Em meio ao avanço de projetos de lei no Congresso e no Senado que buscam retirar direitos já conquistados para endurecer as regras sobre o aborto no Brasil, muitas vezes alimentados por desinformação e discursos de pânico moral, a ONG Católicas pelo Direito de Decidir lança, neste 2025, a cartilha Ética Profissional e Ética Cristã: conversando a gente se entende. O material, que será apresentado oficialmente em evento virtual no sábado, 6 de setembro, pelo YouTube, convida profissionais de saúde a refletirem sobre dilemas éticos e religiosos no atendimento a casos de aborto, estimula o diálogo entre ciência e fé.
O lançamento ocorre em um cenário de forte disputa política no Poder Legislativo, marcado por propostas que visam restringir ainda mais o acesso ao aborto legal. Nesse contexto, a cartilha oferece subsídios para uma atuação ética, responsável e pautada nos direitos humanos, evidencia que religião e ética profissional caminham juntas, sem reforçar estigmas ou negar direitos.
Segundo a equipe de Católicas pelo Direito de Decidir , a nova cartilha reúne reflexões sobre ética e moral no atendimento a mulheres em situação de aborto, aborda a “objeção de consciência” por parte de agentes católicos, propõe exercícios de sensibilização e indica boas práticas para profissionais de saúde.
Formada por teólogas e fiéis católicas em 1993, em defesa do Estado laico e da vida das mulheres, a ONG Católicas pelo Direito de Decidir busca questionar determinadas normas eclesiásticas da Igreja Católica, especialmente no que diz respeito à autonomia das mulheres e aos direitos sexuais e reprodutivos. O Bereia acessou o conteúdo da cartilha e avalia contexto político em que foi lançada.

Projetos de lei no Congresso reforçam desinformação sobre esta pauta
O lançamento da cartilha Ética Profissional e Ética Cristã: conversando a gente se entende acontece no contexto do avanço de propostas legislativas que endurecem ainda mais as regras sobre o direito das mulheres à interrupção da gravidez.
Entre eles está o PL 1904/2024, apresentado por Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares da Frente Parlamentar Evangélica. O texto propõe equiparar abortos realizados após 22 semanas de gestação a homicídio simples, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro. O texto ainda prevê que abortos após 22 semanas, com ou sem consentimento da gestante, quando constatada “viabilidade fetal”, possam ser punidos com até 20 anos de prisão, mais severa que a pena aplicada a estupradores, que varia de seis a dez anos, incluídos na punição os profissionais que praticassem a interrupção da gravidez. A proposição admite que juizes poderiam até considerar circunstâncias individuais.
Além disso, o PL revoga a não punibilidade prevista atualmente nos casos de vítimas de violência e impõe notificação compulsória à polícia para todos os casos de aborto nestas situações, sob pena de detenção de seis meses a dois anos. Com a aprovação, a interrupção da gravidez em casos de estupro ficaria restrita até a 22ª semana, salvo risco de vida da gestante.
Conhecido como “PL do Estupro”, “PL do Aborto” ou “PL da Gravidez Infantil”, o projeto gerou intensa mobilização nas redes digitas e massivas manifestações de rua por mulheres em várias cidades do país. Como Bereia checou, entre as manifestantes estavam mulheres de diferentes igrejas cristãs, católicas e evangélicas, indignadas com a criminalização e a retirada de direitos já concedidos em relação aos seus corpos, em especial de crianças e adolescentes, as maiores vítimas de estupros no Brasil. Apesar da avalanche de falsidades publicadas pelos partidários do PL 1904/2024, que alegam “defesa da vida”, a tramitação da proposta foi suspensa diante da repercussão alcançada pelas manifestações nos espaços digitais e nas ruas, e das pesquisas de opinião que apontaram ser muito ampla a rejeição da população ao PL.
No mesmo ano de 2024, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) levantou o registro de 98 propostas em análise no Congresso Nacional que representam algum tipo de retrocesso na legislação sobre o aborto legal no Brasil. Além destes retrocessos legislativos, episódios recentes se somam a outros tantos que mostram como preconceito e autoritarismo institucional podem afetar diretamente adolescentes e grupos marginalizados nesta questão.
Em 19 de setembro de 2024, uma menina vítima de violência psicológica e sexual cometida pelo próprio pai foi atendida na UPA do Sol Nascente, no Distrito Federal, pela conselheira tutelar Cláudia Damiana da Silva. Durante o atendimento, a agente publica, que é cristã, teria coagido a adolescente ao afirmar ser ela lésbica e ateia, o que seria “coisa do demônio”, e que ela “deveria ler a Bíblia”
O episódio gerou repercussão nas redes e reacendeu debates sobre a atuação indevida de conselheiros tutelares com desrespeito aos direitos de crianças e adolescentes. Em resposta ao caso, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) solicitou, em 25 de agosto, à Polícia Civil do Distrito Federal a prisão de Cláudia Damiana, e destacou a gravidade da situação e a necessidade de responsabilização pelos atos.
A Polícia Civil abriu investigação para apurar os fatos e definir responsabilidades legais. O Ministério Público do DF também investiga o caso. A conselheira pode responder por abuso de autoridade e violação dos direitos da criança e do adolescente, conforme previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
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O Bereia avalia que a desinformação sobre o aborto tem sido utilizada como ferramenta para gerar pânico moral e justificar projetos de lei que promovem retrocessos nos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil, caso do PL 1904/2024.
Na contramão dessa lógica, a cartilha Ética Profissional e Ética Cristã: conversando a gente se entende, lançada por Católicas pelo Direito de Decidir, aposta no diálogo, entre ética profissional e fé, e oferece instrumentos concretos para que profissionais de saúde atuem de forma ética, responsável e respeitem os direitos das vítimas.
Além disso, o material evidencia o papel de organizações religiosas na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, desconstrói a ideia equivocada de que a religião é monolítica e automaticamente contrária à interrupção da gravidez, e demonstra que fé e direitos humanos podem caminhar lado a lado.
Referências:
Católicas pelo direito de decidir. https://catolicas.org.br/. Acesso em 01 de setembro de 2025.
https://www.instagram.com/p/DOEI5s1jeRP/?img_index=1. Acesso em 01 de setembro de 2025.
Estatuto da Criança e do Adolescente https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em 01 de setembro de 2025.
PL 1904/2024. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2434493. Acesso em 01 de setembro de 2025.
G1. https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2025/08/25/erika-hilton-pede-prisao-de-conselheira-tutelar-do-df-que-coagiu-jovem-agredida-e-disse-que-lesbica-e-ateia-e-coisa-do-demonio.ghtml. Acesso em 01 de setembro de 2025.
G1. https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2025/08/25/lesbica-e-ateia-e-coisa-do-demonio-conselheira-tutelar-e-investigada-por-coagir-e-revitimizar-jovem-no-df.ghtml. Acesso em 01 de setembro de 2025.
Alma Preta. https://almapreta.com.br/sessao/politica/apos-pl-do-estupro-novos-projetos-de-lei-visam-endurecer-legislacao-sobre-aborto-legal/. Acesso em 02 de setembro de 2025.
Foto de capa: Acervo/Católicas pelo Direito de Decidir



