Os principais veículos de comunicação no Brasil repercutiram dados do Censo 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e apresentaram uma análise comparativa entre a quantidade de templos religiosos e instituições de ensino e de saúde, no início de fevereiro.
As matérias jornalísticas enfocaram o número maior de estabelecimentos religiosos em relação à soma dos estabelecimentos de ensino e de saúde, e apresentaram outros aspectos da pesquisa de forma secundária. A abordagem ganhou repercussão política nacional, em mídias mais à direita e à esquerda, assim como em portais regionais, que aplicaram recortes da informação difundida.
Figuras públicas e ativas nas mídias sociais também sustentaram a mesma abordagem dos dados e chegaram a questionar a secularidade e colocar a laicidade do Estado brasileiro em questão. Em contrapartida, pesquisadores da religião apontaram inconsistências nesta interpretação dos dados.
Censo 2022: dados e informações divulgados pelo IBGE
O IBGE divulgou, pela primeira vez, as coordenadas geográficas das espécies de endereços do país, coletadas durante o Censo 2022. Os dados foram detalhados por município e cada espécie corresponde a uma finalidade do endereço.
Imagem: reprodução do site do IBGE
Ao todo, foram catalogadas oito espécies de endereço: domicílio particular (90,6 milhões), domicílio coletivo (104,5 mil), estabelecimento agropecuário (4,05 milhões), estabelecimento de ensino (264,4 mil), estabelecimento de saúde (247,5 mil), estabelecimento de outras finalidades (11,7 milhões), edificação em construção (3,5 milhões) e estabelecimento religioso (579,8 mil).
Os dados coletados e estruturados pelo IBGE integrarão o Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE), a base de endereços usada no Censo Demográfico, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e na Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS).
Após a divulgação oficial pelo IBGE, diversos veículos da mídia repercutiram os dados, apontando, principalmente em manchetes, a diferença entre o número de estabelecimentos religiosos e o número de estabelecimentos de educação e de saúde.
O jornal Folha de S. Paulo veiculou, já na manhã de 2 de fevereiro, a manchete “Brasil tem mais espaços religiosos do que de educação e saúde juntos, aponta Censo”. O portal G1, por sua vez, publicou: “Brasil tem mais templos religiosos do que hospitais e escolas juntos; Região Norte lidera com 459 para cada 100 mil habitantes”.
Imagem: reprodução Folha de São Paulo
Imagem: reprodução G1
Foi assim, também, com a Revista Exame (“Censo 2022: Brasil tem mais igrejas e templos do que escolas e hospitais somados”), com o portal UOL (“Censo: Brasil tem mais igrejas que soma de escolas e hospitais”) e diversos outros sites. A Agência Brasil, que integra o sistema público de comunicações, também optou por destacar a comparação: “Brasil tem mais estabelecimentos religiosos que escolas e hospitais”.
Imagem: reprodução Exame
Imagem: reprodução UOL
Alguns intelectuais e pensadores brasileiros divulgaram os dados nos mesmos termos, sempre comparando o número de estabelecimentos seculares e religiosos. Em alguns casos, as publicações, em mídias sociais, adotaram tom crítico à configuração de endereços. Em seu perfil no X, o professor e pesquisador do Pietro Dell’ova associa os dados à “multiplicação de stalinistas, bolsonaristas, miseráveis, moribundos, etc.”. A doutora em literatura em língua inglesa e professora da UFC (Universidade Federal do Ceará) Lola Aronovich compartilhou, também, no X, a notícia com o comentário “sinal de atraso”.
Imagem: reprodução X (antigo Twitter)
Imagem: reprodução X (antigo Twitter)
Já a antropóloga Lilia Schwarcz, em seu perfil no Instagram, teceu comentários sobre o dados e comparou o cenário brasileiro com o da Europa ocidental: “Tais dados ajudam a demonstrar como, na prática, como o Brasil, apesar de ser formalmente um estado secular, não é ainda um país pouco secularizado quando comparado a outros, como na Europa ocidental”, escreveu.
Críticas à cobertura enviesada
O teólogo, mestre em filosofia e em religião e sociedade e diretor de programas no Instituto de Estudos da Religião (ISER) Ronilso Pacheco questionou, em seu perfil no X/Twitter, a cobertura dos dados pela imprensa: “O Reino Unido tem mais templos que escola e hospitais. A França tem mais igrejas que escolas. Porque esse dado básico está sendo noticiado como surpreendente?” indagou.
Imagem: reprodução X (antigo Twitter)
Em sua crítica à forma como a imprensa tratou os dados do IBGE, Pacheco reflete: “Analistas políticos e comentaristas passaram o dia comentando isso como se fosse razoável achar que para cada templo (não apenas de igreja) que se abre, uma escola e um hospital deixam de ser construídos ou perdem investimento, ou relevância. Além disso, claro, o reforço do estereótipo de que as igrejas crescem porque o estado é ausente. Mais uma vez, vitória da ideia elitista de que as pessoas na periferia só são crentes porque são pobres e não tem assistência do estado, não é mesmo?”.
Em entrevista ao Bereia, o pesquisador no Instituto de Estudos da Religião (ISER) e professor na Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV ECMI) Matheus Pestana também criticou a forma como os dados foram explorados na mídia. “O número de pessoas que acessa um hospital, uma escola, tem interseções com o público que acessa os estabelecimentos religiosos, mas são coisas completamente distintas e incomparáveis. No meu entender, o equívoco está aí. É uma comparação que, para mim, não fez sentido nenhum, nenhum. São estabelecimentos de natureza distinta”, afirmou.
Pestana destaca a importância dos dados compilados pelo IBGE na construção de políticas públicas: “É importante entender que esses dados são bastante valiosos para o poder público no desenho de políticas públicas. São dados que vão delinear a ação do governo, em auxílio à população e à configuração urbana existente (…). Na maioria dos municípios, isso era um dado que não existia. Os dados são ótimos. É louvável a iniciativa do IBGE.”
Mas o pesquisador reforça que o entendimento dos dados “de forma alarmante” é equivocado: “Se tivermos 500 mil igrejas e 300 mil escolas, vamos construir mais 200 mil escolas para equiparar ao número de igrejas? Isso não faz sentido. Isso vai mudar alguma coisa? Efetivamente, não. A gente esquece que o público que vai para a escola também vai para a igreja; o público que vai para a igreja, frequenta hospital; só que em questão de volume, são coisas completamente distintas. Escolas, por exemplo, concentram algumas faixas etárias; igrejas contemplam todo o segmento da sociedade Enfim, não faz sentido”.
O pesquisador e professor também abordou a questão da laicidade, levantada por algumas figuras públicas nas mídias sociais. “Alguns comentaristas disseram que, apesar de o Brasil ser, formalmente, um Estado secular, quando a gente compara com outros países – e o exemplo, claro, vem do Norte global – é um país pouco secularizado porque tem muita igreja. Isso não faz sentido.”
Por fim, Pestana aborda as tendências recentes no que diz respeito ao confessionalismo na população brasileira. Em sua percepção, alguns comentaristas teriam conectado os dados do IBGE com o crescimento de grupos evangélicos no país, algo que não necessariamente seria verdadeiro.
“Existem estudos que falam do crescimento dos estabelecimentos evangélicos, mas isso é outra coisa, não está sendo pautado [pelos dados recém-divulgados pelo IBGE]. Essa repercussão é bastante curiosa e mostra, de certa forma, um ataque da mídia ao campo religioso e um não entendimento do brasileiro enquanto um povo com uma dinâmica religiosa que a gente tem. Na verdade, isso não tem problema nenhum. Religião é cultura também e é algo importante de ser considerado”, afirma Matheus Pestana
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Após avaliar a cobertura da imprensa e a abordagem amplamente difundida nas mídias sociais sobre os dados do IBGE segmentados por espécies de endereço, Bereia classifica o viés adotado como impreciso. De maneira geral, as notícias e declarações sobre o tema apresentam dados verdadeiros, mas não consideram diferentes perspectivas e não contextualizam o fenômeno religioso no Brasil de modo a justificar a abordagem adotada.
O IBGE não fornece conclusões de qualquer natureza ou mesmo indícios de que os dados expliquem o cenário da religião no Brasil. A abordagem amplamente difundida nos meios digitais de comunicação pode levar o público a julgamentos errôneos sobre determinados grupos, instituições, organizações, associações ou movimentos sociais e constituir fonte de intolerância.
Em 08 de setembro de 2020 o portal evangélico Gospel Mais noticiou que Sam Bethea, um ex-presidiário e pregador de rua, teria sido agredido por manifestantes do movimento antirracista Black Lives Matter (BLM) em Charlotte, Carolina do Norte (EUA).
De acordo com o site da emissora de TV WSOCTV, aliada local da rede ABC, Bethea foi atingido por farinha, refrigerante e suco ao cruzar com manifestantes do “movimento” enquanto levava uma placa com a frase “Jesus Saves” (“Jesus Salva”, em inglês). A manifestação se deu em protesto à convenção do Partido Republicano na cidade em que Donald Trump foi confirmado como candidato a reeleição. O pleito será realizado em 3 de novembro deste ano.
O pregador é figura conhecida do centro da cidade, como mostra reportagem de outra televisão local, de 2019. Em entrevista para o jornal local Charlotte Observer, Bethea disse que não estava procurando confronto, mas entende que o conflito vem até ele por falar alto. Ele diz que, como um homem negro, se sente ofendido quando ouve “vida negras importam”. “Eu sinto a dor quando vejo atos contra afro-americanos. Entendo que o BLM é um movimento que divide. É um movimento contra Deus. Eu sei disso porque eu estou lá com eles, ouço a mensagem deles. Minha mensagem é muito diferente da sua. E eu sou negro. É isso que vocês estão gritando. Mas a minha vida não importa”, afirma.
Outra matéria do Charlotte Observer revela que o caso não é tão simples como pareceu nas mídias sociais e na matéria do site Gospel Mais. O pregador Sam Bethea foi agredido por ser, na verdade, um “contramanifestante”. A matéria intitulada “Este homem está tentando compartilhar o amor de Jesus com os manifestantes? Ou ele está apenas sendo um incômodo?”, o jornal mostra que Bethea tem sido uma presença quase constante em protestos envolvendo Black Lives Matter, e que ele opõe-se abertamente ao movimento.
A reportagem destaca ainda que é importante notar que o pregador se colocou intencionalmente no meio dessas manifestações, e que testemunhas do episódio na cidade declararam sentir fortemente que ele tentou agitar os manifestantes deliberadamente. Desta forma, diz o Charlotte Observer, “enquanto alguns pensam que Sam Bethan é um herói, outros se perguntam o que exatamente ele estaria tentando provar lá – e acreditam que, nesta saga em andamento, Bethea pode realmente ser um pouco vilão”.
Charlotte Observer apurou que tudo começou em setembro de 2016, durante os protestos na parte alta da cidade após o tiroteio fatal de Keith Lamont Scott pela polícia. Bethea diz que, na primeira noite, o mar de manifestantes se dirigiu para a rua, onde ele estava sempre gritando palavras religiosas.
“Eles não eram violentos, mas … você sabia que eles eram loucos”, diz ele. Desta forma, enquanto uma pessoa com o megafone tentava liderar um canto, Bethea berrava “Jesus saves!” para que “eles não soubessem quando desligar”, segundo o pregador. Após uma hora de envolvimento no que ele chama de “guerra espiritual”, os manifestantes seguiram em frente. No dia seguinte, e nos outros ele fez o mesmo até o fim dos protestos, segundo o próprio Bethea, continuando a gritar mesmo quando os manifestantes o xingavam, jogavam coisas nele e ocasionalmente até o empurravam.
Kass Ottley, uma ativista comunitária que fundou o Procurando Justiça CLT e ajudou a organizar protestos em 2016, diz que entende esse tipo de comportamento dos manifestantes e diz que não aprecia o dele. Ela se lembra de Bethea interrompendo um momento de silêncio que seu grupo estava tendo do lado de fora do hotel Omni para Justin Carr, um manifestante morto a tiros por outro homem na segunda noite de protestos após o assassinato de Scott. Ottley diz: “Foi uma falta de respeito. Você não pode ser um homem de Deus e não respeitar os outros. Se ele estivesse em silêncio, nós o teríamos respeitado.”
E, de modo geral, ela sente: “Ele está agitando as pessoas que já estão chateadas e emocionadas”, acrescentando que “ele não pode bancar a vítima quando segue intencionalmente os manifestantes, quando sabe que sua mensagem em voz alta não é desejada”. Bethea ri da ideia: “Eles odeiam minha mensagem”, disse ao Charlotte Observer, “e, honestamente, odeio a mensagem deles”. Ele diz que os manifestantes do BLM são divisionistas, propensos a usar retórica odiosa, construindo paredes entre eles e a polícia quando deveriam estar construindo pontes.
Desta forma, diz o levantamento do Charlotte Observer, Sam Bethea estava no meio das manifestações com a maior frequência possível em Charlotte, após a execução de George Floyd em 25 de maio, em Minneapolis. Ele estava novamente nos protestos relacionados á Convenção Nacional do Partido Republicano, em agosto, um declarado contra-manifestante exercendo ruidosamente seu direito de contra-protestar.
Entre várias testemunhas ouvidas pelo Charlotte Observer, Justin LaFrancois, que é editor do jornal Queen City Nerve e participou de “99,8 por cento dos protestos”, declarou:
“A presença constante de Bethea parece causar todos os tipos de interações adversas. Eu o vi instigar casos, vi outras pessoas instigarem casos com ele. É meio que funciona nos dois sentidos. É claro que as emoções vão ser altas para todos. Então, se ele sente que as pessoas estão tentando silenciá-lo, ele fica chateado; se as pessoas sentem que ele está tentando silenciá-las, elas ficam chateadas”.
Justin LaFrancois
De acordo com Ronilso Pacheco, teólogo pela PUC-Rio e mestrando no Union Seminary (Nova York/EUA) com estudos em Teologia Negra, ouvido pelo Coletivo Bereia, há uma investida conservadora de contranarrativa para retratar o BLM e a luta antirracista como incitadora de ódio ou algo que busca dividir o país.
“Não é o caso do Bathea [participar dessa investida], mas os episódios como o dele são pegos de forma isolada e são usados como uma contranarrativa ao BLM. É o reconhecimento do racismo como mal social, mas a desaprovação da luta antirracista. A verdade é que, não podendo negar os efeitos danosos que o racismo tem causado na sociedade americana, sobretudo por causa da sociedade branca conservadora, constrói-se uma narrativa que reconhece os males do racismo, mas se critica a luta antirracista.”
De acordo com o site do movimento, a missão é “erradicar a supremacia branca e construir poder local para intervir na violência infligida às comunidades negras pelo estado e vigilantes. Ao combater atos de violência, criando espaço para a imaginação e inovação Negras, e centrando a alegria Negra, estamos conquistando melhorias imediatas em nossas vidas.”
No artigo “A tomada do palco: performances sociais de Mao Tsé-Tung a Martin Luther King, e a Black Lives Matter hoje”, Jeffrey Alexander, professor de Sociologia na Universidade de Yale, qualifica o Black Lives Matter como um novo movimento de direitos civis. As performances do movimento por direitos civis de meados do século XX deixaram por herança uma cultura profundamente enraizada, um conjunto de experiências-modelo evocativas, que os protestos afro-americanos posteriores tomaram por base.
Entretanto, Alexander ressalta que a capacidade de mobilização em torno dos protestos em favor da subclasse seguiu existindo, ao lado da possibilidade de inspirar a crítica social pela reparação cívica por parte das instituições que sustentaram sua devastação. O professor destaca que os disparos feitos por policiais contra homens negros é um fato que ocorre há décadas, mas raramente ganharam visibilidade pública. Esta realidade mudou quando as novas tecnologias de comunicação e o advento da internet propiciaram o registro das cenas de violência e mobilizações através de slogans e símbolos visuais e sua disseminação pelas redes sociais. Celulares e computadores permitiram que milhares de mulheres e homens negros tomassem as ruas, em manifestações que sugestivamente constatavam a inocência das pessoas negras e a brutalidade policial.
O professor Jeffrey Alexander cita o jornal The Huffington Post para dizer que o movimento Black Lives Matter” reformulou o modo como os americanos veem o tratamento policial dado às pessoas não brancas”. Nesse sentido, as vidas das pessoas negras passaram a ter importância.
Alexander também recorre ao jornal The New York Times para citar uma descrição dos protestos:
Apesar da proporção do movimento, Ronilso Pacheco destaca ao Coletivo Bereia, que o BLM não pode ser visto com as mesmas lentes da luta por direitos civis nos anos 1960 e 1970, que teve lideranças centralizadas e mais coesão.
“O BLM é diverso e pluralizado. Cada núcleo, cada estado tem sua autonomia e até um pequeno grupo pode se organizar enquanto parte do movimento. Tem-se usado a diversidade de estratégias de ações dentro do movimento de forma a pinçar casos mais extremos de embate e confronto para desqualificar toda a história do BLM”.
Ronilso Pacheco
George Floyd e novos protestos
O caso George Floyd gerou novos protestos antirracistas nos EUA em 2020. No dia 25 de maio, ele foi morto por asfixia provocada por Derek Chauvin, um policial branco na cidade de Minneappolis, no estado de Minnesota. Segundo dados levantados pelo jornal americano The Washington Post, 1018 americanos foram mortos por policiais em 2019. Apesar de brancos serem a maioria dos mortos pela polícia, proporcionalmente, a violência policial atinge mais a população negra: 32 negros mortos por milhão contra 24 por milhão de hispânicos (classificados como não brancos) e 13 por milhão de brancos. Vale lembrar que a população negra é minoria nos EUA: são 13% dos habitantes.
No depoimento ao Coletivo Bereia, Ronilso Pacheco avalia que o caso George Floyd veio como uma gota d’água que fez transbordar a pressão sobre a população afro-americana.
“Há uma combinação da força da imagem da morte do Floyd, que remete ao contexto escravocrata pela maneira fria de se matar um homem negro, com o contexto da pandemia e como ela afetou a população negra”.
Ronilso Pacheco
Dados levantados pela emissora CNN mostram que, até o mês de maio de 2020, afro-americanos eram 27% dos mortos por covid-19 enquanto correspondem por 13% da população dos EUA. Já a população branca, que são 62% de todos habitantes do país, correspondem a 49% das mortes. Levando em conta o desemprego daquele período, os negros são tinham maior índice do que hispânicos (16,7% contra 18,9% entre os latinos) – a taxa entre brancos e asiáticos-americanos ficava entre 14,2% e 14,5%.
O caso de Jacob Blake, em Kenosha, Wisconsin, gerou protestos antirracistas e contra a violência policial no final de agosto passado. Blake foi alvejado por um policial branco que respondia chamado de incidente doméstico. Enquanto entrava em seu carro, onde seus filhos estavam, o homem foi baleado sete vezes e foi socorrido em estado grave. As manifestações que vieram a seguir registraram alguns episódios violência e a polícia usou de gás lacrimogêneo e toque de recolher.
Outras ocorrências entre manifestantes do BLM e cristãos
Em coluna no The Intercept Brasil, Ronilso Pacheco demonstra como um site que diz fazer “ativismo pró-família” deturpou o texto explicativo sobre o movimento e sua origem para afirmar que a verdadeira missão do BLM era promover a destruição da família, a agenda LGBT, fronteiras abertas e doutrina racista bizarra.
Declarações dos candidatos à presidência
A disputa de narrativa acerca do BLM acontece no contexto da corrida presidencial estadunidense de 2020. Candidato à reeleição, Donald Trump promove a narrativa de que o objetivo de protestos não é uma América melhor, mas sim o fim da América. “Essa revolução cultural de esquerda quer reverter a Revolução Americana”, disse o presidente em seu discurso no dia da Independência, no Monte Rushmore. Em relação aos protestos, Trump defende o discurso de “Lei e Ordem” e acusa Joe Biden, candidato Democrata à Casa Branca, de ser um “cavalo de tróia para o socialismo”.
Ronilso Pacheco, no depoimento ao Coletivo Bereia, analisa os posicionamento dos dois candidatos sobre os protestos:
“A despeito da Lei e da Ordem que mantém uma estrutura racista e muito segregacionista em muitos aspectos, o discurso ‘Lei e Ordem’ faz parte do linguajar e narrativa do público evangélico conservador. E Trump não vai recuar nisso porque essa é a grande base”.
Ronilso Pacheco
Para ele, Biden não faz nada além do esperado ao ser moderado.
“Ele não vai correr os riscos de endossar um discurso mais radical, no sentido de endossar protestos que acabem com destruição de estabelecimentos. Essa também é a sua base, que tem voz e voto e poder decisivo nas eleições. [Seu discurso é moderado por] não tirar as razões de quem se exacerba e apela à violência (pensando na violência que a provocou) mas diz que a destruição de estabelecimentos é um exagero, um excesso com o qual ele não pode concordar.”
Ronilso Pacheco
A opinião pública sobre o Black Lives Matter
Pesquisa do Pew Research Center, publicada em junho, demonstrou que dois terços da população americana adulta dá algum apoio ao Black Lives Matter. 38% “apoiam fortemente” o movimento enquanto 29% dão “um pouco de apoio”. Os dados apontam uma diferença entre brancos e negros em relação ao BLM. 31% dos brancos apoiam fortemente o movimento e 30% dão algum apoio. Já em negros, as respostas de apoio são, respectivamente, 71% e 15%.
Outra diferença está entre democratas e republicanos. Enquanto 92% dos cidadãos identificados com o Partido Democrata de Biden apoiam o BLM (sendo que 62% deles apoiam fortemente), apenas 37% dos identificados com o Partido Republicano de Trump apoiam o movimento (só 7% dão “forte apoio”). Por fim, 59% dos adultos acreditam que pessoas estão se aproveitando dos protestos para ter comportamento criminoso. Enquanto 8 em cada 10 republicanos acreditam nisso, 39% dos democratas pensam o mesmo.
Com base na verificação, o Coletivo Bereia classifica a matéria do Gospel Mais como enganosa. Apesar da agressão ao pregador de rua ter existido, o recorte do conteúdo não contextualiza como se deu o episódio, fazendo parecer que Sam Bethea era um simples pregador que foi atacado. A pesquisa do Bereia mostra que Bethea agia durante protestos do BLM desde 2016, “criando casos” como “contramanifestante” e não como mero pregador evangélico. Ao omitir esta informação, o Gospel Mais induz leitores e leitoras a uma rejeição ao movimento Black Lives Matter, como se fosse contrário à pregação do Evangelho, sem também uma contextualização a respeito do movimento.
O título é categórico: “‘Black Lives Matter’ incentiva derrubada de estátuas de Jesus: ‘Supremacia branca’”. A partir daí, a matéria publicada no site evangélico Gospel Mais, no último dia 25 de junho, afirma logo no primeiro parágrafo que “o movimento Black Lives Matter (BLM) [Vidas Negras Importam] vem incitando protestos violentos em meio à comoção generalizada decorrente do assassinato de George Floyd [em 25 de maio de 2020]”. O texto indica aos leitores que um dos principais líderes da militância está “incentivando a derrubada de estátuas e bustos que representem Jesus Cristo como um homem branco”. A afirmação declara de forma evidente que a ideia de derrubar as referidas imagens partem do movimento BLM.
Contudo, apenas no parágrafo posterior da matéria, Gospel Mais traz a explicação de que a declaração que originou a matéria foi feita por Shaun King, ativista formador de opinião e apoiador do movimento antirracista. Ele ainda comanda o podcast “The Breakdown”, em que conta as histórias relacionadas à injustiça, ao racismo e à corrupção. Em seu perfil no Twitter, o ativista criou polêmica ao afirmar que representações de Jesus Cristo com características europeias são uma “forma de supremacia branca”, tendo ainda defendido que tais obras deveriam ser derrubadas. O tweet, publicado por Shaun King no dia 22 de junho, contabilizou mais de nove mil retweets e 11,5 mil curtidas. Em português, o texto diz:
“Sim, acho que as estátuas do europeu branco que afirmam ser Jesus também deveriam ser postas abaixo.
Eles são uma forma de supremacia branca.
Sempre foi.
Na Bíblia, quando a família de Jesus queria se esconder e se misturar, adivinha para onde eles foram?
EGITO!
Não na Dinamarca.
Derrube-os.
Os protestos que atingem os monumentos históricos
A postagem de Shaun King foi feita no contexto da onda de protestos contra o assassinato de George Floyd, homem negro de 46 anos, desempregado, pela polícia de Minneapolis (EUA). Floyd havia sido detido em 25 de maio de 2020, por suspeita de uso de dinheiro falso e, no ato, foi imobilizado por um policial que ajoelhou em seu pescoço por mais de oito minutos. Apesar de George Floyd não ter oferecido resistência à prisão, acabou morto por asfixia pelo policial que o imobilizou, acompanhado por dois policiais, desconsiderando os gritos do preso: “Eu não consigo respirar!”. O caso, mais um no histórico de ações violentas da polícia nos EUA contra a população negra, ganhou destaque no noticiário e nas mídias sociais e gerou revolta não apenas entre pessoas negras, mas entre todas naquele país que se opõem ao racismo estrutural que marca sua história.
Durante muitos dias foram realizados protestos pacíficos, outros nem tanto, seguidos de depredações, em todos os EUA, alcançando, em poucos dias, vários outros lugares do mundo, em desafio ao isolamento contra a pandemia de coronavírus, para que pessoas de todas as cores, classes sociais e idades se manifestassem contra o racismo, as desigualdades sociais e a brutalidade policial. Os protestos se transformaram em um movimento histórico mundial – BLM [Vidas Negras Importam] – que, mais uma vez, expôs as entranhas do racismo e reacendeu o desejo de justiça e mudança nas relações humanas.
O BLM gerou resultados: os policiais foram demitidos e presos e modificações nas políticas de segurança foram adotadas em várias cidades e estados.
Entre as manifestações, começou a ser questionada a existência de monumentos e homenagens públicas a figuras racistas e que, historicamente, contribuíram para a violência contra não-brancos.A partir deste questionamento, foram tomadas iniciativas de reivindicação da retirada oficial destes monumentos e algumas ações concretas. Em 9 de junho, uma estátua de Cristóvão Colombo foi derrubada em Richmond, nos EUA, incendiada e jogada em um lago por manifestantes. Um cartaz foi colocado no pedestal vazio com a frase “Colombo representa genocídio”. Defensores dos direitos de nativos americanos há muito pressionam os estados dos EUA a mudarem o Dia de Colombo para Dia dos Povos Indígenas, devido a críticas de que Colombo teria sido o precursor de um genocídio de populações indígenas das Américas.
Já a prefeitura de Londres, Inglaterra, anunciou que estátuas de pessoas ligadas aoperíodo colonial poderão ser removidas das ruas e parques, e deverão refletir melhor a diversidade racial e cultural da capital. Em 9 de junho, uma estátua do proprietário de escravos Robert Milligan, que estava em frente ao Docklands Museum, perto do rio Tâmisa, foi retirada pela entidade responsável pelo monumento, a Canal and River Trust, para expressar “o sentimento da comunidade”. Milligan foi um comerciante proprietário de fazendas e de escravos nas Índias Ocidentais no século 18 e 19. A estátua dele estava no local desde o início dos anos 1800. A remoção ocorreu depois de um grupo de manifestantes, em 7 de junho, ter derrubado e lançado ao rio a estátua do comerciante de escravos Edward Colston, em Bristol, no oeste de Inglaterra. Na cidade de Oxford, centenas de manifestantes pediram, em 9 de junho, a retirada do monumento do colonizador Cecil Rodhes, situado em frente ao Oriel College. Também houve protestos no centro de Londres e em outras cidades britânicas.
É importante recordar que a derrubada de estátuas de personagens homenageadas em uma época e questionados em outra, é processo comum, especialmente quando há movimentos revolucionários, mudanças de regime político. Da mesma forma, a mudança de nomes de ruas, de locais públicos e até de cidades em protesto às homenagens não mais apoiadas. Um exemplo clássico se deu com o fim da União Soviética nos anos 1990. Os povos sob o regime soviético recuperaram sua memória, e tradições culturais e religiosas foram reinstauradas: bandeiras redesenhadas, ruas renomeadas, estátuas de heróis do mundo soviético foram derrubadas, e os livros de história reescritos. Este episódio foi fartamente celebrado pelo mundo ocidental à época. )
A postagem de Shaun King ocorreu neste contexto, o que não foi explicado na matéria do Gospel Mais. No compromisso com a informação e com um jornalismo coerente, o Coletivo Bereia oferece esta contextualização, que ainda demanda aprofundamento, pois estes movimentos e os questionamentos que os embasam não nascem com a morte de George Floyd.
Movimentos por justiça racial são antigos
A questão da justiça racial está em alta com estas manifestações estimuladas pelo assassinato de George Floyd, porém a justiça racial é uma discussão que permeou o século 20, com a realidade imposta à população de cor preta, desde a extinção da escravidão na Europa e nas Américas, na segunda metade do século 19. Ela ganhou auge nas lutas pelos direitos civis para as pessoas negras nos Estados Unidos nos anos 1950 e 1960. O movimento buscava reformas naquele país visando abolir a discriminação e a segregação racial, com ele surgiram articulações como o Black Power e os Panteras Negras (Demétrio Magnoli, Uma Gota de Sangue: história do pensamento racial. 2009).
O marco inicial do movimento pelos direitos civis se deu no sul dos Estados Unidos, fortemente racista no país, especificamente na cidade de Montgomery, estado do Alabama, em 1 de dezembro de 1955, quando a costureira negra Rosa Parks (conhecida como “A Mãe dos Direitos Civis”) se recusou a ceder seu lugar para um homem branco em um ônibus, prática obrigatória de acordo com as leis segregacionistas daquele estado.
Grupos religiosos fizeram história na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, que inspiraram demandas por justiça racial em todo o mundo. O pastor batista Martin Luther King Jr. e o líder islâmico Malcom X não apenas se destacaram nas ações pelo fim da segregação racial e os direitos das pessoas negras como tornaram-se mártires do movimento – os dois foram assassinados por racistas oposicionistas da causa. Luther King havia ganho o Prêmio Nobel da Paz, em 1964, como reconhecimento dos esforços pacíficos que empenhou.
Estas ações inspiraram o movimento anti-apartheid nos anos 1980, o regime segregacionista da África do Sul, que impôs uma prisão de 27 anos ao líder oposicionista Nelson Mandela, mais tarde presidente do país. Grupos cristãos também tiveram protagonismo na causa anti-apartheid, tendo se destacado a liderança do Bispo Anglicano Desmond Tutu. As ações e todas estas personagens continuam inspirando movimentos por justiça racial até hoje, como foi com a confluência em tono da morte de George Floyd, em 25 de maio de 2020.
A Teologia Negra
Destes movimentos do século 20 nasceu, entre cristãos nos Estados Unidos, a Teologia Negra. É uma leitura teológica, que atualmente está presente em diversas partes do mundo, e contextualiza a fé cristã pelo olhar dos povos negros escravizados, injustiçados e segregados. A Teologia Negra oferece uma leitura da Bíblia, a partir da experiência de fé dos negros estadunidenses, manifestada nos cânticos, nos sermões e em orações. Esta leitura destaca o êxodo do Egito e a ressurreição de Jesus como inspirações-chave da libertação de segregados e injustiçados. Um dos precursores desta teologia é James Cone, um teólogo afro-americano, cristão da Igreja Metodista Episcopal Africana, falecido em 2018, aos 80 anos. O livro de Cone, considerado um clássico da Teologia Negra, “O Deus dos Oprimidos” (1985), foi publicado no Brasil pelas Edições Paulinas. No Brasil, entre os precursores da Teologia, estão o teólogo evangélico Joaquim Beato (anos 60) e a teóloga feminista católica Sílvia Regina de Lima (anos 80). Entre os jovens teólogos brasileiros está o evangélico Ronilso Pacheco, autor do livro Teologia Negra(Recriar e Novos Diálogos, 2019), atualmente em estudos de Mestrado em Teologia no Union Theological Seminary (Nova Iorque/EUA). Ele é também autor de “Ocupar, resistir, subverter: igreja e teologia em tempos de violência, racismo e opressão” (Novos Diálogos, 2016).
Uma das reflexões provocadas pela Teologia Negra diz respeito ao “embranquecimento”, a negação das diferenças de cor em nome da supremacia branca, com o desprezo à negritude e a outras etnias, nas bases do Cristianismo. De acordo com o pesquisador Matheus Souza Gomes,
“A história do cristianismo no Ocidente é marcadamente etnocêntrica e racista. Ainda que as teorias raciais datem do século 19 (muitas delas baseadas no etnocentrismo europeu construído desde os séculos 9º e 10º e no chamado darwinismo social), a tradição cristã europeia, que se tornou hegemônica na parte ocidental do mundo, carrega consigo a marca do etnocentrismo com base na crença de que a verdade divina foi revelada com exclusividade na pessoa de (um) Jesus de Nazaré (branco). Já se sabe, a partir de estudos bíblicos, arqueológicos, históricos e teológicos, que o Nazareno, era de origem judaica, nascido na região da Palestina durante a ocupação do território por forças romanas. Bem, devido à sua herança geográfica e étnica, é possível afirmar que a imagem do Cristo concebido pela tradição cristã europeia e que se popularizou não guarda nenhuma semelhança com o Jesus histórico nascido na Palestina dominada pelos romanos. Jesus de Nazaré não era branco. Era um judeu negro do Oriente Médio.
Essa constatação que, muitas vezes, passa batido por uma parcela significativa dos cristãos e que é negligenciada por diversas lideranças religiosas, possuí relevância para a história do cristianismo e revela um interessante paradoxo da tradição: o processo de embranquecimento da principal figura religiosa da tradição cristã: o próprio Jesus de Nazaré. Se a mensagem do Cristo se baseia na abertura e respeito para com o outro, por que as igrejas cristãs no Ocidente, principalmente, se deram ao trabalho de modificar as características físicas do “Filho de Deus”? Mais do que isto, por que durante o processo de expansão do cristianismo, a imagem de Jesus com características europeias foi conservada e, ainda hoje, é difundida pela tradição cristã ocidental? São perguntas inquietantes, mas que retratam um aspecto do cristianismo hegemônico no Ocidente: o seu racismo religioso”.
Estas concepções teológicas não dizem respeito apenas às imagens de Jesus, mas a todas as personagens bíblicas que, ao longo da história, tiveram seus traços do Oriente Médio embranquecidos, ocidentalizados. Esta observação extrapola a religião e entra pela História, por exemplo, quando personagens são representados de forma embranquecida, tendo sua negritude negada. Um exemplo, no Brasil, são os destacados escritores que têm sua identidade negra apagada nos estudos de literatura, como Machado de Assis e Cruz e Souza. É neste contexto, não abordado na matéria produzida por Gospel Mais, que se dá a afirmação de Shaun King, na postagem em que protesta contra as estátuas que representam Jesus na Europa branca.
Desdobramentos
Como é possível concluir, a partir de uma contextualização, a postagem de Shaun King não trata de uma incitação, e, sim, de um parecer defendido por ele, inserido em um debate norte americano por anos reivindicado, inclusive por diversas denominações negras. Em depoimento ao Coletivo Bereia, o teólogo Ronilso Pacheco acrescenta:
“Sim, a afirmação de King está pública no Twitter. Ela não é uma incitação, mas o que ele acha que deveria acontecer. E está inserida em um debate próprio do contexto americano, que não é de hoje, reivindicado inclusive por muitas igrejas negras. O Jesus, branco e de traços europeus, não corresponde em nada à realidade mais próxima do que se sabe sobre a imagem de Jesus. Desfazer essa imagem e o que ela significa na luta pelo fim do legado da escravidão é um debate sempre atual nos Estados Unidos. A matéria do Gospel Mais, de forma mentirosa, põe um título que afirma categoricamente que o Black Lives Matter está incitando a derrubada de estátuas de Jesus. A afirmação não é do BLM, mas do Shaun King”.
Reportagem do site Aventuras na História que também noticiou o fato, salienta que, para Shaun, diversas obras que mostram um Jesus Cristo branco são peças “criadas como ferramentas de opressão”, um tipo de “propaganda racista”. Na opinião do ativista, segundo a matéria, a imagem caucasiana do profeta foi “criada para ajudar os brancos a usar a fé como uma ferramenta de opressão”. Portanto, ratifica-se que crítica foi feita em meio aos muitos protestos antirracistas que tomam as ruas ao redor do mundo. Nesse contexto, como referido, diversos personagens históricos vêm sendo questionados, enquanto suas estátuas são pichadas, derrubadas e retiradas de seus pilares.
Na coluna Mundialista da revista Veja, do dia 24 de junho, a jornalista Vilma Gryzinski afirmou:
“Shaun King, o autor das tuitadas provocadoras, tem uma obsessão por tons de pele. Sua mãe e seu pai dizem que ele é branco, mas King ganhou notoriedade como militante do Black Lives Matter. Usa até um bigodinho fino parecido com o de seu xará muitíssimo mais famoso, Martin Luther King, além de óculos e cabelos à la Malcolm X. O King atual diz que seu pai biológico era ‘um negro de pele clara’ com quem a mãe teve um relacionamento. Quando alguém põe a mãe no meio, voluntariamente, a coisa está feia. Sem falar em envolver Jesus na atual onda de estátuas derrubadas nos Estados Unidos, num furor iconoclasta que levou Donald Trump a ameaçar invocar a justiça federal e criar uma pena de 10 anos de prisão para quem continuar a praticar o vandalismo”.
O site UOL também noticiou o fato sem, no entanto, remeter ao suposto estímulo à derrubada de estátuas de Cristo ao movimento BLM. A matéria cita Shaun King como ativista norte americano, um dos fundadores da organização Real Justice PAC e apoiador do movimento “Black Lives Matter”. Segundo o texto, nas últimas semanas, algumas estátuas — principalmente aquelas ligadas a personagens escravagistas ou de passado colonial dos países — foram derrubadas ou pichadas por manifestantes nos EUA e em outros lugares do mundo.
Em alusão à mesma matéria da UOL, o deputado federal evangélico Carlos Jordy, fez uma postagem em seu perfil no Instagram, que atualmente possui mais de 263 mil seguidores. Ao citar a fonte, o deputado destaca: “organização ligada ao black lives matter, a esquerda americana que diz combater o racismo”.
Num recurso comum de quem usa desinformação para fins políticos, com imposição de medo e terror ao público, para criar rejeição a temas dos quais discorda e a opositores, o deputado usa a imagem do Cristo Redentor para relacionar à “ameaça” de derrubada de estátuas de Jesus. O Coletivo Bereia mostrou a postagem do deputado Carlos Jordy no Instagram ao teólogo Ronilso Pacheco, que assim avaliou:
“É ainda tão desonesta quanto à matéria do Gospel Mais, porque ele tira as frases do contexto, coloca entre aspas para passar a ideia de que são as afirmações de Shaun King, mas na verdade elas estão ‘editadas’. Nitidamente, Jordy está forçando a barra para que o leitor acredite que King pura e simplesmente disse que imagens de Jesus (qualquer uma, sem qualquer contexto) sejam derrubadas. Passar a ideia de que a crítica de King é contra a igreja e o cristianismo por si só, e não contra o uso racista e seletiva da imagem de Jesus”.
De volta à publicação do Gospel Mais, percebe-se ainda o termo “vandalizem”, o que, na verdade, não foi utilizado pelo ativista norte americano na ocasião da postagem no Twitter. Para o teólogo Ronildo Pacheco, em depoimento ao Coletivo Bereia, “Shaun King não usou o termo ‘vandalizar’ exatamente porque ele não tem o mesmo simbolismo que ‘derrubar’. Derrubar a imagem do Jesus europeizado tem o mesmo valor simbólico da derrubada da imagem de um general confederado que escravizou e matou milhares de afro-americanos. Esse é o contexto da mensagem”.
Como é comum em material desinformativo, para chancelar a aparente veracidade, a matéria do Gospel Mais recorre à opinião de Voddie Baucham Jr, pastor e teólogo negro, que participou de um programa de rádio para comentar os episódios do assassinato de George Floyd, no qual descreveu o movimento BLM como “anticristão”. No depoimento, Baucham teria destacado que já é realidade a percepção de alguns cristãos que a Igreja deveria abraçar essas pautas, em busca da chamada justiça social, mas o resultado, para ele, é que essas pessoas terminam se distanciando do que a Bíblia ensina e prega.
O teólogo Ronilso Pacheco explica, em depoimento ao Coletivo Bereia:
“Para mostrar ‘veracidade’, a matéria ouve a opinião de um pastor, negro, Voddie Baucham. Curioso ouvir justamente o pastor que enfureceu a comunidade negra, incluindo tantos pastores e pastoras, em 2014, quando, na ocasião do assassinato de Michael Brown, em Ferguson (contexto em que nasce o BLM) afirmou, em artigo na The Gospel Coalition, que a polícia não matava tantos negros. Para Baucham, homens negros morriam mais nas mãos de outros negros, e que achava preocupante ter negros que se preocupavam mais em fazer parte de uma raça do que do corpo de Cristo”.
O Coletivo Bereia classifica a matéria do site evangélico Gospel Mais como enganosa, uma vez que ela se baseia em uma postagem que, de fato, foi feita pelo ativista estadunidense Shaun King no seu perfil Twitter. No entanto, Gospel Mais desinforma para criar rejeição dos seus leitores ao BLM, ao atribuir a fala pessoal de Shaun King ao movimento, ao distorcer o conteúdo para criticar o ativista, com ausência de contextualização do discurso contido na postagem, com uso de termos com juízo de valor e com manipulação da declaração de uma fonte para levar seus leitores a acreditarem que foi feita uma incitação de “vandalismo”.
Mundialista, Veja, Nem Cristo escapa: militante derrubaria estátuas “brancas”. 24 jun 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/mundialista/nem-cristo-escapa-militante-derrubaria-estatuas-brancas/
Notícias UOL, Ativista: estátuas de Jesus ‘europeu’ são símbolos de supremacia branca, 23 jun 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/06/23/ativista-diz-que-estatuas-de-jesus-sao-simbolos-de-supremacia-branca.htm
Aventuras na História. Ativista afirma que imagem de Jesus Cristo caucasiano é uma “forma de supremacia branca”, 24 jun 2020. Disponível em:https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/ativista-afirma-que-imagem-de-jesus-cristo-caucasiano-e-uma-forma-de-supremacia-branca.phtml
MAGNOLI, Demétrio. Uma Gota de Sangue: história do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009.
Revista Prosa Verso e Arte. Disponível em: https://www.revistaprosaversoearte.com/15-escritoras-e-escritores-negros-que-deveriam-ser-estudados-nas-escolas/