Na sequência do acompanhamento sobre comprometimento do princípio do Estado laico em proposições legislativas, o Bereia apurou que dois projetos de lei municipais, em Divinópolis (MG) e Joinville (SC), que dispõem sobre a leitura da Bíblia nas escolas, foram aprovados em agosto passado. Em ambos os casos, houve propostas de parlamentares por emendas que incluíssem outros livros religiosos na leitura paradidática escolar, como O Livro dos Espíritos e O Alcorão, que foram rejeitadas. Tais projetos chamam a atenção para a negação do pluralismo religioso e para a negligência parlamentar diante das múltiplas experiências religiosas.
A Lei nº 9.567 foi sancionada pela Prefeitura de Divinópolis, em 11 de agosto de 2025, sob justificativa de que “a Bíblia Sagrada é também um livro rico em história, cultura, filosofia, arqueologia e ensinamentos de muito valor”. O texto prevê, ainda, a preservação da liberdade religiosa nos termos da Constituição Federal, de forma que nenhum aluno poderá ser obrigado a participar das atividades relacionadas à Lei.

Reprodução/Prefeitura de Divinópolis
O vereador Matheus Henrique Dias (AVANTE/MG) foi o autor do Projeto de Lei nº 69, de 2025, que originou a lei. De acordo com o perfil do parlamentar na Câmara Municipal de Divinópolis, Dias é missionário consagrado na Comunidade Católica Missão Maria de Nazaré.
A vereadora Kell Silva (PV) propôs primeiramente o Substitutivo I ao PL CM nº 69/2025, que buscava incluir outros livros religiosos, com o objetivo de fazer com que crianças e adolescentes tenham contato com textos diversos, estimulando a tolerância religiosa. O substitutivo foi rejeitado em 25 de junho.
Logo após, a parlamentar propôs a Emenda Modificativa nº 29 de 2025, com o mesmo objetivo do substitutivo. “Quando aprendemos sobre diversas religiões e suas tradições, desenvolvemos empatia e evitamos preconceitos, o que contribui para uma sociedade mais justa e harmoniosa. Além disso, o ensino plural incentiva o diálogo e a valorização da diversidade cultural e espiritual, preparando os estudantes para conviverem de forma mais aberta e respeitosa com as diferenças. Assim, a escola se torna um espaço onde todos podem se sentir acolhidos e respeitados, independentemente de suas crenças”, diz a justificativa da emenda.
A Emenda Modificativa foi rejeitada em plenário, em 5 de agosto. Alguns dos argumentos dos vereadores votantes abordaram que a maioria da população de Divinópolis é cristã e que, portanto, o impacto cultural de outras religiões é irrelevante no município. O autor do Projeto de Lei disse, ainda, que a emenda proposta seria uma tentativa de sabotar o projeto.

Reprodução/Câmara Municipal de Divinópolis
A vereadora de Divinópolis pelo Partido Verde Kell Silva é historiadora formada pela Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ), mestre em Cultura e Identidade pela mesma universidade e doutora em História Social da Cultura pela UFMG. Ouvida pelo Bereia, a vereadora declarou: “Eu sabia que o projeto ia passar, devido ao apelo que ele tem: quem vai ser contra a Bíblia na escola? E qualquer outro argumento que a gente usasse, poderia aumentar ainda mais o escopo dos conservadores – ultradireitistas em relação à esquerda. Por isso pensei na estratégia de abarcar outros livros religiosos como paradidáticos, justamente para quebrar o caráter doutrinador do projeto e deixá-lo mais plural”.
A vereadora acredita que não houve votos suficientes para suas propostas por pressões partidárias e pelo receio de abordar questões mais sensíveis à sociedade. “Penso a educação como uma forma de desconstrução. Justamente por sermos de maioria cristã, eu inclusive sou católica, entendo que devemos conhecer a cultura, os povos e as religiosidades do mundo para nos tornamos seres mais tolerantes, mais empáticos, mais humanos”, concluiu a educadora.
Em maio deste ano, foi promulgada a Lei Municipal nº 11.862, em Belo Horizonte (MG), de autoria da vereadora Flávia Borja (DC – Democracia Cristã), que inspirou o Projeto de Lei de Divinópolis. Com ementas, artigos e justificativas com textos similares, outros projetos têm sido propostos em municípios pelo Brasil.
Em Joinville (SC), o Projeto de Lei Ordinária nº 147/2025, de autoria do vereador Brandel Junior (PL), foi aprovado com emenda no dia 12 de agosto e atualmente aguarda sanção ou veto da Prefeitura. O objetivo da proposta é o mesmo dos colegas de Divinópolis, instituir a leitura da Bíblia Sagrada como recurso paradidático nas escolas públicas e particulares do município.

Reprodução/Câmara Municipal de Joinville
Em 21 de julho, a vereadora Vanessa da Rosa (PT) propôs uma Emenda Modificativa que buscava incluir outros livros religiosos na Lei proposta. Entre os livros listados, estavam O Alcorão (do Islã), a Torá(do Judaísmo) e O Livro dos Espíritos (do Espiritismo Kardecista). A emenda foi rejeitada em 23 de julho na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, com três votos contrários, sob argumentos de que mudava o teor do Projeto de Lei, e que a vereadora deveria propôr um projeto paralelo com o mesmo objetivo da emenda.
“O resultado dessa votação escancara a hipocrisia dos projetos apresentados nessa Casa, que vem sempre travestidos de boas atitudes, de boas intenções, e no fundo são recheados de preconceito e intolerância. […] Religião quem trabalha são as famílias, de acordo com sua fé e a sua crença. À escola cabe trabalhar a pluralidade das religiões”, disse Vanessa da Rosa em vídeo publicado em sua conta no Instagram.

Reprodução/Câmara Municipal de Joinville
O que dizem os especialistas
O professor de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Alexandre Bahia falou com o Bereia sobre o princípio da laicidade do Estado. “A ideia de laicidade é de que o Estado deve ser neutro com relação a religiões. Cada um pode ter a sua religião, o Estado democrático de direito garante que cada pessoa possa ter a sua religião, mas ninguém pode ser nem beneficiado, nem punido por ter ou não ter alguma religião”.
Já sobre esses projetos de lei que tramitam pelo Brasil, o professor diz que são iguais em todo o país, “É um copia e cola absolutamente igual”. Bahia acredita que ao escolher um único livro religioso para ser incluído como paradidático nas escolas, há um privilégio de uma religião em detrimento de outras. “Não importa que seja a maioria, não importa que historicamente a formação do Brasil se deu por uma maior parte de pessoas cristãs, mas isso é privilegiar uma determinada religião e, portanto, isso viola o princípio da laicidade de Estado”.
A professora e pesquisadora de Educação e Religião Andréa Silveira acredita que a finalidade destas propostas é política, não pedagógica. “Fica ainda mais claro que a intencionalidade desses projetos de lei que pretendem incluir exclusivamente a Bíblia como material paradidático nas escolas não é garantir uma aprendizagem ampla e significativa, ou mesmo o direito educacional de crianças e adolescentes. A garantia de direitos educacionais ampara-se justamente na inclusão da diversidade de formas de pensar, crer, ser, viver e estar no mundo, que se manifesta, invariavelmente, na pluralidade religiosa”.
Silveira conclui que a rejeição às emendas que propõe a inclusão de outros textos sagrados, além da Bíblia, revela intencionalidades políticas supressivas. “Isso revela que essas propostas, que querem se impor com força de lei, têm uma intencionalidade política específica, qual seja, consolidar um projeto de sociedade que tenha como centro organizador e de controle valores morais cristãos ultraconservadores, logo, um modelo de sociedade, por princípio, excludente”.
***
Bereia chama a atenção, por conta de casos anteriores já checados, que tais projetos devem ser questionados no Supremo Tribunal Federal, a partir de ações do Ministério Público, e as leis municipais declaradas inconstitucionais por violarem o princípio do Estado laico. O uso desta temática como plataforma político-ideológica tem sido recorrente, em especial em períodos eleitorais e a declaração de inconstitucionalidade vem sendo usada como falsa acusação de perseguição à fé cristã.
Foto de capa: Unplash



