A pandemia provocada pelo ‘novo’ coronavírus recolocou em debate a questão da finitude humana. A morte está entre nós! A qualquer momento, sem hora marcada e sem aviso prévio, podemos nos tornar uma referência estatística, sem despedidas e rituais de passagem. Isso tem causado angústia, medo e sensação de desamparo. O fato é que a morte sempre esteve por aí a nos espiar. A diferença é que era menos visível e um pouco distante do cotidiano de boa parte da população. Ficava a uma distância ‘segura’. Morava ao lado. Agora, se tornou próxima, íntima. Uma proximidade que escancara a efemeridade de cada um de nós e do planeta. Provoca uma ruptura entre um mundo já conhecido, que alguns teimam em chamá-lo de normal, e um futuro incerto. Testemunhamos a morte de um tempo. É como se vivêssemos em uma terra estrangeira. Sem bússolas. Sem garantias. Sem mapas de navegação. Uma sensação de estranhamento e desamparo.
Sigmund Freud, em 1916, ao vivenciar os horrores da primeira guerra mundial, produziu um texto sensível sobre como se posicionar frente à transitoriedade da vida. Ele traz à memória o relato de um passeio que havia feito em um dia de verão, um pouco antes da guerra, com um amigo e um jovem poeta. O texto diz que o poeta, mesmo admirado com tanta beleza, não conseguia se alegrar. Ficou “incomodado pelo pensamento de que toda aquela beleza estava condenada à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim também toda a beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar. Tudo o mais que, de outro modo, ele teria amado e admirado, lhe parecia despojado de valor pela transitoriedade que era o destino de tudo”. Freud contesta o pessimismo do poeta. Para ele, a efemeridade da vida, do belo, não seria razão para a sua desvalorização. Reconhece que a “exigência de imortalidade” é fruto de um profundo desejo humano, mas que – diante da realidade concreta da vida – se despedaça e se revela uma ilusão.
Para Freud, o “valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo” e “se existir uma flor que floresça apenas uma noite, ela não parecerá menos formosa por isso”. Não somos menos por sermos finitos. A finitude nos convida a um engajamento na vida. Nos faz perceber que viver não se resume a belos dias de verão. Há também os dias de inverno. Ambos têm encantamentos e dissabores, ganhos e perdas, alegrias e tristezas, realizações e frustrações. A vida é aposta, é risco permanente. Não há garantias a priori. Tem gente que passa a vida a(morte)cido, tentando se livrar da morte e, com isso, deixa de viver. Não se implica na desordem da qual se queixa. Os ‘outros’ e o acaso são sempre os culpados pelo seu mal-estar, infortúnio e paralisia. Para o psicanalista Jacques Lacan, “de nossa posição de sujeitos, somos sempre responsáveis”.
Por exemplo, a pandemia é algo que nos atravessa enquanto humanidade. É da ordem do inusitado. Está aí e pronto. Exige o cumprimento de procedimentos padrões, tais como: lavar as mãos, usar máscaras, respeitar o isolamento, evitar aglomerações. Requer uma cota de sacrifício individual em prol do bem comum. Por outro lado, coloca para cada sujeito a possibilidade de criação de novas narrativas para se sustentar nesse momento de travessia. Até porque, palavras e soluções envelhecidas serão insuficientes no enfrentamento de um novo tempo. O poeta, da história de Freud, fez uma escolha. Ficou identificado com a morte, com as possíveis perdas. O luto antecipado não lhe permitiu localizar-se no presente. A(morte)cido, optou pelas velhas respostas. Não soube perceber que a finitude é inerente à vida. Como nos alerta Freud, “suportar a vida continua a ser o primeiro dever dos vivos”. Que sejamos capazes de sustentar a vida e os nossos desejos nessa travessia para um mundo ainda desconhecido.
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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução