Francisco de Roma, mais um “terrível jesuíta”

Artigo publicado pelo Bereia em parceria com o Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp (LAR).

Em 2016, eu conheci um padre que se considerava um “terrível jesuíta”. Esse padre era Haroldo J. Rahm, SJ. Missionário enviado ao Brasil em 1964 a pedido de João XXIII, Rahm veio no espírito do Concílio Vaticano II e se estabeleceu em Campinas (SP), onde atuou com movimentos de leigos, fundou o Treinamento de Liderança Cristã (TLC), acolheu dependentes químicos e foi uma das figuras centrais na difusão da Renovação Carismática Católica. Sua trajetória expressa uma forma de presença religiosa marcada pela sensibilidade pastoral, pelo apostolado social, pelo diálogo inter-religioso e por uma visão teológica pluralista.

No livro “365 – Como se forma um papa jesuíta”, publicado em 2015, padre Haroldo organizou o que ele mesmo chamou de uma “feijoada espiritual”: um apanhado de pensamentos, frases e reflexões de jesuítas antigos e novos, com o objetivo de apresentá-los aos fiéis de hoje. A intenção era mostrar como a espiritualidade de Inácio de Loyola continua viva entre os jesuítas modernos. E entre eles estaria o então recém-eleito e já popular Papa Francisco, herdeiro da mesma linhagem espiritual.

No texto intitulado “Eu nunca vi um Papa…”, Rahm constrói uma imagem afetiva e crítica de Francisco, contrastando-o com seus antecessores. Aponta que ele carrega sua própria mala, anda no meio da multidão, entra em carros comuns, toca os pobres e afirma que a Igreja precisa mudar. A repetição da frase “Eu nunca vi um Papa…” serve como denúncia implícita de um modelo anterior de Igreja: mais distante, mais hierárquico, mais clericalista. No lugar disso, Francisco aparece como alguém que performa uma outra forma de autoridade — mais sensível, mais simples, mais atenta à desigualdade.

A eleição de Francisco em 2013 rompeu uma tradição quase implícita: jesuítas dificilmente se tornam cardeais, quanto mais papas. Ainda hoje, poucos jesuítas fazem parte do Colégio Cardinalício – cerca de seis apenas, a maioria ordenada pelo papa. A ascensão de Francisco foi assim, por si só, um deslocamento institucional significativo — e a forma como ele ocupou esse lugar, mais ainda.

Esse deslocamento, no entanto, precisa ser entendido à luz da relação histórica entre a Companhia de Jesus e o Concílio Vaticano II. Os jesuítas não apenas participaram do Concílio como peritos teológicos — com figuras centrais como Karl Rahner e Henri de Lubac —, mas também foram linha de frente da Igreja ao buscarem realizar de modo prático algumas de suas principais diretrizes, como o diálogo com a modernidade, a abertura às outras religiões e a preocupação com a justiça social. Sobretudo na América Latina, onde se aproximaram do que Michael Löwy denominou de Cristianismo da Libertação. Esse alinhamento se deu tanto no plano institucional quanto no corpo-a-corpo das pastorais sociais e das Comunidades Eclesiais de Base.

Entre as décadas de 1970 e 1980, mais de 40 jesuítas foram assassinados em diferentes países — entre eles Ignacio Ellacuría e seus companheiros em El Salvador, em 1989 — por atuarem junto aos pobres, denunciando violações de direitos humanos e criticando estruturas ditatoriais de poder. Esse envolvimento intensificou o conflito com setores conservadores da Igreja, especialmente durante o papado de João Paulo II, que buscou conter o avanço das teologias consideradas politicamente engajadas e interveio diretamente na governança da Companhia de Jesus.

A eleição de Francisco, um jesuíta, ao papado em 2013, representa uma reversão simbólica desse quadro. Com ele, rompe-se a animosidade entre o Vaticano e a Companhia de Jesus. Pela primeira vez, o papado e os jesuítas não apenas caminham juntos, mas compartilham linguagem, prioridades e horizontes – de tal modo que se tornou praticamente uma regra Francisco visitar pessoalmente os jesuítas nos países que visitava. Assim, Francisco não só deu novo ânimo e força institucional para os jesuítas; ele reinscreve o jesuitismo no centro do projeto eclesial contemporâneo.

Entre os elementos centrais de seu pontificado está a ecologia integral. Sua encíclica Laudato Si’ (2015) propõe uma conversão ecológica e o cuidado da casa comum. Como disse recentemente a socióloga Brenda Carranza em entrevista à CNN, essa discussão a respeito das mudanças climáticas dentro da Igreja enfrenta uma disputa externa com o negacionismo e interna com uma interpretação bíblica de dominação da natureza.

O sociólogo Flávio Sofiati também aponta um novo horizonte nessa direção. Para ele, a chamada “opção pelos pobres” foi ampliada: não se refere apenas à pobreza econômica, mas a uma série de vulnerabilidades contemporâneas — ambientais, étnicas, de gênero, espirituais. Francisco se alinha a essa mudança, ajudando a reformular o vocabulário político e teológico da Igreja.

Durante a pandemia, esse horizonte ganhou forma concreta entre os jesuítas que além de discutirem muito sobre ecologia integral organizaram uma vigília global chamada “Respirando Juntos”, com orações pelos três “pulmões do planeta”: Amazônia, Bacia do Congo e florestas asiáticas. Inspirada nos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola, a vigília conectava espiritualidade, corpo e ecologia. Orar, ali, era também um gesto de escuta do sofrimento do mundo.

O sociólogo José Casanova na obra The Jesuits and Globalization (2016) nos oferece um panorama interessante para pensarmos as mudanças vividas pela Companhia de a Jesus desde seu início. Ele propõe pensar sua história dos jesuítas a partir da globalização — e vice-versa. Para Casanova, a Companhia de Jesus viveu três grandes fases de globalização: a primeira, com a colonização e sua missão no “Novo Mundo” (séc. XVI-XVII); a segunda, marcada por revoluções e expansão imperial (séc.XIX até 2a Guerra); e por fim a terceira, no pós-guerra, marcada pela criação da ONU, a descolonização e o avanço tecnológico. Segundo ele, nessa terceira fase mais recente os jesuítas voltam à cena como protagonistas de uma proposta de globalização da fraternidade, em oposição a uma globalização da indiferença, tendo agora Francisco como figura-chave desse processo.

Com essa fraternidade, podemos dizer, parafraseando o antropólogo Ronaldo de Almeida, em texto publicado logo após a Jornada Mundial da Juventude de 2013, que Francisco “abriu o compasso” do que se entende por ser católico, rompendo com certo eurocentrismo da Igreja, acolhendo de forma fraterna as diferenças. Essa abertura deslocou fronteiras católicas sem necessariamente rompê-las.

Com sua morte, uma pergunta inevitável se impõe: esse compasso permanecerá aberto? Ou será recolhido por pressões conservadoras? Algo que só o tempo irá dizer.

Por ora, nos resta reconhecer que Francisco foi, sim, mais um “terrível jesuíta” – que bagunçou o coreto institucional da Igreja Católica. Mas também foi o “terrível jesuíta” que chegou onde nenhum outro havia chegado.

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Foto de Capa: Vatican Media

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