No meio evangélico brasileiro, sempre existiu uma idealização dos Estados Unidos como um país próspero devido à formação religiosa dos “primeiros” habitantes por terem escapado da perseguição no Reino Unido. Esses cristãos protestantes estabeleceram-se nas Treze Colônias com princípios que, mais tarde, levaram à formação de um país de “primeiro mundo”.
Sempre presente nas pregações tupiniquins, o imaginário é que se o Brasil se tornasse um país evangélico, alcançaríamos o mesmo patamar dos EUA. Lembro até hoje de um pastor pregando sobre Abraham Lincoln e da importância de seu temor a Deus na vitória da Guerra da Secessão, abolindo assim a escravidão no país.
Não era contado a nós a dizimação indígena, o controle religioso e a cultura armamentista, muito menos a ideia de que havia uma predestinação à salvação, que, no desespero, deveria ser notada pelo ardor ao trabalho em uma ação individual que gestou essa cultura meritocrática e um pensamento que inibe a discussão dos direitos sociais.
Atualmente, com aproximados 25% de população evangélica, essa miragem sobre o país ao Norte permanece. O Brasil é, neste momento, muito parecido com os Estados Unidos: influência do negacionismo científico e aumento da desigualdade social, fatores que abalam fortemente a vida familiar, envolvendo, respectivamente, saúde e renda, pontos fortes na sustentação doméstica.
Assim, a pregação pela defesa da família vem de maneira contraditória, quando, nos discursos via púlpitos, pais e mães são estimulados a frequentarem cultos com seus filhos, administrarem tempo com eles dentro de casa e cultivar o relacionamento para afastá-los da possibilidade de serem desencaminhados para as drogas, violência e desvio da fé.
Por que esse discurso é contraditório?
Não é difícil encontrar figurões da fé evangélica, geralmente abastados financeiramente, pregarem que “não devemos valorizar o trabalho mais que a família”, “precisamos de tempo com quantidade e qualidade com cônjuge e filhos”, em uma mensagem de reflexão que, apesar da aparente verdade, foge do contexto que esses medalhões contraditoriamente defendem.
A bancada evangélica, apoiada por muitos deles, defendeu a Reforma Trabalhista de 2017 com, aproximadamente, 65% de votos a favor. Em 2019, a mesma bancada obteve 91% de votos pelo texto-base da Reforma da Previdência. Essas mudanças que afetaram a vida do trabalhador, com discursos promissores de geração de empregos, foram responsáveis pelo aumento da informalidade, precarização do trabalho e desgaste na saúde física e mental dos pais e mães brasileiros.
Como os responsáveis pelas suas famílias frequentam cultos com pregações cheias de culpa sobre ser presente na vida dos filhos, sendo que, para sustentá-los, precisam trabalhar várias horas ao dia, nos finais de semana e sem usufruir proteção social?
Fico imaginando um motorista de aplicativo, que realiza outras atividades a fim de angariar recursos para sua família, ir a um culto que serve para culpá-lo como se essa realidade fosse de sua única responsabilidade. No discurso, bela teologia para a defesa da família; na prática, defesa de pautas políticas que afetam direitos sociais – uma espiritualidade que escamoteia a vida social.
O interessante é que os partidos de esquerda demonizados nos últimos anos são os que, majoritariamente, defendem o trabalhador que frequenta os cultos e que entrega o seu dízimo, enquanto partidos “patriotas, por Deus, família e liberdade”, defendem pautas que não favorecem a maioria evangélica periférica e trabalhadora.
Muitos outros exemplos podem ser dados, como a aposentadoria, cuja renda foi reduzida com o novo cálculo, o aumento da idade e tempo de serviço sem ao menos considerar as disparidades regionais, ao lado de ricos que pagam menos impostos que a classe média.
Quando Ricardo Mariano escreveu “Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil”, uma de suas conclusões foi de que os evangélicos cada vez mais se aliam politicamente de forma clientelista e corporativista adequando-se à realidade perversa do nosso país, e isso foi percebido naquela foto dos pastores ao lado do Jair Bolsonaro, que sancionou o perdão de dívidas das mega-igrejas.
Esses líderes o apoiaram e seus altares serviram de palanque eleitoral para candidatos que juraram, em nome de Deus, defender a família, na incoerência em apoiar o desmanche de proteções sociais que a deterioram. É a família no discurso de ampla defesa, na propagação de pânico moral e na sua mutilação, que pela prática, ocorre pelas pautas que carregam.
De fato, nos aproximamos de situações similares à sociedade estadunidense que tanto nos iludimos em pregações: fanatismo religioso aliado a discurso político em um país com trabalhador precarizado. É isso que queremos? Existe, ao menos, uma diferença: lá nas terras do Tio Sam, até alguns ricos entenderam que devem pagar mais impostos. Aqui isso é “discurso de comunista”.
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***Foto de capa: Pixabay