Eleições 2024: as principais mentiras circulantes na reta final do segundo turno em três capitais

Na reta final das eleições municipais de 2024, a disseminação de informações falsas se intensificou, o que levanta reflexões para garantir a integridade de futuros processos eleitorais. Bereia checou o que circulou em ambientes digitais religiosos – tanto em mídias de notícias, perfis em mídias sociais e em grupos de WhatsApp. Foi verificado que, em Belo Horizonte, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL) fez graves acusações contra o prefeito reeleito Fuad Noman (PSD), associando-o a conteúdos impróprios, o que levou a uma decisão judicial que determinou a remoção de um vídeo do parlamentar em campanha pelo oponente, Bruno Engler (PL), considerado enganoso. 

Em Fortaleza, alegações falsas sobre a substituição de urnas eletrônicas e a manipulação de áudios que envolveram compra de votos também circularam. Este cenário se agravou em São Paulo, onde mentiras sobre o apoio controverso a candidatos e promessas inexistentes permearam as redes digitais, o que evidencia a urgência de checagens rigorosas para combater as mentiras que podem influenciar a escolha dos eleitores.

Pânico moral disseminado em Belo Horizonte

O deputado federal de identidade evangélica Nikolas Ferreira (PL) divulgou, em seus perfis das redes digitais, em 24 de outubro, um vídeo com acusações ao prefeito candidato à reeleição de Belo Horizonte Fuad Noman (PSD). Na gravação, o parlamentar associa um livro escrito por Fuad a conteúdos de pornografia com “trechos explicitos de sexo que narram o estrupo de uma criança de 12 anos”. 

No vídeo, Nikolas Ferreira também criticou a realização do já tradicional 12° Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte, e afirmou que o evento expõe crianças e adolescentes a material inapropriado. “O problema é quando a ficção vira realidade e, pior, chega até seu filho. Em maio deste ano, 2024, na gestão de Fuad, a prefeitura ajudou a realizar o evento”, declarou o deputado, ao insinuar a relação da prefeitura na divulgação de conteúdos inadequados no evento.

Para reforçar o ataque, o deputado recupera a antiga desinformação sobre a suposta distribuição de um “kit gay” pelo governo da presidente Dilma Rousseff  e afirma que escolas distribuem obras “que ensinam sobre a linguagem neutra e abordam a virgindade apenas como uma lenda para controle”. 

O livro criticado por Nikolas Ferreira, de autoria do candidato à reeleição à Prefeitura de Belo Horizonte Fuad Noman, é intitulado Cobiça. Na obra, é contada a história de Sueli em uma viagem ao interior de Minas Gerais, onde ela revive memórias familiares e descobre segredos do seu passado. O livro foi publicado em 30 de junho de 2020 e aborda a ganância humana e suas consequências sociais e políticas. O texto explora como o desejo insaciável por poder e recursos pode corromper indivíduos e instituições, gerando impactos negativos na sociedade.

Durante uma entrevista gravada para o Estado de Minas, Fuad Noman defendeu-se das acusações de Nikolas Ferreira, e afirmou que a divulgação de informações sobre o livro de ficção foi uma tentativa de desqualificá-lo. “Pegaram um livro de ficção, inventaram uma porção de coisa (…) ou leram outro livro, porque o meu livro não fala aquilo que eles tavam falando, mas livro é uma ficção, livro é um romance (…) então isso aí é desespero de quem não tem o que o apresentar, é desespero de quem não conseguiu descobrir nada que afete minha vida. Eu tenho 56 anos de vida pública, 77 anos de idade, minha vida é limpa, clara, transparente, sem nenhum escândalo, sem nenhum momento de nada, sem nenhuma corrupção, então ‘ah vou arrumar um escândalo’ ‘ah, vou inventar, inventaram o livro’”.

Imagem: reprodução/Instagram

Sobre a antiga desinformação sobre “kit gay”, desde 2019 Bereia tem checado o uso do termo, usualmente empregado por políticos ultraconservadores. Ele surgiu como um apelido dado por deputados federais ao material resultante da campanha “Brasil sem Homofobia”, lançada durante governo primeiro governo Lula (em 2004), aprovada no Congresso Nacional. 

O material direcionado a escolas, finalizado em 2011, seria dirigido aos professores e não a crianças e adolescentes. A cartilha explicava conceitos como gênero e sexualidade e sugeria atividades em sala de aula para os alunos refletirem sobre temas como comportamento preconceituoso e analisarem, por exemplo, expressões sexistas na língua portuguesa. Também havia sugestão de materiais audiovisuais para a sala de aula. Organizado por profissionais de educação, gestores e representantes da sociedade civil, o material era composto de um caderno, uma série de seis boletins, cartaz, cartas de apresentação para os gestores e educadores e três vídeos. A pressão dos deputados da base ultraconservadora na Câmara forçou o governo de Dilma Rousseff a suspender a distribuição. 

Desde as eleições de 2018, o caso tem sido usado com discurso enganoso, para criar pânico moral contra candidatos alinhados à esquerda. Afirma-se que o material foi distribuído em escolas para crianças, a fim de propagar uma “ditadura gay”.

A Justiça Eleitoral de Belo Horizonte determinou a remoção do vídeo de Nikolas Ferreira, em 25 de outubro. A decisão respondeu a um pedido de direito de resposta da Coligação BH Sempre em Frente. O juiz da 331ª Zona Eleitoral alegou que o conteúdo continha informações descontextualizadas e inverídicas, com a intenção clara de prejudicar a imagem do candidato. O magistrado esclareceu que o livro em questão, Cobiça, é uma obra de ficção e que o trecho utilizado por Nikolas foi retirado de seu contexto original, que não indica  apoio à violência sexual. 

Quanto ao festival de quadrinhos, a decisão ressaltou que as atividades com alunos da rede municipal foram realizadas sob supervisão pedagógica e que medidas foram implementadas para garantir a adequação do material exposto. A Justiça estabeleceu um prazo de 24 horas para a remoção do vídeo, sob pena de multa de R$ 5 mil por hora de descumprimento. Também foi garantido que a discussão da obra literária não seria censurada, mas a distorção de informações para fins eleitorais seria considerada propaganda disfarçada. A decisão visou combater a propagação de informações inverídicas. As plataformas Meta, X e YouTube também foram notificadas para excluir as publicações.

Em 27 de outubro, Fuad Noman foi reeleito prefeito de Belo Horizonte, com 53,73% dos votos válidos, o que equivale a 670.574 votos, enquanto seu adversário, Bruno Engler (PL), recebeu 577.537 votos, equivalente a 46,27%.

As três falsidades que agitaram a reta final do segundo turno em Fortaleza 

Candidato do PL acusa adversário por uso de IA 

Desinformação que circulou uma semana antes do segundo turno em Fortaleza (CE)  estava em um áudio disseminado em grupos e páginas favoráveis ao candidato de identidade católica Evandro Leitão (PT). Nele, uma voz semelhante à do candidato opositor, o de identidade evangélica André Fernandes (PL), sugere a compra de votos. Em resposta, Fernandes solicitou ao Ministério Público Eleitoral do Ceará e à Polícia Federal a abertura de um inquérito contra seu adversário e mais três pessoas. O candidato alegou que a campanha de Leitão disseminou “conteúdo sabidamente falso e alterado mediante emprego ardiloso de inteligência artificial”.

No áudio, que o candidato do PL afirma ser uma deepfake (técnica que utiliza inteligência artificial para criar vídeos ou áudios falsos, nos quais a imagem ou a voz de uma pessoa é manipulada), é dito: “Daqui pra domingo é derramar dinheiro na mão de pastor, líder comunitário, o que tiver”. Evandro Leitão negou qualquer envolvimento na disseminação do conteúdo e respondeu às acusações, por meio de um vídeo publicado em seu perfil no Instagram, alegando ser André Fernandes o “rei das fake news”, já tendo sido condenado por isto.

Imagem: reprodução/Instagram 

Os advogados de Fernandes apresentaram duas evidências para sustentar a responsabilidade de Leitão na produção do suposto áudio falso: a primeira é que o conteúdo foi inicialmente publicado em um grupo administrado pela campanha do candidato do PT, denominado Zap de Evandro #4; a segunda é que o áudio foi compartilhado no Instagram por um filiado do PT da cidade de Eusébio (CE). Porém, não foram apresentadas provas substanciais que comprovem que o áudio foi gerado por inteligência artificial. Além disso, não foram realizadas perícias sobre o áudio em questão.

Vídeo enganoso distorce reportagens para associar políticos do Ceará ao PCC

Outro conteúdo enganoso que circulou nas redes durante a reta final para o segundo turno em Fortaleza, foi um vídeo manipulado que utiliza imagens do programa Domingo Espetacular, da TV Record, para disseminar uma informação falsa. O conteúdo editado mostra imagens do apresentador Sérgio Aguiar e inclui um texto fictício que liga políticos associados ao governador Elmano de Freitas (PT) à facção criminosa de São Paulo, o Primeiro Comando da Capital (PCC). A TV Record afirmou, em nota, que o vídeo é uma “manipulação digital” e que as informações nele contidas não foram exibidas em qualquer telejornal do canal.

O vídeo é nitidamente uma montagem: começa com conteúdo original do programa, mas apresenta cortes de áudio e imagem logo aos três segundos. A narração utilizada pertence a matéria, veiculada pela emissora em 2021,  sobre policiais civis e militares flagrados na prática de extorsão de traficantes. Diferente do vídeo falso, que sugere ligações com o PCC, a matéria original mostra a operação policial denominada Gênesis, e não menciona participação da Polícia Federal, como indicado no vídeo manipulado. Além disso, as marcas d’água da emissora desaparecem no terceiro segundo no vídeo falso. As imagens exibidas são diferentes das que constam na reportagem original da TV Record, que mostra gravações de entrevistas e mantém a logomarca da emissora. 

O conteúdo usa principalmente imagens estáticas, e incluem reproduções de portais da internet e fotos, o que é característico das montagens falsas. Além disso, apresenta uma única imagem em movimento da TV Bandeirantes, com sua marca d’água e logotipo. A narração do vídeo manipulado continua utilizando a imagem do apresentador do Domingo Espetacular Sergio Aguiar. 

Mentiras sobre manipulação de urnas eletrônicas no segundo turno 

Conteúdo que acusou a substituição de mais de mil urnas eletrônicas que retiraram votos de André Fernandes foi divulgado por apoiadores do candidato, que foi derrotado por Evandro Leitão. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) relatou, no entanto, que das 5.274 urnas utilizadas no segundo turno em Fortaleza, somente três foram substituídas. A Corte informou, ainda, que nenhum voto computado foi perdido, pois os equipamentos possuem mecanismos de contingência que garantem a preservação dos votos. Dessa forma, é falso que mais de mil urnas tenham sido trocadas

Evandro Leitão (PT) venceu as eleições com 50,38% dos votos válidos, enquanto André Fernandes obteve 49,62%, uma diferença de 10.838 votos. 

São Paulo: campanha final pela reeleição de Ricardo Nunes (MDB) é marcada por disseminação de conteúdo falso 

Avaliado por analistas como o caso mais grave de disseminação de mentira em campanha nas eleições de 2024,  a declaração do governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos), em 27 de outubro, no dia das eleições para o segundo turno na capital do estado, gerou muitas reações. Freitas disse em entrevista, sem apresentar provas, que interceptações do serviço de inteligência do estado revelaram que membros de uma facção criminosa orientaram pessoas a votar em Guilherme Boulos (PSOL) para a Prefeitura de São Paulo. 

A informação já havia sido publicada na véspera das eleições, noite de sábado, 26 de outubro, em matéria do Metrópoles, que afirmava que a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo teria interceptado, no mês de setembro, ao menos quatro bilhetes de membros da facção que orientavam voto na chapa do PSOL. “A Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo interceptou pelo menos cinco comunicados assinados por membros do Primeiro Comando da Capital (PCC) orientando o voto da facção nas cidades, na capital paulista e em Santos. No ‘Salve das Eleições’, as ordens são destinadas a familiares, amigos e outros membros da facção”. No dia seguinte, o governador confirmou o fato à imprensa.

O Tribunal Regional Eleitoral (TRE-SP) informou que não recebeu qualquer relatório sobre o tema e que soube do assunto por meio da imprensa, enquanto a Secretaria de Segurança Pública confirmou que mensagens atribuídas a uma facção criminosa foram interceptadas, sugerindo a escolha de candidatos em várias cidades, inclusive São Paulo. Em defesa, Boulos publicou um vídeo no Instagram, no qual negou qualquer vínculo com o PCC e anunciou que entraria na Justiça para solicitar a cassação de Tarcísio e a inelegibilidade do candidato de identidade católica Ricardo Nunes (MDB), beneficiário da divulgação deste tipo de acusação no dia das eleições.

Imagem: reprodução/Instagram

O secretário nacional de Segurança Pública Mario Sarrubbo contradisse a afirmação de Tarcísio de Freitas, e informou que não houve, entre as investigações relacionadas às eleições, detecção de recomendações de facções para apoiar candidatos durante o segundo turno. Boulos protocolou uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije) na 1ª Zona Eleitoral, com a alegação de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. O processo registrado é o de número 0601230-56.2024.6.26.0001. Ricardo Nunes conquistou a reeleição para o cargo de prefeito de São Paulo, com 59,35% dos votos válidos. Guilherme Boulos (PSOL) recebeu 40,65% dos votos. 

Houve, ainda, a propagação de outros conteúdos desinformativos nos últimos dias da campanha para a Prefeitura de São Paulo.

Apoio de  Pablo Marçal (PRTB) a Boulos 

Às vésperas do segundo turno para a eleição à Prefeitura de São Paulo, circulou nas redes conteúdo que afirmava que o candidato derrotado no primeiro turno, Pablo Marçal (PRTB), terceiro colocado, teria declarado apoio a Guilherme Boulos. Não foram identificados registros públicos de que Marçal tivesse manifestado tal apoio

Em entrevista em 25 de outubro, ele afirmou que pretendia anular o voto. As publicações enganosas, que acumularam 150 mil visualizações no TikTok e também circulam no Kwai, afirmaram incorretamente que Marçal apoiaria Boulos. Além disso, essas peças manipulam uma imagem de uma coletiva de imprensa, realizada em 8 de outubro, apresentando-a como um momento de apoio, o que não ocorreu. 

Implantação de linguagem neutra nas escolas por Guilherme Boulos 

Circulou também um conteúdo baseado em pânico moral, que alegava que Guilherme Boulos havia prometido implementar a linguagem neutra nas escolas municipais de São Paulo, caso fosse eleito prefeito. No entanto, tal projeto não consta em seu plano de governo nem em seus discursos, e o próprio candidato desmentiu essa informação durante a campanha. 

A assessoria de Boulos esclareceu que ele “não vai adotar linguagem neutra na rede municipal de ensino, nem nunca propôs algo semelhante”, conforme consta no programa de governo apresentado ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O plano incluiu ações para combater a violência e discriminação, expandir programas de apoio à comunidade LGBTQIA+ e melhorar o atendimento à saúde, mas não menciona a adoção da linguagem neutra.

Proposta de taxa para o enterramento de fios feita por Nunes em 2023 nunca foi colocada em prática

Ao final da campanha do segundo turno em São Paulo, a cidade foi atingida por uma forte tempestade que causou queda de árvores, danificou fiação elétrica e prejudicou o fornecimento de energia. O episódio gerou críticas e denúncias contra o atual prefeito, então em campanha pela reeleição Ricardo Nunes de descaso em relação à falta de poda das árvores e à infraestrutura urbana. 

Em meio à crise, o prefeito Ricardo Nunes fez declarações sobre um projeto de aterramento dos fios, e mencionou  uma possível contribuição voluntária de moradores interessados na melhoria. No entanto, emergiram informações que alegam que o prefeito havia sugerido a criação de uma taxa obrigatória na conta de luz para financiar esse projeto. Nunes desmentiu a informação, e esclareceu que a contribuição seria opcional, não obrigatória, e que em “hipótese nenhuma” haveria cobrança compulsória, conforme reafirmado após a repercussão negativa.

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É observada a consolidação do uso de desinformação como estratégia eleitoral. Este processo foi iniciado com as eleições de 2018 e continuou em 2020 e 2022 e nestas eleições municipais se mostra aperfeiçoado e mais intensificado. Bereia alerta leitores e leitoras para a importância da confrontação deste tipo de prática eleitoral que não apenas ameaça a democracia mas retira do eleitorado o direito à informação digna e construtiva. 

Referências:

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Nota pública. https://a.storyblok.com/f/134103/529×124/feec7059c5/nota-tvrecord.jpeg. Acesso em: 29 de outubro de 2024.

Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=O2bMyfsOHfM&ab_channel=DomingoEspetacular. Acesso em: 29 de outubro de 2024.

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Metrópoles.https://www.metropoles.com/colunas/paulo-cappelli/bilhetes-interceptados-mostram-indicacoes-de-voto-do-pcc-em-sao-paulo. Acesso em 04 de novembro de 2024. 

Imagem: Tara Winstead/Pexels