Vídeos sobre denúncias de descarte de alimentos voltaram a circular na internet neste fevereiro de 2025. Os vídeos mostram produtos como tomate, cebola, melancia entre outros, sendo jogados fora. Nas gravações se afirma que o descarte teria relação com a inflação dos alimentos. Bereia recebeu de leitores o pedido de checagem de alguns vídeos e levantou outros em redes de pessoas e grupos religiosos.
As imagens são sempre acompanhadas de legendas ou comentários que afirmam se tratar de situações recentes e atribuem a iniciativa de descartar os alimentos, como uma forma dos produtores manipularem os preços: com menos alimentos em oferta, os produtores conseguiriam ganhar mais com a venda. No entanto, muitos vídeos compartilhados neste mês, foram criados em 2013 e 2023, alguns no final de 2024, mas não nas últimas semanas.
Gravações antigas com descarte de alimentos
Tomates (2013)
Uma imagem, que mostra o descarte irregular de um carregamento de tomates em Santa Catarina não é atual. O registro foi feito em 2013. No período, a fiscalização ambiental encontrou o dono da carga despejando o tomate em local proibido. Nesse caso, o homem foi condenado a pagar uma multa e retirar o produto do local.
Fonte: Portal CDR
Melancias (2023)
Um vídeo que mostra melancias descartadas de um caminhão circula nas redes digitais desde 2023. Durante a gravação, a pessoa que está filmando a ação conversa com dois homens que derramam as frutas no chão. Ao ser questionado, um dos homens explica que o baixo valor da melancia torna a venda do produto inviável. De acordo com o homem que grava o vídeo, o descarte foi feito em Goiânia.
Fonte: iPolítica Bahia (Perfil Instagram)
Gravações de até quatro meses atrás com descarte de alimentos
Cebolas (2024)
Um vídeo com descarte de cebolas mostra um carregamento do legume sendo despejado no chão. A gravação é de dezembro de 2024. O autor da publicação é Hélio Santos, cujo perfil da rede digital TikTok é dedicado a publicar informações e receitas sobre pimentas. De acordo com Hélio Santos, a carga de cebolas estava sendo jogada fora porque o valor estava baixo demais.
Imagem: Perfil pessoal na rede TikTok
Jiló (2024)
Outra gravação retrata o descarte de um carregamento de jiló no acostamento de uma estrada. O vídeo tem quatro meses: foi publicado em novembro de 2024, e voltou a circular neste fevereiro no perfil Folha Metropolitana, no Instagram.
A mulher que fez o registro afirma ter optado pelo descarte, após ter doado 35 caixas do produto no Ceasa de Goiânia, sem conseguir doar o restante.
Imagem: Folha Metropolitana (Perfil do Instagram)
Chuchu (2024)
Outro vídeo voltou a circular nas redes com o descarte de chuchu. Na gravação, a produtora rural no estado do Espírito Santo Lilithie Schaeffer aparece jogando chuchus no chão. A gravação é de 26 de dezembro de 2024, e tem circulado como se fosse atual.
No vídeo, a produtora rural afirma que o descarte foi necessário porque não conseguiu vender o produto. Em um novo vídeo gravado em janeiro de 2025, após receber acusações de que teria feito o descarte para forçar o aumento do preço do legume, ela disse que decidiu jogar o legume fora por falta de demanda comercial. Ainda de acordo com a produtora, mesmo oferecendo os legumes para doação, não houve interessados.
O Espírito Santo é o estado que lidera a produção do legume , segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O descarte de alimentos por parte dos produtores do estado, segundo matéria do G1, se deve à baixa demanda, e os custos de produção, que inviabilizam a contratação de mão-de-obra.
Imagem: Rio na Rede (Perfil no TikTok)
Descarte de alimentos na Ceagesp (atual)
Dois vídeos têm circulado na internet e mostram alimentos como tomate e pimentão descartados em caçambas na Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp). O vídeo, publicado no TikTok, é da autoria de José Bento Neto. Na descrição de seu perfil, ele diz: “só quero ajudar as pessoas que estão desempregadas com meu (sic) vídeos”. Ambas as gravações são de autoria de José Bento, que também publica vídeos com o mesmo conteúdo em seu canal do YouTube.
Imagem: Perfil pessoal na rede TikTok
Imagem: Perfil pessoal na rede TikTok
Pessoas e grupos indignados lançam mão desse conteúdo
Postagens em circulação acabaram fazendo uso dessas imagens neste fevereiro de 2025. Muitos registros expõem as imagens fora de contexto, como se fossem atuais. Sugerem também que os descartes ocorreram na tentativa de forçar a alta dos preços dos alimentos, como estratégia de boicote ao governo federal por parte de produtores do “agro”. Uma ideia propagada é que os produtores rurais estariam prejudicando a população brasileira ao desperdiçar alimentos.
O perfil Igreja em Saída, que se define como “um grupo de sacerdotes, religiosos, religiosas, leigos e leigas que busca atender o apelo do Papa Francisco por uma Igreja em Saída”, repercutiu um vídeo de um dos seus seguidores, em 17 de fevereiro. A legenda acusa o “pessoal do agro” de jogar comida fora com o objetivo de manter os preços altos.
Imagem: igrejasemsaida/Instagram
O perfil Rio na Rede publicou o vídeo em que a produtora rural Lilithie Schaeffer joga chuchus no chão. A legenda do perfil da rede TikTok diz: “Olha só, cristãos, vocês já viram o MST fazer ISSO? Enquanto lutam por reforma agrária e alimentação digna, vários vídeos circulam mostrando produtores rurais desperdiçando comida. Cadê a indignação com o desperdício? Ou só vale criticar quem luta por justiça social?”
Imagem: rionaredeoficial/TikTok
A revista Fórum publicou matéria que reúne boa parte destas publicações com o título “Vídeos chocantes de produtores destruindo alimentos para manter preços altos causam revolta” sem oferecer a contextualização e a explicação do sentido do ocorrido.
Prática antiga, política em tensionamento
O descarte de alimentos por produtores rurais é uma prática antiga, adotada em situações específicas, muitas vezes motivada por fatores econômicos ou logísticos. Um exemplo emblemático foi divulgado pelo portal G1 em 2015, quando 20 mil caixas de tomate foram jogadas fora devido à queda nos preços do produto.
Em resposta aos questionamentos do Estadão Verifica, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) explicou que esse tipo de descarte pode ser causado por três fatores principais: o amadurecimento acelerado dos produtos, a falta de condições adequadas para comercialização ou a superprodução, quando a oferta ultrapassa a demanda. A Conab ressaltou, no entanto, que esses descartes representam uma parcela pequena da produção total e que apenas perdas significativas teriam o potencial de influenciar os preços no mercado.
Para mitigar esses problemas, a Conab contava com mecanismos de regulação, como a estocagem pública de alimentos. Essa política funcionava da seguinte forma: quando o preço de mercado pago ao produtor cai abaixo do valor mínimo estabelecido, a Conab intervém, comprando parte da produção para garantir uma remuneração justa ao agricultor. No entanto, a ação foi extinta durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, em linha com políticas liberais que priorizavam a autorregulação do mercado, deixando os preços à mercê da oferta, da demanda e da oscilação do dólar, sem intervenção estatal.
Com a posse do governo Luís Inácio Lula da Silva, em 2023, a política de estoques públicos de alimentos foi retomada, a fim de estabilizar os preços e garantir segurança tanto para os produtores quanto para os consumidores.
Em 6 de março passado, o governo federal divulgou um pacote de medidas para enfrentar o aumento dos preços dos alimentos. As ações, anunciadas pelo vice-presidente Geraldo Alckmin após reuniões com ministros e empresários no Palácio do Planalto, incluem a redução de impostos de importação, o fortalecimento da produção nacional e a simplificação de processos de certificação para produtos alimentícios.
A principal medida do pacote é a eliminação do Imposto de Importação para nove alimentos que tiveram aumentos significativos de preço. Entre os produtos beneficiados com a alíquota zero estão: o azeite (antes taxado em 9%), o milho (7,2%), o óleo de girassol (9%), a sardinha (32%), biscoitos (16,2%), massas como macarrão (14,4%), café (9%), carnes (10,8%) e açúcar (14%). Segundo Alckmin, a medida visa “abrir mão de impostos em favor da redução de preços”.
O governo também anunciou medidas para estimular a produção interna de alimentos. Uma delas é o reforço dos estoques reguladores da Conab, que havia solicitado R$ 737 milhões para recompor seus estoques. Além disso, o próximo Plano Safra priorizará o financiamento de itens da cesta básica, com taxas de juros subsidiadas para agricultores, conforme anunciado pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad, em entrevista ao ICL Notícias, em 21 de fevereiro passado.
Alternativas ao descarte
Apesar do descarte ser apontado como prática comum entre produtores, o desperdício da produção de alimentos é apontado como um problema mundial pela Organização das Nações Unidas (ONU). O relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), divulgado em maio de 2013, traz dados preocupantes sobre o descarte de alimentos: anualmente, cerca de um terço de todos os alimentos produzidos mundialmente são desperdiçados, o que representa aproximadamente 1,3 bilhão de toneladas, avaliadas em 1 trilhão de dólares.
Em estudo mais recente, a organização ressalta que, embora a produção mundial seja suficiente para alimentar 7,3 bilhões dos habitantes do planeta, 900 milhões de pessoas ainda enfrentam a fome diariamente.
No Brasil, o desperdício de alimentos distribui-se de forma desproporcional ao longo da cadeia produtiva. Segundo dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) aproximadamente 90% do desperdício ocorre nos processos pós-colheita.
Bereia levantou que há pessoas e grupos preocupados em solucionar as questões dos produtores rurais, ao mesmo tempo em que pensam que a fome que ainda assola boa parte da população é uma demanda importante.
O professor das Faculdades de Administração da Universidade de São Paulo, especialista em planejamento estratégico do agronegócio, Marcos Fava Neves, analisou os dados da Embrapa e indicou caminhos em cada uma das etapas do setor produtivo, confira:
- No campo: 10% das perdas ocorrem durante a produção agrícola, muitas vezes devido a falhas na colheita e no armazenamento. Solução: investir em tecnologias para melhorar a eficiência.
- No transporte e logística: 50% do desperdício acontece aqui, causado por acondicionamento inadequado, falta de refrigeração, embalagens impróprias e manuseio incorreto. Solução: melhorar infraestrutura, embalagens e treinamento.
- Na comercialização: 30% das perdas são geradas pelo descarte de alimentos que não atendem a padrões estéticos ou estão perto do vencimento. Solução: aproveitar produtos “fora do padrão” e oferecer descontos.
- Consumidor final: 10% do desperdício ocorre em lares, supermercados e restaurantes, devido à falta de planejamento, armazenamento inadequado e falta de refrigeração. Solução: campanhas de conscientização e incentivo à compostagem.
Já o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tem mostrado como a produção agrícola pode gerar lucro para agricultores e, ao mesmo tempo, contribuir no enfrentamento da fome.
Por meio do projeto Cozinha Solidária, o MST conseguiu garantir que a comida chegue a quem precisa com redução de custos na produção e a distribuição do alimento que são feitas pelos próprios moradores. A primeira Cozinha Solidária nasceu na zona norte de São Paulo, no Jardim Damasceno, com distribuição de 200 marmitas ao dia, e, em seguida, se expandiu para mais dez estados brasileiros.
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Bereia classifica a exploração do tema do descarte de alimentos que se destacou em mídias sociais neste fevereiro como enganosa. Os vídeos são verdadeiros, mas foram publicados fora de contexto. Os perfis que publicaram os vídeos, descontextualizaram as imagens que dizem respeito um assunto relevante para o interesse público, levando pessoas a crerem que o descarte de alimentos observado nas gravações seriam provocadores de aumento da inflação.
O tema do descarte de alimentos para atender necessidades de produtores rurais é antigo e deve ser enfrentado com alternativas que respondam às demandas dessas pessoas, que não são grandes empresários do agronegócio, mas pequenos e médios agricultores. Como Bereia checou há questões mais densas que tensionam a política em torno do acesso a alimentos no Brasil e há também propostas e ações em curso que devem ser amplamente informadas para a qualificação do debate.
Referências
G1
https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2025/02/22/posts-que-sugerem-ligacao-entre-inflacao-e-descarte-de-alimentos-usam-videos-de-2024-ou-mais-antigos.ghtml Acesso em 24 FEV 25
O Bemdito
https://obemdito.com.br/noticia/298238/produtores-jogando-alimentos-no-lixo Acesso em 25 FEV 25
Aos Fatos
https://www.aosfatos.org/noticias/videos-antigos-desinformacao-preco-de-alimentos/ Acesso em 25 FEV 25
Estadão
Acesso em 25 FEV 25
https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/produtores-descartando-alimentos-aumento-dos-precos-entenda/?srsltid=AfmBOooelnAvpuns241ynDP5vNEtxpHxMSxBQ6ZvqrDJG9UyH5sSyrDS Acesso em 25 FEV 25
YouTube
https://www.youtube.com/watch?v=uqfXVUoDWQ8 Acesso em 27 FEV 25
Portal CDR
https://www.portalcdr.com.br/noticiasDetalhes.php?id=3616 Acesso em 27 FEV 25
Portal Terra
CONAB
https://www.conab.gov.br/precos-minimos Acesso em 27 FEV 25
IBGE
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/precos-e-custos/9262-indice-nacional-de-precos-ao-consumidor-amplo-especial.html?=&t=downloads Acesso em 27 FEV 25