Dois acontecimentos recentes ganharam amplo espaço na mídia e acenderam um alerta em relação aos tempos em que vivemos! O primeiro foi o alcance que uma postagem de internet alcançou em nosso país. O deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) fez uma postagem sobre uma instrução normativa do Governo Federal a respeito da fiscalização do Pix, sugerindo que esse tipo de transação bancária poderia vir a ser taxada pelo governo, quando não parecia ser esse o objetivo da medida. Em pouco tempo a postagem alcançou o extraordinário número de 300 milhões de visualizações!
O segundo acontecimento tem a ver com a posse de Donald Trump, Presidente dos EUA, no dia 20 de janeiro. Além da presença de figuras protocolares, como ex-Presidentes, líderes do Congresso, Membros da Suprema Corte, familiares do Presidente e convidados especiais, chamou mesmo a atenção a deferência dada aos líderes das grandes empresas da tecnologia de comunicação, como Elon Musk (Tesla, X/Twitter), Mark Zuckerberg (Meta: Instagram, Whatsap e Oculus), Sundar Pichai (Google), Tim Cook (Apple), Jef Bezos (Amazon). Alguns deles ajudaram a financiar a campanha de Trump, outros se renderam ao Presidente eleito com generosas doações para o fundo de posse. Nunca ficou tão escancarada a aliança entre o âmbito da comunicação, do capital e do poder! O valor de mercado das empresas de Musk é estimado em 1,4 trilhão de dólares; as de Zuckerberg, em 1,55 trilhão de dólares. O Google tem valor estimado em 2,4 trilhões de dólares. A presença desses empresários no cerimonial de posse de Trump é um sinal evidente da influência crescente do setor da tecnologia da comunicação na esfera da política.
Teria o primeiro acontecimento descrito algo a ver com o segundo? Os menos atentos diriam que não! Nada! Mas não parece ser o caso! Não é intrigante que uma postagem de um deputado tenha alcançado, em pouco tempo, 300 milhões de visualizações, num país de 212 milhões de habitantes? É um caso inédito no país! Não há registro de outro conteúdo que tenha alcançado número tão expressivo em tão curto espaço de tempo. O ineditismo é tão grande, que fica até a impressão de que os responsáveis por esse feito erraram a mão! Pois é como se todos os brasileiros tivessem visto a postagem, vários, inclusive, mais de uma vez. Especialistas em redes sociais sugerem o óbvio: esse alcance extraordinário é o resultado de compartilhamentos massivos e impulsionamentos pagos ou orgânicos, que ampliaram de maneira expressiva a disseminação do conteúdo. Parece ter sido um teste de laboratório e uma amostra daquilo que nos espera em futuro próximo.
As consequências
As consequências dessa aliança entre a esfera da comunicação e da política são assutadoras. Imaginemos, por exemplo, como serão os próximos pleitos eleitorais se as redes sociais continuarem sendo uma terra sem lei, como querem seus donos sedentos de lucro, poder e influência, ou como defendem os políticos que chamam qualquer tentativa de regulamentação das redes de censura, cerceamento da liberdade de expressão e ditadura! Imaginemos uma corrida eleitoral em que boatos e mentiras estejam liberados, em que não se possa mais diferenciar a verdade da mentira, em que discursos possam ser colocados na boca de adversários por meio da inteligência artificial, em que as postagens possam ser impulsionadas livremente pelos donos do capital e das redes sociais. O estrago irremediável estaria feito antes que qualquer medida judicial pudesse ser tomada. Seria a derrocada do regime democrático e o reinado do imperialismo absolutista e aristocrático. Os influentes donos do dinheiro e das redes de influência teriam plena liberdade para promover ou destruir reputações, para destruir fatos e criar realidades paralelas, para manipular pessoas e conduzi-las ao objetivo que lhes interessa. Algo disso se viu nas cerimônias de posse de Trump, com sua tônica arrogante, prepotente, discriminatória, predatória, a serviço da elite estadunidense.
E quais seriam as consequências para a igreja, em torno da qual gira o interesse específico dessa reflexão? Tenho conversado com muitas pessoas nos últimos tempos através das redes sociais. Vi muitas pessoas identificadas como cristãs saudando a posse de Trump como se fosse o início de uma nova era, ou uma “era de ouro” como ele mesmo definiu em seu discurso! Para essas pessoas teríamos finalmente um Presidente eleito pelas urnas (impressas!) e simultaneamente ungido pelo poder de Deus! Trump seria uma espécie de rei Davi, quase um Messias, que vai conduzir o mundo a um período de paz e prosperidade. Trump seria um piedoso homem de Deus, que vai resgatar os valores ocidentais e resguardar os valores tradicionais da civilização judaico-cristã, favorecendo a defesa da fé diante dos adversários. “Make America Great Again” não seria o que parece ser, mas a expressão do desejo de um Presidente disposto a construir um mundo seguro, grande e justo para a humanidade.
Na conversa com essas pessoas, fico sempre de novo perplexo com sua visão de mundo e com naturalidade como elas interpretam a realidade do mundo e os acontecimentos da história! É como se tudo já estivesse predito nas Escrituras! O próprio Trump, nessa linha, estaria oculto nas palavras de algum profeta, já que profecia é uma espécie de história narrada antecipadamente. Bastaria decodificar o que está nas linhas (sobretudo nas entrelinhas!) do texto bíblico para decifrar o que está acontecendo ou vai acontecer.
Um exercício Hermenêutico
Pois quero fazer um exercício hermenêutico sobre um desses textos proféticos. Não é um desses textos vagos e ambíguos, em relação aos quais o intérprete pode fantasiar à vontade e projetar sua ideologia e visão de mundo, mas um texto em torno do qual se articula todo um livro. Falo de Apocalipse 13, que é uma das críticas teológicas mais contundentes contra a ameaça representada pelo imperialismo e absolutismo. Recordando rapidamente seu conteúdo: o autor se refere a uma besta que emerge do mar e recebe o seu poder do dragão. Ela foi golpeada de morte, mas sobreviveu, sinal de que foi escolhida pelos céus para uma missão especial. Uma segunda besta se levanta da terra. Ela tem menos poder que a outra, e exerce uma função subalterna: promover os interesses da primeira.
O resultado dessa parceria entre as duas bestas é descrita da seguinte forma: toda a terra passa a admirar a primeira besta, aquela que recebeu seu poder do dragão. Ninguém se atreve a lutar contra ela. Todos os habitantes da terra se submetem a ela e a adoram. Graças a isso a besta passa a controlar as pessoas, inclusive suas atividades econômicas, de modo que ninguém pode comprar ou vender se não tiver as marcas da besta e estiver submetido a ela.
Não há dúvida sobre a identidade do DRAGÃO que deu seu poder à besta. Isso está decifrado em Ap 12.9: o dragão é a serpente, o diabo ou satanás, aquele que semeia a confusão para dividir as pessoas e afastá-las de Deus. A caracterização da BESTA QUE EMERGE DO MAR, nos dois versículos iniciais, indica que se trata de alguém (ou de um organismo) que possui muito poder. Chifres, entre outros significados, simbolizam força, poder, autoridade (Dt 33.17; Ap 17.12). Diferentemente de Rm 13, portanto, o autor do texto afirma, a partir de sua experiência e percepção da realidade, que o poder a que faz alusão não possui origem divina, mas diabólica. Ele não cumpre a função que o legitima como poder e autoridade (reprimir o mal e promover o bem comum, na direção de Rm 13), mas quer reinar, absoluto, sobre a consciência civil e religiosa das pessoas, exigindo obediência, subserviência, conivência e fidelidade irrestritas.
Sobre a SEGUNDA BESTA, aquela que emerge da terra, o autor descreve que ela tinha um poder menor (dois chifres). Ela se parece com um cordeiro, embora fale como um dragão. Ela se encontra sob a autoridade da primeira besta e está a serviço dela. Vinte e oito vezes no Apocalipse o cordeiro é uma figura utilizada para simbolizar a Cristo. Se aqui é dito que a segunda besta se parece com um cordeiro, isso significa que o autor está atribuindo uma função religiosa a essa figura. Ap 19.20 a chama de falso profeta.Trata-se de uma alusão a autoridades religiosas que promovem a ideologia e a estratégia política da primeira besta. A relação entre as duas bestas mostra que a sociedade está sujeita a um grande risco: o abuso do poder político aliado ao abuso do poder religioso. O Estado degenerado cria uma pseudo-religião que lhe é submissa e que colabora com o projeto de poder.
A questão central consiste em identificar a PRIMEIRA BESTA, aquela que recebeu o poder do diabo. Ela emerge do mar, que na simbologia apocalíptica designa um estado caótico, que deixará de existir na nova Jerusalém que Deus vai fazer descer do céu (Ap 21.1). Quando o autor escreveu o texto, no final do primeiro século, provavelmente ele estava pensando no Imperador Romano e na estrutura que lhe dava suporte. Ela estava hostilizando as comunidades cristãs na costa ocidental da Ásia Menor (Turquia). Como sabemos, essa hostilidade se ampliou e se intensificou nas décadas seguintes. E terminou sob Constantino, em inícios do quarto século, quando esse Imperador fez uma aliança estratégica com os cristãos, que os imperadores anteriores não conseguiram submeter aos seus interesses. Ao escrever o texto, portanto, o autor obviamente não estava pensando no século XXI, mas nas comunidades do primeiro século, sobretudo nas comunidades abordadas nos capítulos 2 e 3. Queria fortalecê-las para que não renegassem sua fé e resistissem ao confronto com um Império que queria obediência cega e submissão absoluta.
Nós não vivemos sob o Império Romano. A pergunta que naturalmente se impõe é pelo que fazemos então com o texto. A resposta parece óbvia. Mesmo que não estejamos sob o Império Romano, sempre que identificarmos um poder absolutista, que requer uma obediência cega e uma colaboração incompatível com nossa fé, nossa tarefa é resistir. Critério para chegar a essa decisão e definir a postura a tomar é o evangelho da graça, do amor e da justiça proclamado por Jesus Cristo.
A Besta e os seguidores do Cordeiro
Voltando à conversa com meus interlocutores nas redes sociais, estranho que Apocalipse 13 esteja sendo soberanamente ignorado nas manifestações. Presumo que também esteja sendo soberanamente esquecido em nossas igrejas, sobretudo nas igrejas evangélicas que conheço mais de perto. Isso é estranho, porque haveria surpreendentes pontos de contato imediato com a realidade atual. Por exemplo, a sobrevivência a um atentado de morte, explorado por um postulante ao poder, para tentar convencer as pessoas de que é um ser protegido e abençoado por Deus, eleito para cumprir uma grandiosa missão em Seu nome. Não vimos algo do gênero nos tempos recentes? Ou então a aliança espúria entre o poder político e religioso que o texto denuncia. Não estamos vendo algo semelhante em nosso meio? Mas não vejo um internauta que faça referência a esse texto.
Em troca disso, vejo o pessoal buscando o cumprimento de profecias nos bolaines de água doce do Mar Morto, onde estariam aparecendo alguns peixes. Isso estaria cumprindo Ezequiel 47 e seria um sinal inquívoco da autoridade e inerrância das Escrituras. Outros anunciam que rio Eufrates está secando para cumprir a profecia de Ez 38, segundo a qual os exércitos de Gogue e Magogue (=Irã e Rússia) vão invadir Israel e dar início à batalha final. Outros ainda não escondem seu entusiasmo pelas guerras no Oriente Médio, sinal de que a volta de Jesus e o fim dos tempos estaria iminente! Disparates desse tipo não faltam nas redes sociais! Mas nada de Ap 13! Por que não? Como bem lembrou o colega Walter Altmann, as pessoas que mais advogam esse tipo de interpretação são as mais seletivas na hora de escolher os textos bíblicos, deixando muitas vezes absolutamente de lado as passagens centrais e realmente relevantes das Escrituras.
Apocalipse 13 fala de uma situação em que reina uma unanimidade quase absoluta: toda a terra se maravilha com a besta e a segue, todos vão adorar a besta, ninguém tem coragem de enfrentá-la. A própria religião endossa o coro uníssono ao colocar-se a serviço da besta. Quando na história da humanidade estivemos tão próximos de um tal projeto de poder que quer contar com tamanha unanimidade? Não houve nada parecido no primeiro século nem nos séculos seguintes. Hoje estão dadas as condições para que tal coisa possa acontecer. As novas tecnologia de comunicação, concentradas nas mãos de algumas poucas pessoas, podem atingir simultaneamente milhões e milhões de pessoas em qualquer parte do mundo, levando-as a acreditar em qualquer mistificação que se queira produzir, por exemplo, que as ações humanas sobre o meio ambiente não são capazes de alterar as condições do clima, por cuja razão não seria necessário investir em energia limpa e renovável.
Em seu discurso de posse, Trump sinalizou algo nessa direção, ao priorizar a exploração das reservas de petróleo e anunciar a retirada dos EUA do Acordo de Paris, que previa iniciativas para limitar o aumento da temperatura global. Hoje é possível espalhar, em pouco tempo, uma ideia, firmar uma convicção, gerar uma postura e iniciar uma mobilização. Basta manipular os algoritmos e direcioná-los às pessoas para que elas recebam a mesma narrativa, não importando se ela é verdadeira ou falsa, fictícia ou real, realidade factual ou paralela. Para ficar no exemplo antes mencionado, a postagem do deputado e a enxurrada de visualizações provocaram verdadeiro pânico entre as pessoas e uma queda significativa nas transações realizadas por Pix, evidenciando como conteúdos virais podem modificar a percepção e o comportamento das pessoas.
Para concluir, uma última reflexão para as igrejas do nosso tempo: quais as chances reais que a pregação tradicional do evangelho ainda possui para formar a consciência e a conduta cristã? Pessoas cristãs são inundadas e doutrinadas diariamente por um turbilhão de mensagens enviadas através das redes sociais, cujo conteúdo não foi checado quanto à sua integridade. Elas consomem essas informações de maneira acrítica, mesmo porque não estão acostumadas a duvidar daquilo que recebem em suas bolhas. Elas não foram ensinadas em suas igrejas a perguntar, a inquirir, a pesquisar. Elas não possuem instrumentais para distinguir a verdade da mentira, para discernir entre realidade factual e ficção, para distinguir o joio do trigo. Recebem sempre de novo o leite dos infantes e imaturos na fé, quando já deveriam ser capazes de se alimentar com comida sólida, como lamentava o apóstolo Paulo em relação aos cristãos de Corinto.
Se a concorrência com as redes sociais coloca a igreja de antemão numa flagrante situação de desvantagem, que dizer então quando as próprias igrejas e suas lideranças são parte dessa engrenagem, seja por ignorância, ingenuidade ou cumplicidade? Diante desse quadro, voltamos a insistir: quais as chances reais que temos atualmente de formar consciências e condutas cristãs? Ainda é possível um retorno às fontes da fé cristã, um reencontro com a mística cristã em meio ao espírito do mundo, uma redescoberta da força profética do evangelho e de uma conduta condizente com a fé cristã?
Uma cena acontecida em 21 de janeiro, dia seguinte à posse de Trump, ilustra bem o desafio que se coloca aos cristãos. A cena escancara também o abismo que separa a fé cristã da roupagem religiosa que se tentou emprestar às cerimônias de transmissão de cargo. Em cerimônia realizada na Catedral Nacional de Washington, que contou com a presença de Trump e de diversas outras autoridades, a bispa anglicana Mariann Edgar Budde, em tom sereno e firme, exortou o Presidente a ter misericórdia dos imigrantes ameaçados de deportação em massa e de outras minorias ameaçadas de discriminação. Ela disse: “Peço que tenha misericórdia, senhor Presidente, daqueles em nossas comunidades cujos filhos temem que seus pais sejam levados embora, e que ajude aqueles que estão fugindo de zonas de guerra e perseguição em suas próprias terras a encontrar compaixão e boas-vindas aqui. Nosso Deus nos ensina que devemos ser misericordiosos com o estrangeiro.” Trump ouvia, entre surpreso e atônito, as palavras da religiosa, como se não acreditasse em sua empáfia e ousadia. Como ela se atreve a falar assim com um Presidente? Chegou a olhar para o lado, como se cogitasse retirar-se diante de tamanho atrevimento. Nas redes sociais, tentou desqualificar depois a religiosa como uma esquerdista radical que o odeia. E exigiu desculpas públicas dela e de sua igreja.
Mas por que a religiosa deveria pedir desculpas a Trump? No dia anterior ele havia jurado com a mão sobre a Bíblia (aliás, duas Bíblias!), colocando-se sob os valores que esse livro representa. No centro deste livro, para a comunidade cristã, está a figura de Jesus Cristo. Numa de suas mais importantes parábolas, sobre o grande julgamento, este Jesus se identifica com os famintos, sedentos, forasteiros, desabrigados, presos e doentes. “Tudo que fizestes (ou deixastes de fazer) a um desses meus pequeninos, a mim o fizestes (ou deixastes de fazer)” (Mt 25.31-46). Como fez a bispa, a igreja cristã tem o dever profético de esclarecer que Jesus estará sendo expulso junto com as massas de deportados. Mas não apenas esclarecer! Denunciar e resistir! Assim como deve denunciar e resistir a toda tentativa de abusar da religião para manipular e subjugar pessoas, reduzidas a súditas amorfas e inertes de um projeto totalitário, desumano e idólatra.
*texto elaborado em 21 de janeiro de 2025.
** Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia