Cobertura imprecisa de dados inéditos do IBGE sobre número de templos religiosos no país gera desinformação

Os principais veículos de comunicação no Brasil repercutiram dados do Censo 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e apresentaram uma análise comparativa entre a quantidade de templos religiosos e instituições de ensino e de saúde, no início de fevereiro.

As matérias jornalísticas enfocaram o número maior de estabelecimentos religiosos em relação à soma dos estabelecimentos de ensino e de saúde, e apresentaram outros aspectos da pesquisa de forma secundária. A abordagem ganhou repercussão política nacional, em mídias mais à direita e à esquerda, assim como em portais regionais, que aplicaram recortes da informação difundida.

Figuras públicas e ativas nas mídias sociais também sustentaram a mesma abordagem dos dados e chegaram a questionar a secularidade e colocar a laicidade do Estado brasileiro em questão. Em contrapartida, pesquisadores da religião apontaram inconsistências nesta interpretação dos dados.  

Censo 2022: dados e informações divulgados pelo IBGE 

O IBGE divulgou, pela primeira vez, as coordenadas geográficas das espécies de endereços do país, coletadas durante o Censo 2022. Os dados foram detalhados por município e cada espécie corresponde a uma finalidade do endereço. 

Imagem: reprodução do site do IBGE

Ao todo, foram catalogadas oito espécies de endereço: domicílio particular (90,6 milhões), domicílio coletivo (104,5 mil), estabelecimento agropecuário (4,05 milhões), estabelecimento de ensino (264,4 mil), estabelecimento de saúde (247,5 mil), estabelecimento de outras finalidades (11,7 milhões), edificação em construção (3,5 milhões) e estabelecimento religioso (579,8 mil).

Os dados coletados e estruturados pelo IBGE integrarão o Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE), a base de endereços usada no Censo Demográfico, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e na Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS).

As informações foram publicadas pela Agência de Notícias IBGE,  em 2 de fevereiro passado, que divulgou, em matéria jornalística, uma tabela com a distribuição das espécies de endereços por estados e os endereços eletrônicos da Plataforma Geográfica Interativa (PGI) e do panorama do Censo 2022 para consulta dos dados.

Cobertura da imprensa e visão de figuras públicas

Após a divulgação oficial pelo IBGE, diversos veículos da mídia repercutiram os dados, apontando, principalmente em manchetes, a diferença entre o número de estabelecimentos religiosos e o número de estabelecimentos de educação e de saúde.

O jornal Folha de S. Paulo veiculou, já na manhã de 2 de fevereiro, a manchete “Brasil tem mais espaços religiosos do que de educação e saúde juntos, aponta Censo”. O portal G1, por sua vez, publicou: “Brasil tem mais templos religiosos do que hospitais e escolas juntos; Região Norte lidera com 459 para cada 100 mil habitantes”.

Imagem: reprodução Folha de São Paulo

Imagem: reprodução G1

Foi assim, também, com a Revista Exame (“Censo 2022: Brasil tem mais igrejas e templos do que escolas e hospitais somados”), com o portal UOL (“Censo: Brasil tem mais igrejas que soma de escolas e hospitais”) e diversos outros sites. A Agência Brasil, que integra o sistema público de comunicações, também optou por destacar a comparação: “Brasil tem mais estabelecimentos religiosos que escolas e hospitais”.

Imagem: reprodução Exame

Imagem: reprodução UOL

Alguns intelectuais e pensadores brasileiros divulgaram os dados nos mesmos termos, sempre comparando o número de estabelecimentos seculares e religiosos. Em alguns casos, as publicações, em mídias sociais, adotaram tom crítico à configuração de endereços. Em seu perfil no X, o professor e pesquisador do Pietro Dell’ova associa os dados à “multiplicação de stalinistas, bolsonaristas, miseráveis, moribundos, etc.”. A doutora em literatura em língua inglesa e professora da UFC (Universidade Federal do Ceará) Lola Aronovich compartilhou, também, no X, a notícia com o comentário “sinal de atraso”.

Imagem: reprodução X (antigo Twitter)

Imagem: reprodução X (antigo Twitter)

Já a antropóloga Lilia Schwarcz, em seu perfil no Instagram, teceu comentários sobre o dados e comparou o cenário brasileiro com o da Europa ocidental: “Tais dados ajudam a demonstrar como, na prática, como o Brasil, apesar de ser formalmente um estado secular, não é ainda um país pouco secularizado quando comparado a outros, como na Europa ocidental”, escreveu.

Críticas à cobertura enviesada

O teólogo, mestre em filosofia e em religião e sociedade e diretor de programas no Instituto de Estudos da Religião (ISER) Ronilso Pacheco questionou, em seu perfil no X/Twitter, a cobertura dos dados pela imprensa: O Reino Unido tem mais templos que escola e hospitais. A França tem mais igrejas que escolas. Porque esse dado básico está sendo noticiado como surpreendente?” indagou.

Imagem: reprodução X (antigo Twitter)

Em sua crítica à forma como a imprensa tratou os dados do IBGE, Pacheco reflete: “Analistas políticos e comentaristas passaram o dia comentando isso como se fosse razoável achar que para cada templo (não apenas de igreja) que se abre, uma escola e um hospital deixam de ser construídos ou perdem investimento, ou relevância. Além disso, claro, o reforço do estereótipo de que as igrejas crescem porque o estado é ausente. Mais uma vez, vitória da ideia elitista de que as pessoas na periferia só são crentes porque são pobres e não tem assistência do estado, não é mesmo?”.

Em entrevista ao Bereia, o pesquisador no Instituto de Estudos da Religião (ISER) e professor na Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV ECMI) Matheus Pestana também criticou a forma como os dados foram explorados na mídia. “O número de pessoas que acessa um hospital, uma escola, tem interseções com o público que acessa os estabelecimentos religiosos, mas são coisas completamente distintas e incomparáveis. No meu entender, o equívoco está aí. É uma comparação que, para mim, não fez sentido nenhum, nenhum. São estabelecimentos de natureza distinta”, afirmou.

Pestana destaca a importância dos dados compilados pelo IBGE na construção de políticas públicas: “É importante entender que esses dados são bastante valiosos para o poder público no desenho de políticas públicas. São dados que vão delinear a ação do governo, em auxílio à população e à configuração urbana existente (…). Na maioria dos municípios, isso era um dado que não existia. Os dados são ótimos. É louvável a iniciativa do IBGE.”

Mas o pesquisador reforça que o entendimento dos dados “de forma alarmante” é equivocado: “Se tivermos 500 mil igrejas e 300 mil escolas, vamos construir mais 200 mil escolas para equiparar ao número de igrejas? Isso não faz sentido. Isso vai mudar alguma coisa? Efetivamente, não. A gente esquece que o público que vai para a escola também vai para a igreja; o público que vai para a igreja, frequenta hospital; só que em questão de volume, são coisas completamente distintas. Escolas, por exemplo, concentram algumas faixas etárias; igrejas contemplam todo o segmento da sociedade Enfim, não faz sentido”.

O pesquisador e professor também abordou a questão da laicidade, levantada por algumas figuras públicas nas mídias sociais. “Alguns comentaristas disseram que, apesar de o Brasil ser, formalmente, um Estado secular, quando a gente compara com outros países – e o exemplo, claro, vem do Norte global – é um país pouco secularizado porque tem muita igreja. Isso não faz sentido.”

Por fim, Pestana aborda as tendências recentes no que diz respeito ao confessionalismo na população brasileira. Em sua percepção, alguns comentaristas teriam conectado os dados do IBGE com o crescimento de grupos evangélicos no país, algo que não necessariamente seria verdadeiro. 

“Existem estudos que falam do crescimento dos estabelecimentos evangélicos, mas isso é outra coisa, não está sendo pautado [pelos dados recém-divulgados pelo IBGE]. Essa repercussão é bastante curiosa e mostra, de certa forma, um ataque da mídia ao campo religioso e um não entendimento do brasileiro enquanto um povo com uma dinâmica religiosa que a gente tem. Na verdade, isso não tem problema nenhum. Religião é cultura também e é algo importante de ser considerado”, afirma Matheus Pestana

*** 

Após avaliar a cobertura da imprensa e a abordagem amplamente difundida nas mídias sociais sobre os dados do IBGE segmentados por espécies de endereço, Bereia classifica o viés adotado como impreciso. De maneira geral, as notícias e declarações sobre o tema apresentam dados verdadeiros, mas não consideram diferentes perspectivas e não contextualizam o fenômeno religioso no Brasil de modo a justificar a abordagem adotada.

O IBGE não fornece conclusões de qualquer natureza ou mesmo indícios de que os dados expliquem o cenário da religião no Brasil. A abordagem amplamente difundida nos meios digitais de comunicação pode levar o público a julgamentos errôneos sobre determinados grupos, instituições, organizações, associações ou movimentos sociais e constituir fonte de intolerância.

Referências de checagem:

Agência de notícias IBGE. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/39065-ibge-divulga-pela-primeira-vez-as-coordenadas-geograficas-dos-enderecos-do-pais Acesso em: 6 fev 2024

IBGE.

https://censo2022.ibge.gov.br/apps/pgi/#/home Acesso em: 6 fev 2024

https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/ Acesso em 6 fev 2024

X.

https://twitter.com/PietroDellova/status/1753549888506286192 Acesso em: 8 fev 2024

https://twitter.com/lolaescreva/status/1753579851917701239 Acesso em: 8 fev 2024

https://twitter.com/ronilso_pacheco/status/1753537529607819547?t=z75R2aKVWa4SE2p1q2Pt5A&s=19 Acesso em: 7 fev 2024

G1. https://g1.globo.com/economia/censo/noticia/2024/02/02/brasil-tem-mais-templos-religiosos-do-que-hospitais-e-escolas-juntos-regiao-norte-lidera-com-459-para-cada-100-mil-habitantes.ghtml. Acesso em: 7 fev 2024

Exame. https://exame.com/brasil/censo-2022-brasil-tem-mais-igrejas-e-templos-do-que-escolas-e-hospitais-somados/ Acesso em: 7 fev 2024

Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-02/brasil-tem-mais-estabelecimentos-religiosos-que-escolas-e-hospitais Acesso em: 7 fev 2024

UOL. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2024/02/02/censo-brasil-tem-mais-igrejas-que-soma-de-escolas-e-hospitais.htm Acesso em: 7 fev 2024

Pleno News. https://pleno.news/brasil/ibge-brasil-tem-mais-templos-religiosos-que-escolas-e-hospitais.html Acesso em: 8 fev 2024

***

Foto de capa: Eric Gaba/Creative Commons

Médicos desinformam sobre tratamentos pós-Covid e vacinação

* Matéria atualizada às 19:24 para acréscimo de informações

Diversos conteúdos sobre saúde pública repercutiram nas redes digitais nos últimos dias, muitos deles associados ao fenômeno da desinformação. Reportagens apontaram comportamento questionável por parte de médicos supostamente negacionistas, ganhando repercussão nas redes.

Matéria veiculada no portal UOL em 27 de março denunciou a venda de tratamentos de “reversão” e “detox vacinal” por médicos negacionistas. Segundo a reportagem, grupos com a presença de médicos difundem, no Telegram, a existência de “protocolos pós-vacina para desintoxicação”.

Imagem: reprodução Tab/UOL

Promoção de falsos tratamentos médicos

Entre os médicos apontados pelo portal UOL como promotores de tratamentos de “reversão vacinal” está Marcos Falcão, que, segundo reportagem do UOL, chega a cobrar R$ 470,00 para realizar a suposta desintoxicação. O médico teria receitado o medicamento ivermectina, além do uso contínuo e permanente da aspirina com o objetivo de anular os “efeitos nocivos da vacina”.

Com o objetivo de esclarecer as informações veiculadas na imprensa e ouvir o relato do médico acerca das práticas médicas por ele desenvolvidas, Bereia entrou em contato com Marcos Falcão. A resposta ao contato foram insultos, xingamentos e ameaças de processo. Logo após a troca de mensagens, Falcão postou prints dos insultos em seus perfis nas redes digitais, que contam com 73,7 mil seguidores (Instagram) e 80,9 mil seguidores (Twitter).

Imagem: reprodução Instagram
Imagem: reprodução do Twitter

A reportagem do UOL destaca, ainda, a médica e ex-candidata a deputada federal por São Paulo Maria Emilia Gadelha Serra, que também estaria oferecendo uma “terapia de reversão vacinal”, pelo valor de R$1.800,00.

Autointitulada “médica-detetive hardcore com sangue viking” a médica é uma vocal defensora da chamada ozonioterapia, prática criticada pela comunidade científica e restrita, no Brasil, a fins odontológicos e estéticos, segundo determinação na Anvisa.

Em seu perfil na plataforma Instagram, é possível notar, além da retórica antivacina e diversas publicações sobre a ozonioterapia, manifestações políticas com uso de discurso religioso e desinformação acerca do processo eleitoral no Brasil.

Até o fechamento desta checagem, Serra não retornou contato feito por Bereia.

A falácia da reversão vacinal

O Instituto Butantan, centro de pesquisa nas áreas de biologia e biomedicina e maior produtor de vacinas e soros da América Latina, classifica como falsa a existência de tratamentos de reversão para vacinas. Na seção “fato ou fake” do Portal do Butantan encontra-se a informação de que “Os serviços oferecidos por estes médicos não têm embasamento científico e não conferem nenhum benefício ao paciente”.

Especialistas ouvidos pelo UOL, como o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm)Renato Kfouri, alertam para a inexistência de tais tratamentos. Em entrevista à CNN, Kfouri diz que “é um absurdo o que tem sido divulgado, o que tem sido feito, e até cobrado, por médicos inescrupulosos que vendem medidas que não têm nenhum efeito. Além das vacinas serem extremamente seguras, para nenhuma vacina, para nenhuma situação é possível modificar nossa resposta imune ou inibir ou reverter essa resposta imune”.

Marcos Falcão, médico e influenciador

Bastante ativo nas redes digitais, o médico Marcos Falcão define-se como “cristão, médico e conservador” e costuma emitir opiniões contundentes sobre política e saúde. O canal Marcos Falcão no YouTube, mantido pelo médico, aumentou a frequência de publicações no último mês.

O médico já foi, no passado, citado em duas checagens classificadas como “enganosas” pelo Projeto Comprova, iniciativa que reúne veículos de informação brasileiros para descobrir e investigar informações suspeitas sobre política, eleições e a pandemia de covid-19. No primeiro caso, o médico propagava o uso da ivermectina para tratamento da covid-19, prescrição desaconselhada não apenas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), mas também pela Merck, empresa fabricante do produto. No segundo, Falcão indicava a cúrcuma – uma planta de origem asiática – para combater o vírus. Segundo checagem do Projeto Comprova, não há estudos que comprovem a eficácia da planta no tratamento da covid-19.

Nas mídias sociais do médico, é possível encontrar, ainda, a oferta de atestados de contraindicação para vacinas. Falcão repercute conversas com supostos pacientes satisfeitos e diz: “se alguém está lhe obrigando a tomar essa medida contra sua vontade, posso te ajudar”. Em uma imagem, acrescenta: “Já está na hora de marcar sua consulta para cuidar da sua saúde”, divulgando um número de telefone para contato.

O Manual de Publicidade Médica, publicado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) sob a Resolução CFM nº 1.974/11, ao estabelecer critérios para a relação dos médicos com a imprensa, no uso das redes sociais e na participação em eventos, prevê que “é vedado ao médico (…) no uso das redes sociais: a) divulgar endereço e telefone de consultório, clínica ou serviço”.

Em algumas publicações, Falcão diz se apoiar em estudos científicos para sustentar suas posições e que tudo o que faz “tem respaldo do conselho”, em provável referência ao Conselho Federal de Medicina (CFM). Quando procurado por Bereia, porém, oportunidade em que poderia esclarecer seus posicionamentos, o médico parte para ataques pessoais e adota uma tática comum de engajamento nas redes digitais.

Ligado ao fenômeno da extrema-direita brasileira, Marcos Falcão aparece em fotos, nas redes sociais, ao lado de figuras como o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO), obrigado pela Justiça de Goiás a desmentir informações falsas relacionadas à pandemia de covid-19 e o blogueiro católico Bernardo Kuster, que já teve suas redes digitais bloqueadas por incentivo aos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.

Falsa associação entre vacina e câncer

Recentemente, o nome de Falcão voltou a repercutir nas redes devido à insinuação, feita por ele, de que a morte da jogadora de vôlei Paula Borgo, aos 29 anos, teria sido causada por vacina. Em seu grupo no Telegram, Falcão repercutiu a notícia da morte da jogadora com frases elaboradas para confundir os leitores.

Imagem: reprodução Telegram

Com passagem pela Seleção Brasileira de vôlei, Paula Borgo morreu vítima de um câncer no estômago, conforme noticiou o portal Lance!, especializado em esportes. Desde o ano passado, sabia-se que a jogadora lutava contra o tumor no estômago, conforme comunicado oficial do clube Barueri Volleyball Club, por onde Borgo atuava. 

As postagens feitas pelo médico ensejaram novas verificações por parte da imprensa. O projeto Estadão Verifica, do jornal Estadão, publicou, no último dia 16, esclarecimentos sobre a falsa associação entre a vacina de covid e câncer. Na checagem, a infectologista, imunologista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Fernanda Grassi reafirma que “não tem nenhuma plausibilidade biológica para a gente pensar que essa vacina leva ao desenvolvimento de câncer. A gente já tem mais de 100 anos usando vacinas e não foi feita nenhuma associação”.

***

A checagem realizada por Bereia revela desinformação relacionada aos conteúdos divulgados por médicos. É possível encontrar, nas redes sociais de Marcos Falcão, menções negativas à vacinação e falsas associações da covid-19 a outras doenças. Tais posicionamentos não encontram respaldo na comunidade científica ou carecem de embasamento em estudos amplamente aceitos.

Especificamente, é falsa a associação entre vacinas e a doença que levou Paula Borgo a óbito, como Marcos Falcão induz seus interlocutores a acreditar. Não há, igualmente, tratamentos de reversão da reação imune desencadeada por vacinas, sendo falsos tratamentos dessa natureza.

Detecta-se, pelo conteúdo veiculado em plataformas digitais, que há utilização do status profissional de médico, como alguém que domina assuntos técnicos de alta complexidade, para influenciar interlocutores à adesão a determinadas condutas, incompatíveis com o que é amplamente aceito por especialistas.

A estratégia de desinformação trata o fato como algo errado e perigoso, com o intuito de provocar medo e revolta, e desconsidera que a medida também foi tomada pelo governo anterior, apoiado pelos mesmos políticos religiosos. Bereia reitera aos leitores que é sempre importante verificar a origem das informações, mas quando se trata de conteúdos relacionados à saúde, a atenção deve ser redobrada. 

Referências de checagem:

UOL.

https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2023/03/27/medicos-negacionistas-vendem-detox-e-reversao-vacinal-pelo-whatapp.htm Acesso em: 17 mai 2023

ttps://www.uol.com.br/esporte/ultimas-noticias/2022/09/01/jogadora-de-volei-e-afastada-apos-ser-diagnosticada-com-tumor-no-estomago.htm Acesso em: 17 mai 2023

Brasil 247. https://www.brasil247.com/geral/medico-bolsonarista-espalha-que-morte-de-jogadora-de-volei-foi-consequencia-da-vacinacao-contra-a-covid Acesso em: 16 mai 2023

Lance!. https://www.lance.com.br/mais-esportes/grandes-clubes-passagem-pela-europa-e-selecao-a-carreira-de-paula-borgo-jogadora-de-volei-que-morreu-vitima-de-cancer.html Acesso em: 16 mai 2023

Projeto Comprova. https://projetocomprova.com.br/publica%C3%A7%C3%B5es/ao-contrario-do-que-afirma-post-ivermectina-em-altas-doses-pode-causar-ate-convulsao/ Acesso em: 17 mai 2023

SBT. https://www.sbt.com.br/jornalismo/comprova/noticia/174283-enganoso-estudos-nao-comprovam-que-a-curcuma-ajuda-a-combater-a-covid-19 Acesso em: 17 mai 2023

Mídia Caeté. https://midiacaete.com.br/medico-alagoano-oferece-laudos-desobrigando-a-vacinacao-de-pacientes-autoimunes-e-com-doencas-neurodegenerativas/ Acesso em: 16 mai 2023

G1. https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2022/10/04/segundo-candidato-a-deputado-federal-mais-votado-em-go-gustavo-gayer-deve-desmentir-fake-news-ditas-na-pandemia-diz-tj.ghtml Acesso em: 17 mai 2023

Metrópoles. https://www.metropoles.com/brasil/cristaos-extremistas-de-direita-atacam-campanha-da-fraternidade-comunismo Acesso em: 17 mai 2023

Terra. https://www.terra.com.br/diversao/gente/bernardo-kuster-tem-redes-sociais-bloqueadas-apos-decisao-do-stf,277837927c9b7e68c0f0fc5d47a65f02x6jmrphx.html Acesso em: 17 mai 2023

Cremeb. https://www.cremeb.org.br/index.php/noticias/resolucao-cfm-que-define-ozonioterapia-como-pratica-experimental-no-pais-e-publicada-no-diario-oficial/ Acesso em: 17 mai 2023

Youtube/CNN. https://www.youtube.com/watch?v=lL-KL_3RWzk&ab_channel=CNNBrasil Acesso em: 17 mai 2023

Instituto Butantan. https://butantan.gov.br/covid/butantan-tira-duvida/tira-duvida-fato-fake Acesso em: 17 mai 2023

Anvisa. https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2022/ozonioterapia-anvisa-esclarece-as-indicacoes-aprovadas-ate-o-momento/sei_anvisa-1922590-nota-tecnica.pdf Acesso em: 17 mai 2023

Instagram. https://www.instagram.com/p/Ch-eJ0KuJMF/?utm_source=ig_embed&ig_rid=388489e6-c7ed-4151-bbeb-a27190e130e8&ig_mid=C86B61A5-1D9E-47A1-9D53-10AB20C89B66 Acesso em: 18 mai 2023

Merck. https://www.merck.com/news/merck-statement-on-ivermectin-use-during-the-covid-19-pandemic/ Acesso em: 19 mai 2023

Rádio Senado. https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2021/04/05/oms-nao-recomenda-ivermectina-para-tratar-covid-19 Acesso em: 19 mai 2023

***

Imagem de capa: Pixabay

Políticos religiosos repercutem suposto abuso de quantidade de voos pela FAB no início do governo Lula

A deputada federal Carla Zambelli (PL) repercutiu em seu perfil no Twitter  matéria do UOL sobre voos com aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) no governo Lula. No post, além de  um card afirmando que “a mamata voltou”, Zambelli acrescenta que “Além de gastarem mais, segundo levantamento do UOL, a média de passageiros foi menor neste desgoverno”. Sua postagem teve 63,7  mil visualizações e compartilhada em espaços digitais religiosos.

Imagem: reprodução do Twitter

O site evangélico Pleno News também publicou matéria que citou a informação publicada no site UOL e deu destaque para o fato de que os ministros da Infraestrutura e da Cidadania no governo Bolsonaro, Tarcísio de Freitas e Osmar Terra foram os que mais utilizaram aviões da FAB durante o início do governo. Nesta comparação, que durante o atual governo Lula, “Fernando Haddad, ministro da Fazenda e Nísia Trindade, ministra da Saúde, são os atuais ‘campeões’.”

Imagem: reprodução do site Pleno.News

O que diz a matéria do UOL

No texto, o UOL afirma que “a equipe do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) superou a de seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL), em viagens com aeronaves da FAB (Força Aérea Brasileira)”. Segundo o levantamento feito pelo portal de notícias, nos primeiros 40 dias de governo do atual presidente do Brasil, foram realizados 89 voos com aviões da FAB , o que representa 46% a mais do que a gestão do ex-presidente, que, nos primeiros 40 dias de 2019, utilizou as aeronaves em 61 viagens.

A assessoria do ministro da Fazenda Fernando Haddad, respondeu ao site UOL e explicou “que as viagens a São Paulo se justificam pelo fato de haver escritório do Ministério da Fazenda na cidade, o maior centro financeiro da América Latina”. Também em resposta ao site, a ministra da Saúde Nísia Trindade disse “que as viagens ao Rio eram necessárias porque é o estado que mais possui unidades de saúde vinculadas ao ministério”.  Os ministros Haddad e Nísia, e o atual governador do estado de São Paulo Tarcísio de Freitas, disseram ao UOL que respeitam o decreto que regula voos da FAB.

Legislação que regula voos da FAB

De acordo com matéria publicada pelo UOL “desde 1999, decretos regulam o uso de voos da FAB por autoridades, ministros, comandantes de Forças Armadas e presidentes de Casas do Congresso e do Supremo Tribunal Federal”. Em 2020 o ex-presidente Jair Bolsonaro sancionou novo decreto que manteve a permissão do uso de voos da FAB por motivos de emergência médica, de segurança e a serviço e o voo deve ser compartilhado “sempre que possível” quando o intervalo entre os voos para o mesmo destino for “inferior a duas horas”. Para alegar necessidade de segurança, é preciso uma “justificativa que fundamente a necessidade”, afirma a regra. Segundo o site UOL, o decreto 10.267 de 05/03/2020, editado por Jair Bolsonaro, “ainda diz que essa justificativa é presumida quando os viajantes são os presidentes das Casas do Congresso e do Supremo e se dirijam a ‘local de residência permanente’.”

Também a matéria do UOL diz que “a versão anterior do decreto, baixada por Dilma Rousseff em 2015, proibia o trajeto para residência dos ministros. O texto foi revogado por Bolsonaro. Agora, o decreto estabelece que o registro em agenda oficial é a comprovação de que a viagem é para serviço”, informa o site.

Motivos para a realização dos voos

Para uma informação corretamente oferecida ao público, pelo UOL e por quem repercute o conteúdo, é preciso levantar, na avaliação dos números de voos da FAB,os respectivos propósitos para as viagens.

Bereia oferece como exemplo, a tragédia humanitária sofrida pelo povo Yanomami, que demandou ações emergenciais  durante o primeiro mês do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. As ações resultaram em mais de 1.200 horas de voos da FAB para o território indígena conforme relatório da instituição divulgado em 4 de março deste ano. Além de levar autoridades e agentes públicos para atuarem no local, “a Força  Aérea Brasileira (FAB) já entregou mais de 400 toneladas de mantimentos e medicamentos à população da Terra Indigena Yanomami em um mês de operação da instituição no território […] O transporte de suprimentos faz parte de uma das frentes de atuação das Forças Armadas na crise sanitária no território. As entregas tem sido feitas pelo Comando Operacional Conjunto Amazônia (Cmdo Op Cj Amz).”

Imagem: Divulgação Ministério da Defesa

Por outro lado, no final de fevereiro de 2023, a imprensa publicou denúncia sobre utilização de um voo da FAB, pelo ministro das Comunicações Juscelino Filho, do atual governo, para participar de um leilão de cavalos. A denúncia foi recebida pela Presidência da República.

Na linha da comparação proposta pelo UOL e repercutida nas mídias religiosas,  há exemplos no final do primeiro ano do governo Bolsonaro. De um lado, a tentativa de regular a prática das viagens com a FAB para evitar excessos. De outro, casos como o do secretário-executivo da Casa Civil Vicente Santini, exonerado por ter utilizado um voo da FAB com somente três passageiros para ir de Brasília à Suíça, e, em seguida, à Índia. Outros casos críticos ocorreram nos anos seguintes, como viagens de autoridades com um passageiro apenas para trajetos nacionais, transporte de cocaína e uso para campanha de reeleição do então presidente e de ministros, culminando com a viagem de Bolsonaro para os Estados Unidos, sem agenda pública, após entregar o cargo, tendo perdido as eleições.

***

Bereia avalia como IMPRECISA a notícia que o governo Lula usou voos da FAB quase 50 por cento a mais do que o ex-governo Bolsonaro em seus primeiros 40 dias de trabalho. A notícia do site UOL repercutida por políticos religiosos, em crítica ao atual governo, checada oferece conteúdo verdadeiro, com base em números, mas não contextualiza as demandas em que geraram a quantidade de voos da FAB. Isto pode levar o público a julgamentos errôneos sobre o uso de recursos governamentais do Poder Executivo. É desinformação e necessita de complementações e contextualização.

Referências de checagem:

UOL.

https://cultura.uol.com.br/noticias/56675_aviao-da-fab-transportou-mais-de-400-toneladas-de-mantimentos-para-a-terra-yanomami.html. Acesso em 17 mar 2023

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/03/08/gastos-voo-fab-lula-bolsonaro-ranking-ministros-farra-passagens.htm?fbclid=IwAR0TaYqzHrdzziQMNcHaK02TmwL83jiMmQ-ZPwbGSMif-MsPLWXgn8qn358&cmpid=copiaecola . Acesso em 17 mar 2023

YOUTUBE. https://www.youtube.com/watch?v=8dy6cm0bMZQ. Acesso em 17 mar 2023


PLANALTO. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10267.htm. Acesso em 17 mar 2023

PLENO NEWS. https://pleno.news/brasil/politica-nacional/governo-lula-supera-em-50-gestao-bolsonaro-em-voos-da-fab.html. Acesso em 17 mar 2023

FORÇA ÁEREA BRASILEIRA.

https://www.fab.mil.br/noticias/mostra/40438/OPERA%C3%87%C3%83O%20YANOMAMI%20%20-%20Comando%20Operacional%20Conjunto%20Amaz%C3%B4nia%20divulga%20balan%C3%A7o%20de%2030%20dias%20de%20opera%C3%A7%C3%A3o Acesso em 23 mar 2023

https://www.fab.mil.br/noticias/tag/YANOMAMI Acesso em 23 mar 2023

ESTADÃO. https://www.estadao.com.br/politica/ministro-de-lula-usou-voo-da-fab-e-diarias-para-ir-a-leilao-de-cavalos-de-raca/ Acesso em 23 mar 2023

EXAME. https://exame.com/brasil/viagem-de-bolsonaro-sem-agenda-publica-para-florida-custou-ao-menos-r-110-mil-aos-cofres-publicos/ Acesso em 23 mar 2023

METROPOLES. https://www.metropoles.com/colunas/rodrigo-rangel/os-voos-de-campanha-de-bolsonaro-que-a-fab-nao-cobrou?amp Acesso em 23 mar 2023

CONGRESSO EM FOCO. https://congressoemfoco.uol.com.br/amp/area/governo/autoridades-planejaram-64-voos-da-fab-com-no-maximo-3-passageiros-em-2019/ Acesso em 23 mar 2023

AGÊNCIA BRASIL. https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/politica/audio/2023-03/lula-vai-ouvir-ministro-das-comunicacoes-sobre-uso-de-aviao-da-fab%3famp Acesso em 23 mar 2023

***

Foto de capa: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Postagem engana com vídeo de pastor fazendo oração por traficantes

Um vídeo que mostra traficantes interrompendo um culto em uma igreja evangélica no Rio de Janeiro para pedirem uma oração antes de saírem para um confronto armado, viralizou em mídias sociais na terça, 5 de julho, e se transformou em notícia até mesmo de grande mídia local.

Imagem: reprodução do Instagram

Imagem: reprodução do jornal O DIA

Alguns perfis e a matéria do jornal O Dia basearam-se em informação da página carioca de mídias sociais “Alerta Informes Rio”. Em publicação, a página dizia que “a filmagem, segundo fontes da polícia, ocorreu na quinta-feira, dia 30 [de junho], na comunidade INPS, na Ilha do Governador, Zona Norte do Rio. O Portal Procurados também confirmou a informação”. 

Imagem: reprodução do Instagram
Imagem: reprodução do Instagram

Após o alto alcance do vídeo e dos inúmeros comentários sobre a relação entre igrejas e o tráfico de drogas, vários deles de cunho preconceituoso e depreciativo de igrejas evangélicas em geral, lideranças de uma pequena igreja evangélica no Morro do Borel (bairro da Tijuca, no Rio) tornaram público o teor da publicação: era uma encenação. 

Uma peça de teatro religiosa

Como é muito comum em igrejas evangélicas, peças são encenadas em cultos para oferecer uma mensagem, um ensino, relacionados à dinâmica da vida, da própria igreja. É muito comum temas como processos de conversão, a volta de Jesus e o Juízo Final, histórias da “igreja perseguida pelo mundo”, por exemplo. Da mesma forma, para comemorar o Dia do Pastor, em 12 de junho, integrantes do Ministério Tempo de Avivar apresentaram uma peça teatral em que dois traficantes (personagem presente no cotidiano de uma comunidade periférica) pediam oração para atuarem em um confronto violento, mas ao final se convertiam ao Evangelho.

A história foi esclarecida pela pastora presidente do Ministério, Isa Cruz, em depoimento ao repórter Igor Melo, do UOL Notícias. Ela disse que o pastor que aparece nas imagens é seu marido, Alan Mendes, também presidente da igreja.   A pastora contou ao repórter que não faz muito uso de mídias sociais, mas acabou tomando conhecimento da repercussão do caso. “A todo momento me mandam o vídeo.” Ela explicou que a congregação não se preocupou com a divulgação das imagens: “Ficamos tranquilos, porque realmente foi uma peça e acho que não foi [divulgado] o vídeo todo”.

O pastor Alan Mendes explicou ao UOL Notícias que a arma exibida no vídeo era de paintball. A pastora admitiu que em sua igreja já houve casos de traficantes que se converteram e largaram o crime e a peça estaria refletindo esta realidade. “A nossa igreja é aberta. Nós não impedimos ninguém de entrar na igreja para receber a palavra de Deus. Temos alguns convertidos que antes foram ex-prostitutas, ex-traficantes. Quando [a pessoa] entra na igreja, na presença de Deus, sua vida é mudada”, disse Isa Cruz à reportagem.

Já o jornal O Globo, publicou o esclarecimento dado pela pessoa que publicou o vídeo. Trata-se do mestre de obras, que é influenciador digital, Rondinele dos Santos, conhecido como Nelinho do Borel. Ele relatou a mesma história contada ao UOL pela pastora Isa Cruz e seu marido pastor Alan Mendes. Com mais de 50 mil seguidores, Nelinho do Borel afirma que postou o vídeo no TikTok com a intenção de mostrar como a igreja atua dentro das comunidades.

Apesar da boa intenção, o influenciador digital teve problemas com a publicação. “A igreja está lá para orar por todo mundo, independente do que a pessoa faz. Eu não achei que iriam apagar meu vídeo. Na primeira vez que publiquei, ele teve 12 milhões de visualizações. Deletaram meu vídeo e eu postei de novo, achando que tinha dado algum erro. Na terceira vez, bloquearam minha conta”, contou Nelinho do Borel à repórter Kathlen Barbosa, de O Globo. Segundo ele, na legenda do vídeo constava a informação de que se tratava de uma peça de teatro, porém desconfia que a plataforma tenha apagado o conteúdo por conta de denúncias de outros usuários.

Nelinho do Borel confirmou o que disse o pastor Alan Mendes, que a encenação usou armas de paintball, e que os personagens que aparecem no vídeo são todos membros da igreja.

A vida como ela é

O conteúdo que fez o vídeo viralizar é enganoso, pois não é um fato ocorrido, mas sim uma encenação. Entretanto, elementos contidos na narrativa que deu forma à representação dos membros da igreja, no Dia do Pastor, são uma realidade presente no cotidiano de muitas igrejas em favelas de grandes cidades do Brasil.

É uma realidade que tem se tornado muito evidente pelo noticiário e acaba sendo julgada e, boa parte das vezes, condenada por pessoas que vivem em bairros das cidades do Brasil e que desconhecem o cotidiano destas comunidades. Por isso, o trabalho de pesquisadoras como a professora da Universidade Federal Fluminense e do Instituto de Estudos da Religião Christina Vital é muito relevante. Ela é autora do livro “Oração de Traficante: uma etnografia (Rio de Janeiro: Garamond, 2015), resultado de pesquisa de campo, como antropóloga, nas favelas de Acari e Santa Marta, no Rio.

Há os casos de traficantes que participam das igrejas e se convertem, e mudam de vida, como relata a pastora Isa Cruz, e há os que não mudam, acomodam as duas identidades, a do tráfico e a religiosa. Por isso a professora Christina Vital afirma que “não se trata de pensarmos esta relação, esta aproximação entre criminosos e redes e códigos evangélicos a partir da ótica da conversão, de uma transformação da vida do indivíduo, mas de uma composição específica que envolve expectativas de transformação, apelos morais, conexão com narrativas locais e uso de uma religião como ícone de dominação. Assim, a religião seria mais uma forma de demonstrar poder”.

A professora ressalta que a intensificação da relação entre igrejas evangélicas e dirigentes do tráfico é mais um sintoma do crescimento evangélico que vem ocorrendo como um todo no Brasil, especialmente nas periferias. Esta presença evangélica se dá pela escuta, pela aproximação e pelas relações de confiança que se estabelecem no que pode ser lido como um vazio nas relações com outras instituições e organizações, como o próprio Estado. “Não acho correto dizermos que a Igreja cresce onde o Estado não está presente. O Estado está presente nessas localidades, mas de modo precário, reforçando sentimentos de desconfiança, elemento corrosivo da vida social”, afirma Christina Vital.

A pesquisadora reconhece a questão da intolerância religiosa que se agrava com esta nova realidade: 

“Há um contexto sociopolítico muito desfavorável à presença de religiosos de matriz africana. Isso nas favelas se tornou mais intenso porque é um local com uma densidade demográfica muito grande, onde esses rituais têm um tipo de sonoridade em que é impossível realizar as celebrações em segredo. Esses vários terreiros que existiam nas favelas foram para a Zona Norte ou para a Baixada Fluminense. Uma mãe de santo falou que esse êxodo se dá em parte pela intolerância religiosa e em parte pelo aumento da violência nas favelas, o que pôde ser percebido no trabalho de campo em Acari desde a década de 1990. O crescimento do tráfico e o superarmamento do tráfico traziam uma condição muito instável para os moradores e para os filhos de santo que iam à favela.

Ainda na década de 1990 houve a “gratificação faroeste”, em que vimos a violência crescer no estado e na cidade do Rio de Janeiro. Resumindo, há duas ocorrências. O movimento da intolerância religiosa praticada por moradores e a questão que diz respeito à violência estrutural, que se apresenta deste modo em razão do crescimento do tráfico e que dificulta a ida dos filhos de santo para a favela”.

O tráfico e as igrejas

Sobre o caso específico da gravação da encenação pelo Ministério Tempo de Avivar, Bereia ouviu a mestre em Ciências da Religião, do Instituto de Estudos da Religião  (ISER), Viviane Costa, que é pastora pentecostal, da Igreja Assembleia de Deus. Ela explica que em favelas em que há a presença de traficantes que se identificam como evangélicos (e faz sentido o caso do Morro do Borel, pois está neste contexto), há igrejas que acabam participando da dinâmica em torno desta realidade, o que não quer dizer que tenham associação com o tráfico. 

“Quando um traficante pede para o pastor fazer uma oração, porque ele vai para um enfrentamento, para um confronto, ou para se defender ou para lutar por um novo território, ou eles “convidam” o pastor para ir até a boca de fumo ou eles vão até a igreja e pedem oração, ou ainda um pastor passando pela rua é chamado e ora por eles. Isto é diferente daquela outra oração que o pastor faz como um apelo à conversão, por exemplo. A primeira seria uma oração voltada para uma dinâmica de guerra do tráfico, o que faz parte deste contexto representado na peça”, explica Viviane Costa.

A pastora e pesquisadora ressalta que

“De qualquer forma, esta participação do pastor em oração representada na peça não representaria uma necessária associação dele com o tráfico de drogas, até porque se ele está dentro de um território dominando pelo movimento, ele não tem muita liberdade para dizer ‘não quero orar por você. Há aqueles, sim, que se envolvem com o movimento, fazem parte dele, recebem dinheiro, verba desviada, tem festas patrocinadas pelo movimento, mas há pastores nestes locais que só tem aproximação com o pessoal do tráfico quando é para fazer oração, para cumprir algum compromisso mais ministerial. Nestes casos eles mantêm um distanciamento, uma blindagem. A professora Christina Vital chama isto de blindagem moral. Eles têm a prática do bom testemunho porque, ao não se envolverem, eles continuam a manter a postura e a autoridade de um pastor sério, homem de Deus, reconhecido pela comunidade e pelo tráfico de drogas também”.

Retificação nas mídias

No mesmo dia em que publicou ser verdadeiro o vídeo com a oração, a página Alerta Rio Informa no Instagram apagou a postagem e publicou uma nova em que afirma ser o caso uma história “Fake”. Nela, o grupo reproduz trechos publicados pelo projeto de fact-checking Fato ou Fake, do Portal G1, sobre o caso, sem dar o devido crédito.

Imagem: reprodução do Instagram

O jornal O Dia também publicou matéria que informa que o vídeo é uma peça de teatro. 

Imagem: reprodução do jornal O Dia

***

Bereia classifica as postagens e matérias que divulgaram um vídeo com traficantes recebendo oração antes de um confronto violento como enganosas. O vídeo é verdadeiro, mas é a gravação de uma encenação, uma peça de teatro comum em igrejas evangélicas para a transmissão de uma mensagem. Bereia alerta leitores e leitoras para conteúdos desta natureza que em nada contribuem para a reflexão sobre a complexa dinâmica da presença evangélica no Brasil e acabam por alimentar preconceito e intolerância. 

Referências de checagem:

UOL. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/07/05/video-de-traficante-em-igreja-no-rio-e-peca-de-teatro-dizem-pastores.htm Acesso em: 06 jul 2022

Instituto Humanitas Unisinos. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/606272-a-religiao-como-simbolo-de-dominacao-nas-periferias-entrevista-especial-com-christina-vital Acesso em: 06 jul 2022

G1. https://g1.globo.com/fato-ou-fake/post/2022/07/05/e-fake-video-que-mostra-traficantes-armados-pedindo-oracao-em-igreja-no-rio.ghtml Acesso em: 06 jul 2022

O que é a bancada evangélica?

Esse foi o principal questionamento da reportagem do UOL Notícias na qual o Bereia foi ouvido. Por vezes encarada como um bloco homogêneo, a apuração mostrou que não é bem assim.  Nossa editora-geral, Magali Cunha, explicou:  “É importante para as disputas políticas que a bancada seja vista como um grupo homogêneo, articulado, fechado. Isso não é verdade. São diversos partidos e não só partidos, ali há diversas igrejas e dentro dessas igrejas há também disputas internas entre grupos”.

Leia a matéria completa aqui.

Bereia é destaque no jornal O Estado de S.Paulo

O surgimento e o trabalho do coletivo Bereia foi tema de reportagem da edição de hoje do jornal O Estado de São Paulo. Nossa editora-geral Magali Cunha foi entrevistada e discorreu sobre o perfil diverso da equipe, a metodologia de checagem que junta jornalismo e pesquisa em religião, que tem sido compartilhada no meio religioso para combater a desinformação. Leia um trecho:

“O coletivo é o primeiro especializado em fact-checking religioso. Ao que se sabe, segundo Sérgio Lüdtke, editor do Projeto Comprova, é também o único projeto assim no mundo. O diferencial do Bereia não para por aí. Magali relatou que, após pesquisar o modus operandi de agências de checagem no Brasil e no exterior, o grupo criou sua própria metodologia “que junta jornalismo especializado em religião com fact-checking e com pesquisa voltada para a temática da religião no Brasil”

A reportagem completa pode ser acessada no Estadão, mas também foi distribuída no UOL, na IstoÉDinheiro, no Zero Hora, e no Jornal de Brasília.

***

Foto de capa: Wilton Junior/Estadão