* Publicado originalmente no site de CartaCapital em 25 de novembro de 2020.
O diabo é uma figura surgida na tradição cristã, que está relacionada à encarnação do mal. São variadas as interpretações, religiosas e científicas, antigas e modernas, de como a existência deste mal encarnado se dá. Boa parte das vezes, a figura do diabo é reduzida à imagem de uma entidade, representada de muitas formas, dependendo da cultura e do clima social. Por isso, as imagens variam de um homem vermelho, com tridente e rabo, a um galã elegante e sedutor, e são tanto fonte de medo, de narrativas orais, teatrais ou cinematográficas, algumas bem atrativas, como motivo de humor ou de fantasia do Carnaval.
Entretanto, vale refletir que, na teologia cristã, o diabo está para além de uma entidade. A origem do termo explica. No grego, diabolos e no hebraico, satan, o sentido é o mesmo: “aquele que divide”, “provocador de confusão, discórdia”. Isto significa que, enquanto Deus, o Criador, age para transformar o caos, unir, harmonizar, trazer paz, o diabo trabalha no contrário: divide, confunde, mente, causa injustiça, destruição e provoca violência seja ela física, psicológica ou simbólica. Diabolos é, portanto, nas bases da teologia cristã, uma postura, uma força, um caráter, revelados nas pessoas que assumem tais expressões.
Não vamos adiante com discussões teológicas, que são importantes, mas não são objetivo deste artigo. Importa aqui, neste espaço, refletir como o significado de diabolos pode nos ajudar a pensar sobre o que está acontecendo neste exato momento do Brasil, com as expressões de confusão, mentira, injustiça, destruição e violência no processo eleitoral.
É fato que temos o permanente desafio de superarmos os controversos binarismos certo-errado, legal-ilegal, bem-mal, entre outros, que disfarçam as complexidades das relações humanas e de sua extensão na cultura, na economia, na política. No entanto, em nome da promoção da vida em sua plenitude, em todas as suas dimensões, pela causa da paz e da justiça, precisamos chamar o mal pelo nome (como já escrevi em artigo neste espaço) e denunciar ações diabólicas que estão em curso. Algumas delas, para dividir e confundir, usam até mesmo o nome de Deus para seduzir cristãos (coisa que, de acordo com registros da Bíblia cristã, o diabo faz muito bem).
Por isso, Jesus, ao se deparar com as ações antivida, aquelas que instituem privilégios, segregação, desigualdade, que impedem a plenitude e a abundância de vida a todas as pessoas, desejo de Deus, compara estas práticas diabólicas às de um “ladrão”, que surge para roubar, matar e destruir (João 10.10). Ele também identificou disseminadores de mentiras como quem age a partir de desejos diabólicos: “… [no diabolos] não há verdade; quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio; porque é mentiroso, e pai da mentira” (João 8.44).
Neste sentido, podemos classificar como diabólicas as campanhas políticas para eleições municipais no Brasil, que fazem uso de mentiras agressivas para destruir a imagem de concorrentes. Isto acontece principalmente, mas não exclusivamente, nas capitais Rio de Janeiro, Vitória, Recife, Fortaleza e Porto Alegre. Estas ações, que visam convencer eleitores pela confusão que causa medo, partem de candidatos como o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus que pleiteia a reeleição como Prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella (Republicanos). Em vídeo espalhado pela internet, Crivella afirma que o concorrente Eduardo Paes (DEM), tem apoio do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pela promessa de ocupar a Secretaria de Educação e introduzir pedofilia nas escolas.
Além da mentira sobre pedofilia nas escolas, o atual prefeito do Rio afirmou, na companhia de deputado federal da Igreja Assembleia de Deus Otoni de Paula (PSC/RJ), que o PSOL é inimigo do Presidente da República e deseja dar uma segunda facada nele (referindo-se ao atentado sofrido por Jair Bolsonaro em 2018). A campanha diabólica de Crivella também distribui panfletos com o mesmo conteúdo na porta de igrejas e em espaços públicos, usando funcionários da Prefeitura.
Pesquisa sobre este discurso acusatório em vídeos de candidatos e apoiadores (inclusive do Presidente da República e seus ministros), folhetos sem identificação e registro (por isso, ilegais) e áudios que circulam por grupos religiosos no WhatsApp, verifica prioritariamente o convencimento com mentiras pela imposição do medo. Há também vídeos com falsidades e pânico moral (terrorismo verbal produzido para criar aversão social a pessoa ou grupo) de contracampanha, ou seja, de influenciadores políticos e religiosos que não apoiam candidatos, mas agem contra outros que querem destruir. Os vídeos do pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, para interferir em cidades com as quais, curiosamente, ele não tem qualquer relação, são fortes exemplos de contracampanha.
Desde as eleições de 2018, candidatos que buscam apoio de eleitores religiosos recorrem a conteúdo falso e ao pânico moral com base em temas relacionados à sexualidade humana, ao que chamam de “defesa da família tradicional” aliada a “proteção das crianças nas escolas”, e ao enganoso conceito de “ideologia de gênero” (como já tratei neste espaço). Neste 2020, foi acrescentado o tema da “perseguição a cristãos”, criando pânico em torno de candidatos que, se eleitos, atuariam para “fechar igrejas usando como desculpa a prevenção ao coronavírus”.
É fato que qualquer tema que levante o assunto “sexo” e “sexualidade” mexe com o imaginário dos cristãos e provoca muitas emoções (tratei disto também no artigo “Por que os evangélicos só pensam em sexo?”). É de se considerar também que, nos últimos anos, o contexto político brasileiro ressuscitou e realimentou o velho temor do comunismo e do marxismo. Como a maioria nunca leu uma linha das teorias de Karl Marx, acaba acreditando nos irmãos de fé que falam de “doutrinação de mentes”.
É fato ainda que os avanços nas políticas que garantem mais direitos às mulheres e a LGBTI+, e ampliam a participação destas populações no espaço público, causam desconforto às convicções e crenças de grupos que defendem, por meio de leituras religiosas, a submissão das mulheres e a cura dos LGBTI+. Uma moralidade ressentida.
Por isso, para estes grupos, o trabalho das agências de pesquisa e dos sites que promovem a checagem de informações, por mais detalhado e correto que seja, acaba não tendo um efeito suficiente. Não adianta que interlocutores, pacientemente, tentem mostrar que o que se divulga é falsidade e mentira. Isto porque o que sustenta este processo de crença nas mentiras não é apenas a ignorância, mas o fato de que a audiência acredita no que escolhe acreditar.
Quando um grupo se identifica com mentiras, mesmo que elas sejam demolidas em nome da ética e da justiça, permanece com elas e as defende de qualquer jeito. Não importa que seja uma falsidade, o conteúdo não é apagado dos espaços virtuais e continua a ser reproduzido. Mais: aquele que desmascarou a notícia ou a ideia, que pode ser um familiar, amigo ou irmão na fé, chega a ser objeto de desqualificação e rancor.
Eis aí o sentido do diabólico, da imposição de divisão, confusão, de destruição da imagem do outro com mentira.
A despeito de tudo isto, sempre há chance de exorcizar o diabo: expeli-lo do processo. Por isso há que se ter esperança da presença pública de cidadãos e grupos, religiosos ou não, que atuam pela superação das ações diabólicas em nome da paz e da justiça. Eles/as estão por aí, pessoas eticamente responsáveis, agências de checagem de notícias, como fermento na massa, tentando juntar e não dividir, construir e não destruir. Como disse Jesus, “pelos frutos os conhecereis” (Mateus 7.20).
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