Circulam nas mídias sociais memes e publicações com uma citação que teria sido dita pelo ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro Leonel Brizola (1922-2004). As publicações apresentam em comum a frase “Se os evangélicos entrarem na política, o Brasil irá para o fundo do poço, o país retrocederá vergonhosamente e matarão em nome de Deus”.
Na semana em que se comemora o aniversário de 20 anos da morte de Leonel Brizola, falecido em 21 de junho de 2004, Bereia checou a frase atribuída ao político gaúcho.
Em geral, a citação é acompanhada por expressões que identificam Brizola como “visionário” e “atemporal”. Em alguns casos, a frase é até mesmo vista como uma “profecia”.
Imagem: Reprodução do X
Reprodução: Imagem Instagram
As publicações e memes que circulam na rede atribuem à fala a autoria de Brizola e são usadas como forma de oposição à participação e posicionamento de evangélicos na política brasileira. Devido à grande repercussão da citação, que ganha ainda destaque de tempos em tempos nas mídias sociais, quando o segmento evangélico adquire algum protagonismo no cenário público, Bereia recebeu de leitora um pedido de checagem da veracidade dessas informações que são virais.
Leonel Brizola disse essa frase?
Apesar do grande número de publicações que circulam com a mesma frase ao longo dos anos, elas não apresentam fontes oficiais que legitimam a frase como autoria de Brizola. As publicações estão presentes nas mais diversas mídias sociais, são realizadas em perfis do Instagram, X, Facebook, vídeos do YouTube e até mesmo fotos e mensagens que circulam no Whatsapp e citam a frase como de autoria de Brizola sem embasamento concreto.
Como é comum a prática de falsa atribuição de frases a personagens com destaque público, para viralização em mídias digitais, veículos de mídia, como o jornal O Estado de São Paulo, criaram espaço de checagem de autoria destas menções.
Bereia verificou a veracidade nesses espaços de checagem de frases, sem chegar a um resultado positivo.
Imagem: Reprodução site do Estadão
Uma das personagens com mais citações falsas nas mídias digitais brasileiras é o escritor Luis Fernando Veríssimo.
Imagem: Entrevista de Luis Fernando Veríssimo, ao programa EBC na Rede, de 26 de setembro de 2016
Posicionamento do ex-governador sobre evangélicos
Mesmo não havendo indícios de que Leonel Brizola tenha sido o autor da frase, há diferentes posicionamentos do ex-governador em relação ao tema “evangélicos”.
Um ponto importante da história da vida de Leonel Brizola é o fato de sua mãe ter participado da Igreja Metodista e ele ter sido criado por um pastor dessa igreja. Historiadores narram que, na infância, como a família enfrentou muitas dificuldades, aos onze anos, em 1933, Brizola foi levado para a cidade gaúcha de Carazinho, onde a mãe, Oniva de Moura Brizola, frequentava o grupo de mulheres da Igreja Metodista. Lá D. Oniva conseguiu aproximar o filho do pastor da metodista Isidoro Pereira e sua esposa Elvira, que lhe conseguiram bolsa para concluir os estudos primários na escola da Igreja Metodista. Além de frequentar a escola, que estava localizada nos fundos da igreja, se tornou ajudante nos cultos e outros serviços. “As falas do Brizola eram recheadas de imagens rurais, de inspiração bíblica. Ele fala através de parábolas”, declarou em uma ocasião o senador do PDT do Rio, Saturnino Braga.
Em 1991, quando governador do Rio, Leonel Brizola promulgou a Lei nº 1931, de 26 de dezembro de 1991, que instituiu o dia 2 de setembro, como Dia da Igreja Metodista, no calendário oficial do Estado do Rio. A data se refere ao dia em que esta igreja tornou-se igreja brasileira, em 1930, autônoma da Igreja Metodista dos Estados Unidos, que a trouxe para o país.
Em pesquisa acadêmica, o historiador Guilherme Esteves Galvão Lopes e a pedagoga Michele Esteves Barabani Alves recuperaram a memória da formação educacional de Leonel Brizola e da educação protestante no Brasil e analisaram a influência da formação evangélica do ex-governador, mais especificamente a metodista, na formulação e na realização de políticas públicas em seus mandatos como governador. Os estudiosos concluíram:
“Criado dentro da tradição metodista, tanto por sua mãe, quanto no período em que sua educação foi assumida pelo pastor Isidoro e sua esposa, Brizola sofreu influência direta do pensamento protestante. Em sua vida adulta, embora não fosse praticante, denominando-se genericamente como cristão, em diversas oportunidades fez questão de enfatizar a contribuição do protestantismo em sua formação. Não restam dúvidas de que sua preocupação com a educação integral, sobretudo para as camadas mais pobres da sociedade, possuía origem na tradição reformada, e em todas as suas experiências pessoais neste sentido”.
Em reportagem no Jornal do Brasil, de 8 de setembro de 1990, sobre uma carreata que Brizola fez na Baixada Fluminense, em segunda campanha para o governo do Estado do Rio, da qual saiu vencedor, o então candidato a governador falou sobre sua origem evangélica. “Nunca em minha vida toquei neste assunto, mas como tem muita gente usando religião para fazer a campanha de políticos que nada têm a ver com as forças populares, eu me sinto à vontade para afirmar: se há um voto coerente do povo evangélico, esse voto tem de ser dado àquele de formação evangélica, que é Leonel Brizola”.
Nesse período estava sendo concluído o mandato da primeira Bancada Evangélica na Câmara Federal, entre eleitos, em 1986, para atuar no Congresso Constituinte. A maioria do grupo foi alvo de muitas críticas, pelas trocas de votos por favores do então governo José Sarney, e ajudou a compor o segmento que fisiológico veio ser chamado “ Centrão”.
Ao continuar o discurso na carreata, o candidato gaúcho radicado no Rio de Janeiro referiu-se a “políticos que se disfarçam de evangélicos, desviam os cristãos para o caminho do próprio demônio”. “Quem duvidar da minha formação evangélica, pode perguntar a seu Isidoro Pereira, que está vivo no Rio Grande do Sul, com seus 83 anos. Ele poderá falar dos antecedentes do menino e do jovem Leonel. Nunca em minha vida usei este argumento, mas resolvi denunciar essa obra demoníaca que se disfarça de evangélica”, disse em uma referência ao pastor metodista que o criou.
Imagem: Reprodução do Jornal do Brasil de 8/9/1990 (captada na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional)
Já em 16 de maio de 2000, em uma reunião que teve na sede do PDT, com pastores evangélicos que queriam saber sobre sua possível candidatura à prefeitura do Rio, Brizola falou mais uma vez sobre sua origem metodista. A coluna de Danuza Leão, de 18 de maio de 2000, no Jornal do Brasil, falou sobre o encontro. “O engenheiro condenou quem mistura política com religião, falou de sua amizade com um velho pastor metodista de Porto Alegre e terminou fazendo uma revelação que deixou a plateia em estado de graça: “Se eu não fosse político, seria um pastor”.
Imagem Reprodução do Jornal do Brasil de 18/05/2000 (captada na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional).
Nesse período, em reportagem publicada pela Folha de São Paulo, em março de 2000, há uma citação na qual Brizola pede o fim da participação de pastores evangélicos no governo do Estado do Rio de Janeiro. À época, quem comandava o estado era o ex-governador Anthony Garotinho, evangélico e membro da Igreja Presbiteriana e a vice-governadora Benedita da Silva, então membro da Igreja Assembleia de Deus.
Garotinho havia vencido as eleições para governador do Rio, em 1998, pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), partido de Brizola. Em 2000, por desavenças entre os dois, Garotinho deixou o partido para se filiar ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), partido pelo qual concorreu à Presidência da República, em 2002.
Leonel Brizola tornou-se opositor do governo Garotinho e, entre as muitas críticas, incluiu a participação de pastores evangélicos e religiosos no primeiro escalão do Governo do Estado e no gabinete da vice-governadora Benedita da Silva (Partido dos Trabalhadores – PT). De acordo com a matéria da Folha de S. Paulo, de março de 2000, o “presidente nacional do PDT, Leonel Brizola, pediu ao governador do Rio, Anthony Garotinho, que ponha fim à influência dos pastores protestantes no governo estadual: ‘O governo tem de ser mais discreto, está vivendo um protestantismo exagerado’.
Brizola foi contundente ao criticar o subsecretário do Gabinete Civil à época, pastor da Assembleia de Deus Everaldo Dias, então filiado ao PT (depois presidente do PSC e atual vice-presidente do Podemos). “Qual a legitimidade de tantos pastores no governo? Quem são esses pastores da Benedita? Por que esse pastor Everaldo tem o controle sobre a distribuição dos cheques? O cheque do pastor é dinheiro público”, disse o ex-governador. Ele se referiu ao projeto Cheque-Cidadão, que concedia mensalmente 30 mil cheques de R$100 à famílias carentes. Os cheques eram trocados por comida em supermercados. O coordenador do projeto articulou a distribuição do benefício à população por meio de igrejas e instituições religiosas.
Em entrevista gravada no programa Câmara Aberta, da TV Câmara, em abril de 2000, o líder do PDT repetiu as críticas específicas à participação política de evangélicos no governo do Estado do Rio e cita o caso do Cheque-Cidadão e do Pastor Everaldo, sem pronunciar palavras na forma pela qual leva crédito (minuto 36:16 a 40:10).
Destaca-se na pesquisa do Bereia que, nas críticas expostas pelo Jornal do Brasil, pela Folha de S. Paulo e na gravação da TV Câmara Aberta, Leonel Brizola usa palavras elaboradas e polidas, dirigidas, dentro de um contexto, a um caso específico no governo do Estado do Rio de Janeiro. Observa-se que o conteúdo e o tom é bem diferente das palavras ásperas e genéricas aos evangélicos dos memes que circulam nas redes atualmente, o que pode ser atribuído ao respeito pela fé evangélica, que é parte das origens dov ex-governador.
Possível confusão entre os personagens
No início do mês de junho, após decisão da Câmara sobre o Projeto de Lei 1904/24, conhecida como “PL do Aborto”, que equipara o aborto acima de 22 semanas de gestação ao homicídio, Leonel Brizola Neto se declarou na mídia social X contra a decisão e criticou o posicionamento de políticos evangélicos sobre o tema.
Imagem: Reprodução X
A fala do neto do ex-governador apresenta um posicionamento semelhante ao do avô. Contudo, as frases são diferentes, não está colocada entre aspas ou com indicação de origem e essa também não legitima a autoria de Brizola na citação em que é considerado visionário.
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Bereia verificou os memes e citações de diferentes fontes nas mídias sociais e identificou que o conteúdo que atribui ao ex-governador Leonel Brizola a frase “Se os evangélicos entrarem na política, o Brasil irá para o fundo do poço, o país retroceder vergonhosamente e matarão em nome de Deus”, é IMPRECISO .
Nas pesquisas realizadas pela equipe não foram encontrados registros que legitimem a autoria da citação. Portanto, não há base suficiente para se afirmar que Leonel Brizola tenha proferido as palavras na forma que amplamente circulam em memes pela internet.
Além disso, uma análise do discurso apresenta diferença entre a forma polida dos registros da abordagem crítica do ex-governador, específica sobre a participação de pastores evangélicos no governo do Estado do Rio, em 2000, e as críticas ásperas e genéricas sobre a presença de evangélicos na política contidas nos atuais memes e outras publicações. Isto levanta dúvida se a frase que hoje circula tenha sido criada e atribuída ao ex-governador, prática comum a outras divulgações de citações atribuídas a diversos personagens da cena pública.
Apesar de o posicionamento crítico de Brizola sobre a participação de evangélicos no governo do Estado do Rio no final dos anos 1990 e início dos 2000, ser evidente em registros de mídias, o fato de o ex-governador ter sido criado em ambiente evangélico, entre outras manifestações positivas em relação ao segmento em sua trajetória, reforça as dúvidas quanto à autoria da frase como está concebida.
Referências de checagem:
Folha de São Paulo.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc3103200026.htm. Acesso em: 19 de junho de 2024.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2504200017.htm Acesso em: 21 de junho de 2024.
Estadão. https://www.estadao.com.br/cultura/sergio-augusto/ditos-nao-ditos-e-mal-ditos/. Acesso em: 19 de junho de 2024.
brasil247. https://www.brasil247.com/regionais/sudeste/leonel-brizola-neto-apos-decisao-da-camara-sobre-aborto-evangelicos-querem-transformar-o-pais-numa-republica-gospel-miliciana. Acesso em: 20 de junho de 2024.
Agência Brasil: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2024-06/lira-anuncia-comissao-para-debater-pl-do-aborto-no-segundo-semestre#:~:text=Entenda%20o%20projeto%20de%20lei,para%20quem%20fizer%20o%20procedimento. Acesso em: 21 de junho de 2024.
Youtube.
https://www.youtube.com/watch?v=oWWmJayje2w Acesso em: 21 de junho de 2024.
https://www.youtube.com/watch?v=6XdwMq8QfSY. Acesso em: 21 de junho de 2024.
https://www.youtube.com/watch?v=9F7Z4sUXnz0. Acesso em: 21 de junho de 2024.
Biblioteca Nacional
https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ – Acesso em: 21 de junho de 2024.
https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReaderMobile.aspx?bib=030015_11&PagFis=50589&Pesq=Brizola%20evang%c3%a9licos – Acesso em: 21 de junho de 2024
https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_12&Pesq=Brizola%20evangelico&pagfis=11178 – Acesso em: 21 de junho de 2024
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Foto de capa: reprodução/YouTube