Desinformação e violência de gênero é tema de cartilha à disposição do público
Desinformação: uma das dimensões da violência de gênero é o título da cartilha lançada, em março passado, em uma parceria entre o Supremo Tribunal Federal e InternetLab, por meio do Programa de Combate à Desinformação.
O conteúdo do material tem como foco dois temas urgentes: a violência de gênero e a desinformação. O esforço se dá diante da escalada de ataques contra parlamentares mulheres que se potencializou nos processos eleitorais a partir de 2018, registrando ataques sistemáticos no ambiente digital.
Ainda que a cartilha não trate da necessidade de regulamentação das redes digitais no Brasil como um caminho para a solução do problema e dos abusos em torno da “liberdade de expressão”, usada como artifício para um “passe livre” na prática de crimes na internet, o material tem conteúdo bastante relevante. A cartilha oferece um amplo espectro de informações que mostra o caminho que os violadores têm percorrido contra mulheres e pessoas LGBTQIA+ e como reagir às violações.
Violência de gênero a desinformação
Em 1993, a ONU aprovou a Declaração para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres durante a sua Convenção sobre Direitos Humanos. No primeiro artigo, essa declaração define o que é a violência de gênero como “qualquer ato violento ligado ao gênero que cause ou possa causar dor ou sofrimento físico, sexual ou psicológico às mulheres, englobando ameaças, coerção ou a privação de liberdade de forma arbitrária, tanto na esfera pública quanto na privada”.
O documento foi criado com o intuito de esclarecer os mecanismos do antigo – porém persistente e arraigado – desafio da violência de gênero, que afeta mulheres e outros grupos que exercem autoridade nas arenas públicas. As campanhas de desinformação, bem como o sexismo e a misoginia direcionados contra as mulheres, normalmente ocorrem em oposição à atuação das representantes políticas. Embora a agressão contra as mulheres seja reconhecida globalmente como uma infração aos direitos humanos, os desafios enfrentados por este grupo continuam a ser uma reação a suas opiniões, resultando em ataques que colocam suas vozes e integridade em risco.
No cenário da desinformação, essa dinâmica se torna ainda mais intrincada, pois quando combinados, a desinformação e a violência de gênero manifestam diversas formas de discriminação que mulheres e indivíduos com outras identidades de gênero enfrentam diariamente.
Com a difusão do uso da Internet, as violências de gênero passaram a ter um novo espaço e se transformaram. Embora esses comportamentos online estejam enraizados em convicções da vida real, o ambiente digital possui elementos que tendem a intensificar atitudes machistas, como o afastamento da vítima, o uso do anonimato e a escassa possibilidade de punição legal.
Bereia já checou muito conteúdo sobre o tema. Lideranças políticas como a ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas Marina Silva, que recentemente sofreu ataques dentro do próprio Senado Federal, e ainda ouviu do presidente da comissão com quem dividia a bancada, que deveria “se pôr no seu lugar”, é alvo frequente.
Além da ministra, são recorrentes os ataques à ex-presidente Dilma Housseff, seja através de memes na internet, recortes de entrevistas ou falas descontextualizadas, colocam a ex-presidente como uma mulher irascível, emocionalmente descontrolada e intelectualmente incapaz. Agressões a outras lideranças políticas também se tornaram conhecidos, como os contra a senadora Eliziane Gama (PSD-MA), a ex-deputada federal Manuela D’Ávila, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP), e a vereadora Marielle Franco.
A título de exemplo, essas parlamentares mostram que tipo de perfil atrai os agressores: mulheres em espaços de poder. Quando não foram atacadas com desinformações relacionadas à pauta moral, foram acusadas de serem anticristãs – no caso das que já assumiram uma confissão religiosa evangélica.
Este cenário aponta para um retrocesso em relação à Lei nº 14.192, que trata da violência política de gênero, aprovada no Congresso Nacional, em 2021. A lei busca “prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher; e altera a Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), a Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995 (Lei dos Partidos Políticos), e a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997 (Lei Eleitoral), para dispor sobre os crimes de divulgação de fato ou vídeo com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral, para criminalizar a violência política contra a mulher e para assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais proporcionalmente ao número de candidatas às eleições proporcionais”.
Mas afinal, qual a relação entre a desinformação e a violência de gênero?
Em um cenário onde qualquer pessoa online pode enviar mensagens a um vasto público, as plataformas digitais ficam saturadas com conteúdos que não são submetidos a algum tipo de “filtro” avaliativo. A variedade de informações deixa de se preocupar com a imparcialidade, sendo largamente influenciada por perspectivas de indivíduos guiados por interesses políticos ou econômicos. É nesse contexto, que em certas situações, a comunicação nas mídias digitais ainda é afetada por técnicas de publicidade e métodos de manipulação diversas.
A desinformação pode se manifestar de diversas maneiras. Quando se espalham histórias, dados falsos ou enganosos com o intuito de prejudicar mulheres ou discriminar indivíduos com base na sua identidade de gênero. Esse tipo de desinformação pode ser direcionado também contra homens e pessoas de outras identidades de gênero, já que seu objetivo é diminuir a participação na esfera pública e restringir a variedade de vozes e perspectivas, reforçando papeis que historicamente foram atribuídos a homens e/ou mulheres. Assim, qualquer pessoa que se desvie desses estereótipos pode se tornar um alvo desse fenômeno.
A instrumentalização da violência de gênero online
Outro lado da violência de gênero é a divulgação não autorizada de fotos íntimas de mulheres. Embora essa questão não seja recente, sua visibilidade na mídia e sua extensão aumentaram com a capacidade de compartilhamento via internet, e atualmente, se tornaram ainda mais complexas com o uso cada vez maior da inteligência artificial (IA).
Com a popularização do uso da IA, a criação e modificação de imagens ficou mais fácil, resultando em novos episódios de divulgação não consentida de imagens íntimas, frequentemente chamadas de “deepfakes”. A produção e a distribuição de imagens e vídeos íntimos de mulheres são consideradas uma forma de violência de gênero, pois são utilizadas para promover o constrangimento, envergonhando e reafirmando o poder em cenários que ameaçam identidades e papeis tradicionais.
Diante da complexidade do quadro, a desinformação pode ser empregada como um meio para restringir as conquistas alcançadas por mulheres e outros grupos que historicamente enfrentam marginalização dentro da política formal, em diversos locais de influência. Assim, a desinformação pode potencializar a maneira como a propagação de informações falsas impacta negativamente a atividade política e profissional das mulheres, afetando seu bem-estar mental e físico, além de pôr em perigo a segurança de suas famílias.
As várias formas de violência não se restringem apenas a ataques de natureza de gênero, mas também se interligam a outros marcadores sociais da diferença, como etnia, classe social e orientação sexual. Nesse contexto, os conteúdos desinformativos são utilizados como uma tática para deslegitimar as mulheres, colocando direitos já garantidos pela Constituição em questão.
Bereia recomenda a leitura e a aplicação da Cartilha Desinformação: uma das dimensões da violência de gênero e coloca seus canais de contato à disposição para o envio de materiais que leitores e leitoras tenham acesso e devam ser confrontados com checagem e denúncia.
Referências:
Notícias Supremo Tribunal Federal – Guia Desinformação: uma das dimensões da violência de gênero
https://noticias-stf-wp-prd.s3.sa-east-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/wpallimport/uploads/2025/04/07204652/guia_desinformacao_versao3_25032025-1.pdf Acesso em 29 MAI 25
InternetLab
https://internetlab.org.br/wp-content/uploads/2021/03/5P_Relatorio_MonitorA-PT.pdf Acesso em 29 MAI 25
Fundação Getúlio Vargas – Mídia e Democracia
https://midiademocracia.fgv.br/estudos/ataques-violencia-de-genero-online-e-desinformacao-na-pre-campanha-prefeitura-de-sao-paulo Acesso em 29 MAI 25
ONU – Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres
https://www.ohchr.org/sites/default/files/eliminationvaw.pdf Acesso em 29 MAI 25
Coletivo Bereia
https://coletivobereia.com.br/liberdade-de-expressao-a-brasileira-desinformacao-de-genero-e-a-ofensiva-as-mulheres/ Acesso em 29 MAI 25
https://coletivobereia.com.br/as-faces-da-desinformacao-de-genero/ Acesso em 29 MAI 25
https://coletivobereia.com.br/desinformacao-de-genero-violencia-politica-em-perspectiva/ Acesso em 29 MAI 25
https://coletivobereia.com.br/genero-politica-e-desinformacao-as-mulheres-sob-ataque/ Acesso em 29 MAI 25
https://coletivobereia.com.br/senador-do-amazonas-declara-desejo-de-enforcar-ministra-marina-silva/ Acesso em 29 MAI 25
Senado
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/05/27/marina-silva-abandona-audiencia-na-ci-apos-discussao-com-senadores Acesso em 29 MAI 25
Lei nº 14.192/2021
https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI&numero=14192&ano=2021&ato=e5dkXVq5UMZpWT04e Acesso em 29 MAI 25
Imagem de capa: Divulgação/STF