* Entrevista publicada originalmente no site do Instituto Humanitas Unisinos
Uma teologia fundamentada em versículos bíblicos aleatórios, desprovida de hermenêutica e de exegese, que promove espiritualidades deturpadas, alheias às necessidades dos empobrecidos, mas que consegue mobilizar milhões de brasileiros. Essa é a Teologia Coaching, um desdobramento da Teologia da Prosperidade.
Valendo-se de discursos sedutores, que usam termos como autorrealização, autoconhecimento, mindset, empreendedorismo e superação, trata-se de uma teologia em que seus líderes “pregam uma mensagem de dominação e controle sobre todas as esferas da sociedade, inclusive e principalmente a política”. A afirmação é do pesquisador Ranieri Costa, autor do livro Teologia Coaching: A ilusória ideologia de que nascemos só para vencer (Fonte Editorial, 2024).
A instrumentalização da fé pela política abre espaço para o surgimento de figuras como Tiago Brunet e Pablo Marçal, que “tentam estabelecer um novo modelo de vida cristã, que é aquele vivido essencialmente longe da comunidade religiosa; sem a leitura e interpretação do texto sagrado, portanto vazio de hermenêutica”, destaca o jornalista. Também pastor evangélico e teólogo, Costa explica que esses sujeitos “tentam incutir na mente das pessoas que viver o Evangelho é acumular e ostentar patrimônio financeiro aqui na terra”. O que, na visão do entrevistado, não é “nada mais distante dos ensinos de Jesus”. Segundo aponta, “a mensagem do Evangelho é libertadora em todos os aspectos, inclusive, no que diz respeito à nossa consciência e autonomia política”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Ranieri Costa também destaca a violência incutida no léxico dos coaches. “Em sua lógica discursiva, o sujeito que não alcança o sucesso é o único culpado pelo seu fracasso […] levando a uma sobrecarga de culpa descomunal”, pontua.
IHU – O que é e o que explica a emergência do que o senhor chama de “teologia coaching”?
Ranieri Costa – A teologia coaching é, de maneira bem objetiva, uma evolução da teologia da prosperidade. O método coaching, muito banalizado nos últimos anos por influenciadores digitais, foca especialmente no desenvolvimento pessoal e no alcance de uma alta performance para todas as áreas da vida. O discurso que classifico como teologia coaching é aquele que faz uso dessas técnicas de treinamento, com uma estética religiosa, repleto de elementos de sincretismo religioso, abraçado a promessas de prosperidade imediata e ininterrupta.
A prosperidade no discurso da teologia coaching é algo inescapável para todos que estiverem fazendo a mentalização correta. O problema é que para isso, você vai precisar sair comprando um curso atrás do outro, uma palestra após a outra, num looping infinito e quem acaba enriquecendo de verdade é o emissor desta mensagem que é uma completa perversão do Evangelho.
IHU – Olhando em perspectiva histórica recente, a teologia coaching parece estar associada à teologia da prosperidade, que foi durante um certo tempo objeto de intenso interesse dos estudos teológicos. Quais são as semelhanças e as diferenças entre essas duas vertentes teológicas?
Ranieri Costa – Exato. As semelhanças são óbvias, sendo a principal: a pregação de uma mensagem que promete enriquecimento financeiro como sinal da bênção de Deus. No que tange às diferenças, menciono duas mais latentes:
a) A teologia da prosperidade era analógica, já a teologia coaching, é digital, com isso a velocidade e o potencial do alcance e a influência exercida com a ajuda dos algoritmos são completamente diferentes da mensagem que se difundia tradicionalmente na TV e no rádio.
b) A teologia da prosperidade barganhava com Deus, ou seja, para prosperar era necessário, naquela lógica discursiva, ser generoso e constante nos dízimos e ofertas feitas para a igreja, obedecer o pastor, não esconder nenhum pecado etc. Dessa forma, Deus ainda era o agente abençoador do fiel. A benção estava condicionada, é verdade, mas ainda assim, o poder da benção da prosperidade emanava de Deus. Já a teologia coaching faz um caminho bem diferente, afinal, em seu discurso, tudo o que o sujeito precisa para prosperar e atingir o sucesso está dentro dele. Ele é tudo de que ele mesmo precisa. Os sujeitos da teologia coaching são deuses de si. Narcísicos. E o Deus bíblico é apenas um amuleto, alguém que assiste a alta performance deste sujeito que tem toda sua fé depositada apenas em si.
IHU – Por que a ideia de que “nascemos só para vencer” é perigosa? Até que ponto ela é teológica e a partir de que momento ela se torna um delírio?
Ranieri Costa – Ela é perigosa porque visa convencer as pessoas que a derrota, a perda, a dor, a fraqueza, é algo que pode ser superado apenas com o poder da mente. Ela é absolutamente delirante e vazia de qualquer base teológica bíblica minimamente racional e coerente. É um completo delírio considerar que a vitória, a prosperidade e o sucesso é algo inescapável para a existência humana. Pregar isso é uma imensurável crueldade. A base da fé cristã está na vida, ministério, morte e ressurreição de Jesus que, em nenhum momento ensinou sobre enriquecer, mentalizar positivamente, atingir o sucesso ou qualquer outra imbecilidade destas, ao contrário, seus ensinos, bem como dos profetas que o antecederam e dos apóstolos que propagaram sua mensagem, apontam para a realidade de que desejar acumular riquezas na terra é, além de algo que leva a loucura, também pecado.
IHU – Em que sentido o discurso da teologia coaching se organiza a partir de uma dinâmica de violência?
Ranieri Costa – Byung-Chul Han vai dizer que a sociedade do desempenho é estimulada uma experiência de positividade excessiva que a faz rejeitar toda e qualquer negatividade da existência humana e projetar sobre si uma descomunal cobrança para que se atinja o tal desempenho que leva ao sucesso. Pois bem, a teologia coaching é violenta porque, em sua lógica discursiva, o sujeito que não alcança o sucesso é o único culpado pelo seu fracasso, desconsiderando todos os fatores sociais, emocionais e políticos que cercam este mesmo sujeito, além de ignorar que a mensagem entregue para ele é mentirosa.
Dessa forma, primeiro o emissor desse discurso (o pregador coaching) comete violência em exigir um desempenho “trabalhe enquanto eles dormem” de seu mentorado e, por fim, o próprio aluno violenta a si mesmo, quando passa a aplicar essa cobrança, que desconsidera todas as negatividades e impedimentos naturais da vida humana. Ou seja, estas pessoas primeiro são vítimas do pregador/palestrante/influencer e posteriormente são algozes de si mesmo. O final disso é uma sobrecarga de culpa descomunal que aumenta ainda mais o ciclo de violência.
IHU – Ao longo de seu mestrado você estudou dois influencers que possuem grande penetração social: Tiago Brunet e Pablo Marçal. Embora o segundo tenha se notabilizado nacionalmente nas últimas eleições municipais de São Paulo, gostaria que você explicasse quem são esses personagens? No que se assemelham e se diferenciam?
Ranieri Costa – Tiago Brunet era um pastor que tinha uma rotina de pregador itinerante até se enveredar por esse caminho dos coaches. Em determinado momento ele percebe que havia público se fizesse a junção de pregação com coaching. Seu discurso, livros e cursos sempre estiveram majoritariamente voltados para “ensinar” as pessoas prosperarem.
Pablo não era pastor, embora cresceu na igreja evangélica, tendo passado longo período na Igreja da Videira, em Goiânia, uma igreja neopentecostal que já tinha esse apelo para prosperidade financeira. Sonhava em ser pastor, mas, decidiu fazer o caminho do coaching e também fez essa mistura de pregação evangélica com Programação Neurolinguística – PNL e coaching. Sua ênfase é a venda de cursos que supostamente ensinam o caminho para a prosperidade.
Marçal sempre teve ambições políticas, Brunet nem tanto. Contudo, acredito que não só Brunet, mas também outros “pregadores coaches” devem participar ativamente do pleito eleitoral de 2026, motivados pelo próprio Marçal e pela visibilidade e potencial de retorno financeiro que uma eleição pode trazer para eles.
IHU – Qual o risco que influencers como Brunet e Marçal representam para o cristianismo?
Ranieri Costa – A de se distinguir a diferença entre cristianismo e Evangelho. Uma coisa é a religião do império, a outra é a lógica do Reino de Deus a partir dos ensinos de Jesus. O discurso destes sujeitos perverte e ofende o Evangelho.
Eles tentam estabelecer um novo modelo de vida cristã, que é aquele vivido essencialmente longe da comunidade religiosa; sem a leitura e interpretação do texto sagrado, portanto vazio de hermenêutica; tentam incutir na mente das pessoas que viver o Evangelho é acumular e ostentar patrimônio financeiro aqui na terra, nada mais distante dos ensinos de Jesus do que isso. Viver uma vida na lógica comunitária do Evangelho de Jesus, desconectado da comunhão, do exercício contínuo do estudo das escrituras e do serviço que promove justiça social no mundo, buscando apenas enriquecer é impossível e é isso que eles pregam.
IHU – Tanto o fenômeno da teologia da prosperidade quanto a teologia coaching parecem ser algo muito diferente do Evangelho, no sentido que os ideais e as ideias não encontram ressonância no cristianismo. Até que ponto essa premissa é verdadeira?
Ranieri Costa – Além do que eu já disse nas outras respostas, considero que somente seja necessário dizer que não há, em nenhuma hipótese, nada no discurso/pregação da teologia da prosperidade e da teologia coaching que tenha a mínima ligação com o Evangelho de Jesus Cristo. Estas mensagens, são aquilo que o apóstolo Paulo alertou dizendo ser “outro evangelho” e, portanto, anátema.
IHU – O que explica que lideranças pentecostais tenham discursos tão radicais e violentos? Que lideranças chamam mais atenção neste aspecto?
Ranieri Costa – É preciso pontuar que discursos radicais e violentos não são uma característica exclusiva de lideranças pentecostais, tampouco é a sua principal particularidade. Há incontáveis lideranças deste segmento evangélico que são exercidas de forma pacificadora e amorosa. Dito isto, entendo que aquelas entre as quais exercem esse modelo nocivo de liderança se norteiam numa compreensão interpretativa do texto bíblico que tem sido chamada de teologia do domínio. Estes, pregam uma mensagem de dominação e controle sobre todas as esferas da sociedade, inclusive e principalmente a política. Há uma sedução pelo poder político e cultural que, infelizmente, cegou boa parte destes líderes, entre os mais conhecidos e midiáticos estão Silas Malafaia, Edir Macedo, Marco Feliciano…
Contudo, há um sem número de pastores de igrejas “tradicionais” (leia-se batistas, presbiterianas, metodistas etc.) que não possuem relevância a nível nacional que pregam, especialmente em anos eleitorais, mensagens que trazem esse sentido de que a igreja tem uma missão de conquistar a cidade e influenciam profundamente suas comunidades locais. A despeito disso, o abuso religioso feito por aqueles que exercem uma pastoral de controle sobre a vida dos membros de suas igrejas é uma das maiores marcas de violência e radicalidade que estão em atuação em muitas dessas igrejas nos dias de hoje, incluindo outras como a própria Bola de Neve, recentemente envolta em inúmeros escândalos.
IHU – Qual o antídoto contra a ascensão dessas lideranças coachs e seus discursos sedutores, sobretudo às pessoas mais vulneráveis, em mundo marcado por desigualdades tão brutais?
Ranieri Costa – Como teólogo e pastor, não vejo outro antídoto além da pregação amorosamente incansável do Evangelho de Jesus Cristo.
Como jornalista, entendo ser fundamental que seja feita uma cobertura deste fenômeno que informe suas incongruências de maneira explícita, mas, que não desrespeite, em nenhuma hipótese, símbolos/conceitos que são usurpados por esses mensageiros da teologia coaching, mas que são caros à população evangélica e católica.
Por exemplo: não é porque um coach fala e espetaculariza de forma bestializante sobre a oração que a imprensa tem permissão para tratar a oração como algo de menor inteligência e valor.
Como pesquisador, penso que são necessárias mais pesquisas que mostrem os impactos que esse tipo de discurso, como o da teologia coaching, que contribui para uma maior vulnerabilização daquelas pessoas que já são tão marcadas pela violência da desigualdade social.
IHU – De que ordem é o desafio no contexto evangélico de desinstrumentalizar politicamente os fiéis, garantindo que eles tenham autonomia e liberdade de exercer a própria cidadania à revelia dos mandos e desmandos dos pastores?
Ranieri Costa – De ordem teológica, em primeiro lugar, tendo em vista que esse tipo de instrumentalização política dos fiéis é facilmente destruída com uma simples leitura do Evangelho, quanto mais com uma aplicação teológica consistente e lúcida dos textos. Haja vista a fala do próprio Jesus, registrada no Evangelho de Mateus: “Vocês sabem que os governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem autoridade sobre elas. Não será assim entre vocês. Ao contrário, quem quiser tornar‑se importante entre vocês deverá ser servo, e quem quiser ser o primeiro deverá ser servo dos demais, tal como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mateus 20.26-28).
Em segundo lugar, o desafio é de ordem pastoral. Qualquer pastor que exerça seu ofício de forma dominadora, autoritária e violenta não está a serviço de Jesus, mas do próprio Diabo. Os fiéis devem ser ensinados a terem suas mentes cativas a Jesus e não aos seus pastores. Paulo escreveu que “foi para liberdade que Cristo nos libertou; não se submetam, portanto, a nenhum jugo de escravidão” (Gálatas 5.1). A mensagem do Evangelho é libertadora em todos os aspectos, inclusive, no que diz respeito à nossa consciência e autonomia política.
IHU – Qual a importância, no mundo de hoje, de voltar aos princípios cristãos?
Ranieri Costa – Um mundo com pessoas que amem, perdoem e sirvam uns aos outros; libertem os oprimidos e respeitem as diferenças; que lutem por justiça e denunciem os tiranos, a partir da lógica dos ensinos de Jesus, certamente será um mundo melhor. Jesus não é da ordem do domínio e da violência, Jesus é da ordem do serviço e do amor.
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