preta”, segundo a matéria —, limitou-se a gestos de apoio e a participar de ações voltadas à comunidade surda, com quem atuava na igreja da qual é membro, a Batista Atitude, no bairro da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Essa imagem de mulher silenciosa, piedosa e devota, de uma primeira-dama evangélica que preferia a discrição aos holofotes, acabou se tornando um poderoso ativo simbólico. Enquanto o marido representava a força e o confronto, Michelle Bolsonaro encarnava a fé e a modéstia, o complemento perfeito para um projeto político que se apresentava como restaurador da “família cristã”. Em agosto de 2020, outra matéria do El País abordava a primeira dama: “às vezes ela participa de algum ato governamental de perfil social ou acompanha seu marido, mas sempre em segundo plano. Raramente fala em público”.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A ameaça de derrota na campanha para a reeleição em 2022, já desenhada em pesquisas de voto no ano anterior, que indicavam maiores baixas de voto entre o eleitorado feminino, levou Bolsonaro e o PL a um investimento com este público, que incluiu uma transformação na figura da esposa Michelle.

O marco desta estratégia foi o café da manhã promovido para mulheres no Palácio da Alvorada, residência presidencial, no Dia Internacional da Mulher daquele ano. Naquele evento a primeira-dama, acompanhada da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves, teve voz e protagonismo. Ela apareceu com novo visual: cabelos curtos e vestido rosa de corte recatado, porém moderno.

A derrota no processo eleitoral não pode ser evitada. No entanto, com o tempo, o protagonismo de Michelle Bolsonaro se consolidou: a mulher que nos primeiros anos do mandato do marido falava pouco e orava muito, passou a discursar em palanques, liderar caravanas religiosas e ganhou um cargo no partido: passou a dirigir o PL Mulher. Con isso, ela se consolidou como a principal voz feminina do bolsonarismo e uma face espiritualizada de sua cruzada moral e política.

Imagem: Site PL Mulher

O rosto feminino da direita cristã

Desde que deixou o Palácio da Alvorada, Michelle Bolsonaro tem sido cuidadosamente reposicionada como o rosto feminino da direita cristã. A imagem de primeira-dama de 2018, reservada e doméstica deu lugar à de líder espiritual e política, agora apresentada como “mulher de fé, mãe e serva de Deus que luta pela reconstrução do Brasil”. O PL apostou em transformar essa persona em ativo político e o Projeto Alicerça Brasil, lançado em 2023 sob a marca do PL Mulher, é o eixo central dessa operação.

Nos materiais oficiais, Michelle Bolsonaro aparece cercada por mulheres, orando em círculo, ou conduzindo discursos com a Bíblia em uma das mãos e a bandeira nacional na outra. A simbologia remete à ideia de que Deus e Pátria se unem em torno de uma liderança feminina que se apresenta como pura, doce e inspiradora — em contraste com o feminismo, retratado como agressivo e destrutivo.

Essa feminilidade messiânica é a base de sua força simbólica: a ex-primeira dama não aparece como política, mas como porta-voz de uma missão divina. Nos discursos e materiais do projeto Alicerça, ela afirma que as mulheres têm o dever de “reconstruir espiritualmente o país”, de “proteger suas casas da ideologia” e de “defender a família como instituição sagrada”. 

Em encontros domésticos, chamados de “Grupo Alicerçadas”, mulheres são incentivadas a abrir as portas de suas casas para “orar, estudar e agir pela reconstrução moral e espiritual do país”. O manual oficial do Alicerça, disponível no site do PL Mulher, transforma prece em ação política: ensina a fiscalizar escolas, denunciar conteúdos contrários à “moral cristã” e participar de audiências públicas e conselhos locais. Tudo em nome de um “exército de mulheres de Deus” convocadas a defender “família, fé e pátria”.

O “método Michelle”: do culto doméstico ao comitê político

O Projeto Alicerça Brasil, coordenado por Michelle Bolsonaro dentro do PL Mulher, se estrutura a partir de pequenos grupos de base — as chamadas “Células Alicerçadas”, formadas por até 12 mulheres.

Segundo o manual oficial, essas reuniões devem acontecer quinzenalmente, com duas horas de duração, sempre com uma liturgia que contém oração, leitura bíblica, louvor e reflexão. Após o momento de louvor, as participantes seguem um roteiro padronizado, dividido em etapas: ler, refletir, iluminar e agir.

Primeiro, lê-se um texto sugerido pelo partido; em seguida, ocorre um debate conduzido por uma “líder Alicerçada”, que orienta a interpretação do conteúdo a partir de uma perspectiva moral e ideológica. O encontro termina com a etapa “agir”, em que são definidas tarefas práticas: participar de audiências públicas, pressionar vereadores, elaborar abaixo-assinados, montar dossiês de políticos locais e registrar denúncias contra “ameaças à família e à fé”.

Foto: PL/Divulgação

Este formato reproduz a metodologia de células evangélicas, mas nesse contexto, o foco está na mobilização política explícita, que é a transformação da devoção em militância. O manual estimula que as participantes ocupem espaços institucionais, como conselhos tutelares, associações de pais e câmaras municipais, sob o argumento de que a “restauração moral do país” começa pela ocupação dos territórios públicos.

Além do viés espiritual, o Alicerça incorpora uma pauta moral e econômica combinada: os textos associam alta de preços, insegurança pública e problemas escolares às “ideologias de esquerda” e ao “woke”, reforçando a ideia de que a fé cristã é a solução para a crise nacional.

Nessa conjuntura, questões complexas e estruturais são enquadradas como problemas morais e espirituais, cuja solução depende da mobilização das “mulheres de Deus”, instrumentalizando a religiosidade como arma discursiva e ferramenta eleitoral.

Além disso, o livro  “Edificando a nação: sobre bases e valores”, também disponível no site do PL Mulher, oferece uma síntese de toda a visão político-ideológica do bolsonarismo. A reportagem do Bereia analisou os documentos e identificou que o projeto se insere na mesma lógica das redes antifeministas cristãs, tema já tratado em reportagem do Bereia. As frases pronunciadas e redigidas ecoam o mesmo léxico de influenciadoras como Ana Campagnolo e Pietra Bertolazzi, agora com o selo de um partido político e o prestígio de uma ex-primeira-dama. 

Enquanto as influenciadoras ocupam o papel de evangelizadoras digitais, Michelle Bolsonaro atua como matriarca institucional, uma espécie de “pastora da nação”,   um símbolo unificador, capaz de mobilizar eleitores conservadores e religiosos com uma retórica que mistura fé, nacionalismo e ressentimento moral, como trata a análise produzida pelos autores desta reportagem, publicada em artigo para o Bereia.

Referências: 

https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/45608 Signos religiosos e sua influência na arena política: uma análise dos discursos dominionistas de michelle bolsonaro durante o pl mulher Acesso em 20 OUT 2025

De Primeira Dama a Líder Silenciosa do Bolsonarismo: Análise a Partir das Postagens de Michelle Bolsonaro no Instagram

https://www.researchgate.net/profile/Isabella-Gaet/publication/386106823_De_Primeira_Dama_a_Lider_Silenciosa_do_Bolsonarismo_Analise_a_Partir_das_Postagens_de_Michelle_Bolsonaro_no_Instagram_1/links/6744ce6c83ad2758b2a04e09/De-Primeira-Dama-a-Lider-Silenciosa-do-Bolsonarismo-Analise-a-Partir-das-Postagens-de-Michelle-Bolsonaro-no-Instagram-1.pdf Acesso em 20 OUT 2025

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/28/politica/1540760471_920767.html Acesso em 20 OUT 2025

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/01/politica/1546361496_407537.html Acesso em 20 OUT 2025

https://coletivobereia.com.br/o-movimento-antifeminista-cristao-no-brasil-o-que-e-quem-integra-e-como-opera-parte-1/ Acesso em 20 OUT 2025

https://coletivobereia.com.br/o-que-e-woke-e-por-que-o-termo-virou-alvo-de-disputas-politicas-e-religiosas/ Acesso em 20 OUT 2025

https://plmulher.org.br/downloads/ Acesso em 20 OUT 2025https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/03/08/bolsonaro-faz-evento-com-mulheres-para-tentar-reduzir-desaprovacao-de-eleitoras.htm Acesso em 20 OUT 2025

Foto: Reprodução

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