O Brasil e o cristianismo autocentrado

* Publicado originalmente no Observatório Evangélico

Sexta-feira, dia 07 de julho, tive a alegria de participar, a convite do Instituto Intercultural para o Diálogo, da Festa do Sacrifício, que rememora uma passagem comum a judeus, cristãos e muçulmanos: a ordem, dada por Deus a Abraão, para sacrificar seu filho Ismael como demonstração de fidelidade. Abraão, segundo os relatos, não hesitou em cumprir o mandato de Deus e, a pesar da dor, concordou em realizar a ordem de Deus. A demonstração de fé de Abraão salvou Ismael, pois Deus o liberou de cometer tamanha atrocidade.

Durante a celebração inter-religiosa da Festa do Sacrifício, ocorrida em Brasília, nos foi explicado que, para este dia, é sacrificado um animal e sua carne é distribuída, seguindo três critérios: um terço da carne é destinada às pessoas economicamente vulnerabilizadas, um terço para a família e um terço para os vizinhos. De modo que, no centro da celebração está a prática de uma fé que fortalece a experiência comunitária e se solidariza com as pessoas excluídas do mercado de trabalho.

A ideia do serviço à pessoa próxima, da partilha, da inconformidade em relação à concentração de riquezas, responsável pela pobreza, é central em todas as tradições de fé, inclusive na cristã.

Quando lemos o Evangelho, encontramos Jesus caminhando, empoeirando-se, conversando e colocando-se à disposição das pessoas que eram desumanizadas: mulheres, especialmente as viúvas, pessoas doentes e com necessidades especiais (cegos, sem mobilidade, leprosos, crianças), entre outras.

Jesus não era autocentrado. Em suas parábolas e conversas sempre destacava a centralidade de Deus-Pai. Jesus não proclamou a si mesmo, mas proclamou a boa-nova do Evangelho, que critica, justamente, a religião autocentrada e aliada com o poder.

Nas últimas semanas ganhou repercussão a pregação realizada pelo “pastor” André Valadão , vinculado à Igreja Lagoinha, em que conclamava os seus seguidores a uma guerra santa contra pessoas LGBTQIA+.  Disse o tal “pastor” que, caso Deus pudesse mataria as pessoas LGBTQIA+. Diante disso, estava nas mãos dos seguidores do referido “pastor” irem para cima, ou seja, fazer o que Deus não poderia fazer.

O tal “pastor” realiza as suas “pregações” dos Estados Unidos da América. Talvez já com a intencionalidade de não ter que responder à justiça brasileira por seus crimes presentes em seu discurso de ódio. Por mais que tente se explicar, não consegue se justificar, pois LGBTQIA+fobia é  crime, previsto em lei.

Não é necessário dizer o quanto este assunto repercutiu, o que, provavelmente, era a intenção do “pastor”. Mobilizar a rede de ódio que por anos serviu de alicerce para o movimento cristão fundamentalista. O “pastor” desejava holofotes e conseguiu, no entanto, nenhuma de suas explicações serão suficientes para livrá-lo do discurso criminoso. De imediato, uma ação do MPF pediu que o “pastor” assuma com os custos de produção e divulgação de “contrapontos aos discursos feitos, a retração pelas ofensas, e o pagamento de R$ 5 milhões por danos morais coletivos”.  O MPF também pediu ao Instagram e ao Google a análise do conteúdo das publicações de André Valadão, diante de possível violação à política de combate ao discurso de ódio nestas plataformas.

A resposta do Google foi que o vídeo foi revisado e não foi removido por violação das diretrizes da comunidade. A Meta, dona do Instagram, disse que não comentaria o caso. A postura destas empresas não surpreende, pois parte de suas riquezas é oriunda com a difusão de discurso de ódio. A aliança entre plataformas digitais e expressões religiosas fundamentalistas é altamente lucrativa.

Ao longo deste texto, ao me referir a André Valadão, coloquei seu título de pastor entre aspas. Explico por quê. Na tradição cristã, o exercício do ministério com ordenação é estar a serviço da pessoa próxima, contribuindo para a cultura da paz e da boa convivência. É certo que, por vezes, doutrinas e dogmas religiosos, acabam se sobrepondo e se contrapondo a princípios e valores voltados à cultura de paz. Não é possível ignorar que as barreiras para a aceitação de pessoas LGBTQIA+ são comuns na maioria das igrejas no Brasil. Geralmente, as justificativas estão amparadas em dogmas e doutrinas que são facilmente invalidadas quando contrapostas à centralidade do amor. Há sempre a tendência a justificar a exclusão com a fidelidade às doutrinas. No entanto, apesar disso, as igrejas não são autorizadas a pregar o ódio e a violência contra pessoas LGBTQIA+. Diga-se de passagem que parte significativa das igrejas não fazem este discurso de ódio, mas articulam debates internos para a revisão dos dogmas. Mesmo que este processo de revisão pode levar anos e décadas, contribui para que os preconceitos sejam gradativamente descontruídos, acolhendo pessoas LGBTQIA+ .

Voltando ao “pastor” André Valadão. Seu discurso e prática colocam-se em total contradição com o ministério com ordenação. Primeiro porque ele atribui a si mesmo uma autoridade que não lhe é conferida: a de dizer o que Deus quer ou deixa de querer. Segundo, porque ele se coloca como o centro da pregação, que está em total contradição com a tradição cristã evangélica. Para igrejas evangélicas, o centro da fé é Jesus Cristo. Pastores e pastoras não são autoridades acima do bem e do mal e muito menos acima de Jesus. Considerando o caro principio protestante de separação entre Igrejas e Estado, caberia ao pastor pedir afastamento de sua igreja, ou então, a igreja afastá-lo, até que os órgãos públicos competentes realizassem uma investigação sobre se ocorreu ou não intencionalidade de incitação ao crime.

Acontece que vivemos em um país que, primeiro, não compreende o sentido da laicidade. Segundo, por aqui se aceita a falsa concepção de que uma pessoa com ordenação está autorizada a realizar os discursos que quiser. Terceiro, o cristianismo autocentrado é o mais característico no país, isso significa, a concepção de um cristianismo em que as pessoas são orientadas a se preocuparem unicamente com elas mesmas e, quando muito, com suas famílias, deixando de lado a empatia, a cultura do encontro e a abertura para a pluralidade. O discurso de André Valadão acende uma luz com vermelho intenso para todas as igrejas, pois aponta para o risco de um processo de decadência da tradição cristã.  Neste sentido, cabe ao conjunto das igrejas, especialmente, evangélicas, avaliar o conteúdo das pregações realizadas, tanto nos cultos de domingo, quanto nas redes.

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

***Foto de capa: Thiago Matos/Pexels

Imprensa desinforma sobre acordo do Tribunal Superior Eleitoral com religiosos

Ao contrário do que foi divulgado em pelo menos três matérias publicadas na Folha de São Paulo, o acordo assinado por lideranças de diferentes religiões com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pretende promover a paz e a tolerância nas Eleições Gerais de 2022 – e não combater as fake news, como publicado pelo jornal. 

Imagem: reprodução das matérias publicadas pela Folha de S. Paulo nos dias 2, 6 e 26 de junho, respectivamente

Segundo o Termo de Cooperação disponibilizado no site do TSE, os signatários do documento declararam a intenção de promover por meio dos seus meios de comunicação “ações de conscientização relacionadas com a tolerância política, legitimação do pensamento divergente e a consequente exclusão da violência” para preservação da paz social. Não há, no documento, menção sobre combate às fake news, notícias falsas ou a desinformação. 

Imagem: primeira folha do Termo assinado por uma das entidades signatárias. Reprodução/site do TSE

Entretanto, a Folha não ficou sozinha na divulgação da desinformação. Com exceção de alguns veículos da imprensa como Estadão, O Globo e CNN, a maioria dos veículos propagaram a notícia do suposto “acordo contra as fake news”, entre eles:  Gazeta do Povo, Correio Braziliense, O Antagonista, Diário do Centro do Mundo, Portal Comunhão, Brasil 247, Jornal GGN, Jornal do Comércio, Revista Forúm.

A questão da verdade apareceu no processo, contudo, foi mencionada apenas durante a cerimônia de assinatura do Termo, em 6 de junho no Salão Nobre do Tribunal, no discurso do atual presidente do TSE, Edson Fachin. “Defender a democracia é negar a cólera, fugir das armadilhas retóricas, fiar-se no valor da verdade”.

Acordo: sucesso ou fracasso

Para organizar o evento, o TSE convidou o desembargador William Douglas, do TRF (Tribunal Regional Federal) da 2ª Região, pastor ligado à igreja Batista. Em entrevista concedida ao Bereia, o desembargador federal declarou que foi procurado pelo TSE pelo fato de possuir experiência em magistratura e trânsito inter-religioso. 

Para o evento de solenidade foram convidadas 33 pessoas, no entanto, apenas 12 assinaram o documento. O desembargador federal atribuiu o fato à desinformação veiculada na imprensa, “[…] a imprensa noticiou, mais de uma vez, como sendo um projeto sobre combate às fake news. Não é o caso: neste projeto não há qualquer menção a fake news”. Segundo sua análise, o assunto foi politizado levando, assim, a discussão para temas que não estavam propostos no Termo de Cooperação.

Imagem: representantes posando para foto após assinatura do Termo de Cooperação. Reprodução/site TSE)

Outro ponto do evento que chamou a atenção foi a ausência de representantes de denominações históricas como Metodistas, Anglicanos e Luteranos para a assinatura do acordo. “A seleção [dos convidados] foi baseada em presença exemplificativa do segmento. O que se quis foi um rol exemplificativo e não exaustivo” explicou o desembargador, pontuando sobre a dificuldade da representação devido ao tamanho do segmento evangélico. 

Para o desembargador, o fato do evento não ter uma representatividade maior não configura um problema, “não se espera de nenhuma liderança alguma postura de ciúme em relação a outras, o que não é bíblico”, conclui o desembargador que, apesar de ser pastor, assinou o Termo na condição de escritor.

Bereia também ouviu a secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), a pastora luterana Romi Bencke. A organização cristã que representa a Aliança de Batistas do Brasil, as Igrejas Episcopal Anglicana do Brasil,Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Presbiteriana Unida, entre outras, não foi convidada para o evento. “Fizemos contato informando nossa disposição em participar, no entanto, as pessoas que nos representariam não foram procuradas pelo TSE. Desde uma perspectiva de laicidade do Estado, creio que a participação deveria ter sido o mais plural possível, sem discriminação”, reclama a secretária-geral. 

Romi Bencke conta que nas últimas eleições, para prefeitos e vereadores, em 2020, o CONIC foi convidado para apoiar as campanhas do TSE por eleições democráticas. “O TSE tem e deve ter o nosso nome em seu banco de dados. Após o encontro, fomos questionados por algumas organizações que estiveram presentes, por que não estávamos lá. A resposta foi: porque não fomos convidados ou informados. Por isso, pergunto pelos critérios considerados para deixar organizações de fora. Cabe ao TSE responder esta pergunta”, finaliza a pastora. 

Independente de estar ou não presente no evento, o CONIC tem apoiado as campanhas do órgão por eleições limpas e divulgou uma nota de apoio ao processo eleitoral, de repúdio à violência e a FakeNews. 

Imagem: nota divulgada pelo CONIC em seu site oficial. Reprodução/site do CONIC

O evento pela Paz e Tolerância não sofreu apenas com a desinformação e com a ausência de entidades importantes como o CONIC. Apesar dos esforços para agregar os diferentes religiosos, o pastor Silas Malafaia, apoiador do governo Bolsonaro, atacou a reunião e pediu boicote ao evento.

“Eu só acredito que um líder religioso vá aparecer na reunião hoje se ele for alienado, está por fora desses fatos ou é esquerdopata. Um líder religioso que sabe das coisas não vai cair nesse jogo. Nós não vamos ser usados por esses interesses mesquinhos”, disse o pastor em um vídeo publicado em seu canal no Youtube, no mesmo dia do evento.

Assinou, não assinou

A lista de convidados foi composta, na sua maioria, por pessoas e entidades ligadas à fé evangélica e oito ligadas às demais religiões como. A relação a seguir onde constam os nomes dos convidados foi obtida pelo jornal Folha de São Paulo mediante a Lei de Acesso à Informação (LAI): 

Abner Ferreira, presidente da Assembleia de Deus (Madureira/RJ). 

Teo Hayashi, pastor na Zion Church e líder do movimento “The Send”, checado pelo Bereia.

Samuel Câmara, presidente da CADB (Convenção da Assembleia de Deus do Brasil)

Roberto Brasileiro, presidente da Igreja Presbiteriana do Brasil

Hilquias Paim, presidente da Convenção Batista Brasileira, conta com 8 mil igrejas e em torno de 1,7 milhão membros.

Jesus Aparecido, presidente da Convenção Batista Nacional, atualmente conta com 2.700 igrejas com mais de 400 mil membros.

Thiago Rafael Vieira, presidente do IBDR (Instituto Brasileiro de Direito e Religião)

Eduardo Bravo, presidente da Unigrejas (União Nacional das Igrejas e Pastores Evangélicos)

Edna Zilli, presidente em exercício da Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos)

Ismael Ornilo, presidente da Aliança das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil

Girrad Mahmoud Sammour, presidente da Anaji (Associação Nacional de Juristas Islâmicos)

Thiago Crucitti, diretor-executivo da Visão Mundial, 

Claudio Lottenberg, presidente da Conib (Confederação Israelita do Brasil)

Juliane Penteado Santana, presidente da AJE-Brasil (Associação Jurídico Espírita do Brasil)

Augusto César Rocha Ventura, presidente da Associação Educativa Evangélica, mantenedora de instituições de ensino superior e colégios baseados em Goiás.

Stanley Arco, a Aneasd (Associação Nacional de Entidades Adventistas do Sétimo Dia) – é preciso explicar estas associações desconhecidas. Arco também é o atual presidente da Igreja Adventista do Sétimo Dia na América do Sul. 

Walmor Oliveira de Azevedo, presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

Sóstenes Cavalcante, deputado federal e presidente da bancada evangélica

Antônio Carlos Costa, presidente da ONG Rio de Paz

Davi Lago, pastor e escritor

Paschoal Piragine Jr., presidente da Primeira Igreja Batista de Curitiba

Márcio de Jagun, fundador do Instituto Orí

Nilce Naira, coordenadora da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde

Augusto Cury, escritor

Cláudio Duarte, pastor e escritor

Carlos Wizard, empresário e escritor.

David Raimundo Santos, fundador da ONG Educafro

William Douglas, escritor e desembargador federal do TRF 2 e organizador do encontro.

Aaron Inácio Silva Freitas, presidente do Igreja Assembleia de Deus Ministério Internacional do Guará, sediada no Distrito Federal, conta com aproximadamente 1.500 igrejas pelo Brasil.

Coen Roshi, monja budista, primaz fundadora da Comunidade Zen Budista Zendo Brasil (2001).

Ademar Kyotoshi Sato, monge budista do Templo Shin Budista Terra Pura, em Brasília-DF.

Keizo Doi, monge regente do Templo Shin Budista Terra Pura, em Brasília-DF.

Luzia Lacerda, diretora do Expo Religião, organização que promove seminários, congressos e feiras inter-religiosas. Lacerda também é jornalista e apresentador do programa Expo Religião transmitido na TV Alerj.

Dessa lista, apenas 11 instituições foram as signatárias, além do desembargador federal William Douglas, que assinou na condição de escritor e pensador:

Instituto Orí

Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde (Renafro),

Templo Shin Budista Terra Pura

Organização Não Governamental (ONG) EducAfro

Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)

Associação Jurídico-Espírita do Brasil (AJE-Brasil)

Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure)

Associação Nacional de Entidades Adventistas do Sétimo Dia (Aneasd)

ONG Visão Mundial

Confederação Israelita do Brasil (Conib)

Associação Nacional de Juristas Islâmicos (Anaji)

O pastor Antonio Carlos Costa, presidente da ONG Rio de Paz, publicou no dia 29 de junho, em sua conta no Twitter, uma nota, declarando que não assinou o Termo, pois não havia recebido em tempo. Após o recebimento comprometeu-se a assiná-lo.

………..

Bereia classifica como enganosa a notícia sobre o acordo contra fake news veiculada no jornal Folha de S. Paulo e demais veículos da imprensa. O acordo proposto pelo TSE referia-se à promoção da paz e tolerância nas Eleições Gerais de 2022. Como está demonstrado nesta matéria, o Termo de Cooperação não faz qualquer menção à desinformação. O combate às fake news deve ser prioridade em um processo eleitoral e não pode ser utilizado como chamariz de assuntos. Ele se faz com informação de qualidade, apurada com rigor jornalístico em busca da verdade. Como Bereia prediz em sua Metodologia de Checagem, deve-se buscar, sempre que possível, as fontes originais da informação. 

Referências de Checagem:

TSE.

https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Junho/eleicoes-2022-tse-assina-acordo-com-liderancas-religiosas-para-a-promocao-da-paz-e-da-tolerancia-no-pleito Acesso em: 9 jul 2022.

https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Junho/tse-e-liderancas-religiosas-firmam-parceria-em-prol-do-dialogo-e-da-paz-nas-eleicoes-2022? Acesso em: 9 jul 2022.

Folha de S. Paulo.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/06/tse-busca-pacto-com-lideres-religiosos-contra-fake-news-e-resistencia-as-eleicoes.shtml Acesso em: 9 jul 2022.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/06/acordo-contra-fake-news-tem-adesao-de-menos-da-metade-de-religiosos-convidados-pelo-tse.shtml Acesso em: 9 jul 2022.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/06/tse-faz-acordo-com-liderancas-religiosas-em-meio-a-ataques-de-malafaia.shtml Acesso em: 9 jul 2022.

G1. https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/06/06/tse-se-reune-com-lideres-religiosos-e-firma-acordo-para-promover-eleicoes-pacificas-em-outubro.ghtml Acesso em: 9 jul 2022.

CONIC. https://www.conic.org.br/portal/conic/noticias/nota-do-conic-em-defesa-do-processo-eleitoral-brasileiro Acesso em: 11 jul 2022.

Foto de capa: Divulgação/TSE

Fake news nas igrejas: uma epidemia a ser curada

Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil

Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana (IECLB) há vinte anos. Em 2012, tornou-se secretária-geral da relevante organização ecumênica que associa igrejas do Brasil em torno de causas comuns, em especial as dos direitos humanos, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic). Ela foi vítima de ataques caluniosos em mídias sociais, várias vezes, por conta das ações do Conic na esfera pública. Essa violência verbal parte de pessoas que discordam da forma como os temas são considerados pelas igrejas da organização, da qual a pastora Romi é porta-voz, e são incapazes de tratar sua crítica de forma digna e civilizada.

A situação se agravou, em 2021, com a realização da Campanha da Fraternidade Ecumênica, promovida a cada cinco anos pelo Conic – uma extensão da histórica campanha da Igreja Católica, membro do organismo, a outras igrejas. O tema da campanha foi “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor” e, apesar dele, muitas pessoas não desejaram dialogar sobre elementos desafiadores para as igrejas como a superação do racismo, a destruição do meio ambiente e o negacionismo em torno da pandemia de Covid-19, em meio à qual ocorreu a campanha.

Nesse novo contexto, além do conteúdo falso sobre a pastora Romi Bencke, disseminado principalmente por grupos católicos extremistas, liderados por integrantes da associação Centro Dom Bosco, que a acusavam de trabalhar para destruir a “verdadeira Igreja Católica Romana”, ela carregou o peso de ter que provar que o que circulava nas mídias sociais era falso. Além disso, mesmo vítima de calúnias, a secretária-geral do Conic ainda foi criticada como causadora das reações extremistas. Ocorreram consequências como o desconvite para palestras em eventos e a tentativa de manchar a sua imagem como pastora.

“Eu fui vítima várias vezes na história – quando espalharam as mentiras, quando as desmenti. Porque a imagem que fica é a de que você é a pessoa causadora do problema. Também me responsabilizaram. ‘Ah, mas você toca em assuntos que geram esse tipo de movimento’. Pessoas que você imaginava serem suas companheiras compram a narrativa, começam a te julgar. Também houve quem se afastasse até do Conic”, relata a pastora Romi Bencke com tristeza.

A secretária-geral do Conic conta ainda que tentou iniciar um processo judicial contra os promotores do ódio e das mentiras, porém não conseguiu seguir em frente por se tratar de algo profundamente desgastante e nocivo para ela. “O custo acaba sendo nosso. No meu caso, eu tive que fazer a transcrição das falas. Eu me senti violentada novamente e acabei desistindo. É difícil ter que ouvir tudo de novo. É preciso ter uma capacidade de resiliência muito forte”, desabafa.

O caso da pastora Romi Bencke, abordado no primeiro episódio da série especial “Não bote fé nas fake news” do podcast Guilhotina,  se une a outros tantos de pessoas que têm sido submetidas, sistematicamente, aos efeitos da circulação das chamadas fake news no ambiente das igrejas cristãs, evangélicas e católicas. O termo popularizado em inglês, que significa “notícias falsas”, não diz respeito apenas a notícias propriamente ditas, mas a todo e qualquer conteúdo que transmita informação sobre uma situação ou uma pessoa. Fake news são caracterizadas pela informação deliberadamente criada, com base em mentira e engano (manipulação de conteúdo), para atingir pessoas e grupos de quem se discorda e para se obter vantagem econômica ou política, com a interferência em temas de interesse público.

As fake news e as comunidades de fé

Pesquisas em diversas áreas da sociedade, dentro e fora da academia, têm mostrado que as fake news – que não são novidade, mas práticas antigas incorporadas à arte de convencer e de fazer política – ganharam muita força na era digital, em especial, com a popularização das plataformas de mídias sociais.

Nas mais populares, WhatsApp, Facebook, Instagram, Youtube, Twitter, o processo é simples: uma pessoa ou um grupo organizado produz e publica, intencionalmente, uma mentira, geralmente no formato de notícia para criar mais veracidade, valendo-se até mesmo de dados científicos e/ou jurídicos adaptados. O conteúdo é debatido nos espaços das mídias sociais, torna-se algo reconhecido, com caráter de sabedoria e verdade e é disseminado, voluntariamente, por quem acredita ou se identifica com ele e viraliza alcançando um sem-número de pessoas.

A psicologia social explica o fenômeno desta viralização, orienta o cientista social ligado ao Centro para o Cérebro, Biologia e Comportamento (Universidade de Nebraska, Estados Unidos) Davi Carvalho. Há pessoas que, ainda que constatem terem acreditado numa mentira, não a desprezam, pois ela se revela coerente com seu jeito de pensar, de agir, de estar no mundo, ou lhe trazem alguma compensação, conforto. Isso é o que se chama “dissonância cognitiva”.

Carvalho explica que isso acontece quando pessoas têm necessidade de estabelecer uma coerência entre suas cognições (seus conhecimentos, suas opiniões, suas crenças), que acreditam ser o certo, com o que se apresenta como opção de comportamento ou de pensamento.

As investigações mostram também que os ambientes religiosos são amplamente vulneráveis à circulação desse tipo de conteúdo. Isso pode ser explicado pelo sentimento cultivado nesses espaços, físicos e digitais, relacionado à crença e à confiança. Cristãos estão propensos não só a assimilar as notícias e ideias mentirosas que circulam pela internet, coerentes com suas crenças, como valorizam mais o que chega no seu grupo religioso.

As contas de mídias sociais de grupos de igrejas e as de suas lideranças são credenciadas como fontes de verdades, pois são veículos de espaços e pessoas de confiança, relacionadas ao cultivo da fé. Além disso, pessoas religiosas que recebem esses conteúdos tendem a fazer a propagação deles, uma espécie de “evangelização”, espalhando essas notícias e ideias para que convertam pessoas ao mesmo propósito.

Essas noções ajudam a explicar como têm sido amplamente propagadas nesses ambientes religiosos as receitas caseiras e medicamentos milagrosos para a cura e a prevenção de doenças, mais recentemente da Covid-19; as supostas ameaças de “inimigos da fé”, em especial às igrejas e suas lideranças, representados em figuras como “comunismo”, “islã”, “feminismo”, “ditadura gay”.

Há ainda a retórica do medo que é base na disseminação de fake news de um modo geral, mas tem alcançado com força os grupos religiosos, especialmente evangélicos. Esse grupo religioso cultiva, historicamente, o imaginário de enfrentamento de inimigos e da perseverança diante da perseguição religiosa como alimento da fé. Por isso, há um forte apelo de publicações desinformativas em torno da “defesa da família” e dos filhos das famílias, como núcleos da sociedade que estariam em risco por conta da agenda de igualdade de direitos sexuais. Na mesma direção, notícias falsas de que políticos de esquerda ou o Supremo Tribunal Federal fecharão igrejas no Brasil têm sido fartamente propagadas nos ambientes cristãos em períodos de disputas políticas. Os ataques à pastora Romi Bencke possuem estreita relação com esses discursos.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de 2019 a 2020, buscou compreender o uso intenso do WhatsApp para circulação de fake news no segmento evangélico. Intitulada “Caminhos da desinformação: evangélicos, fake news e WhatsApp no Brasil”, a pesquisa, coordenada pelo sociólogo Alexandre Brasil Fonseca, aplicou 1.650 questionários em congregações evangélicas das igrejas Batista e Assembleia de Deus, no Rio de Janeiro e em Recife. As igrejas e as cidades foram definidas com base na maior concentração de evangélicos, segundo o Censo de 2010. Além dos questionários, foram realizados ainda grupos de diálogo sobre a temática e aplicados formulários on-line, preenchidos por pessoas de todas as religiões e sem religião em todo o país para efeito de comparação.

Os resultados mostram que 49%, ou quase metade, dos evangélicos que responderam aos questionários afirmaram ter tido acesso a conteúdo falso. Nesse grupo cristão entrevistado, 77,6% disseram ter recebido as fake news em grupos de WhatsApp relacionados às suas igrejas. No levantamento com outros segmentos religiosos sobre mensagens falsas em grupos relacionados às suas religiões, 38,5% de católicos, 35,7% de espíritas e 28,6% de fiéis de religiões afro-brasileiras afirmaram ter recebido. Sobre o conteúdo, 61,9% dos evangélicos declararam que as notícias sobre política eram as mais frequentes.

A pesquisa confirmou o que outros estudos já apontavam: o apelo que a desinformação exerce sobre grupos religiosos, porque se adequa mais a crenças e valores e menos a fatos propriamente ditos. Além disso, a investigação da UFRJ apontou um elemento novo:  a propagação de desinformação se dá mais intensamente entre evangélicos por conta de elementos relacionados à prática da religião nesse grupo. O uso intenso das mídias sociais provocou “um novo ir à igreja” (a pesquisa foi realizada antes da pandemia de Covid-19, o que certamente amplificou esse elemento), associado ao sentimento de pertencimento à comunidade, que gera uma imagem de líderes e irmãos de fé como fontes confiáveis de notícias.

Fake news e fundamentalismos

Apesar de ser uma prática antiga, há elementos novos relacionados ao avanço na propagação de fake news nos ambientes religiosos, em especial das igrejas: maior ocupação de espaços digitais por esse segmento religioso e maior atuação de grupos cristãos na política.

A popularização das mídias digitais faz parte do processo de ampliação de espaço e visibilidade pública de cristãos, principalmente dos evangélicos. A dimensão da participação e da transformação dos receptores em emissores, por meio de processos de interação possibilitados pelas novas mídias, especialmente, pela internet, mudou radicalmente o quadro da relação igrejas-mídias. São inúmeras as páginas na internet ligadas a grupos cristãos e a relação inclui desde as institucionais, de todas as denominações cristãs, passando pelas mais artesanais, montadas por grupos de igrejas, até as mais sofisticadas e mais acessadas, pertencentes a celebridades religiosas ou grupos de mídia.

Ao se considerar as plataformas de mídias sociais há uma infinidade de articulações e espaços. Igrejas e grupos cristãos perceberam que as mídias podem não apenas apresentar o Evangelho e dar visibilidade, mas podem articular, promover socialidade, firmar comunidade. Isso passou a dar novo caráter para a relação das igrejas com as mídias, pois, com a cultura digital, um programa já não é só projetado para emitir, mas tem a dimensão da interação estimulada. Abriu-se mais espaço para encontros, trocas de ideias, debates, informações, divulgações. A dimensão da comunicação como interação/comunhão fica potencializada. A socialidade promovida pelas mídias digitais facilita a socialidade cristã e a evangelização.

Por outro lado, as igrejas passam a não ter mais o controle do sagrado e da doutrina como tinham antes. A abertura para a participação e para que qualquer pessoa que professe uma fé, vinculada ou não formalmente a uma igreja, manifeste livremente suas ideias, reflexões e opiniões, tirou o controle dos conteúdos disseminados das mãos das lideranças. Basta ter um simples blog, nos fartos espaços gratuitos, ou uma conta sem custo nas mais populares redes sociais digitais, e o espaço está garantido para a livre manifestação.

Dessa forma, doutrinas e tradições teológicas passaram a ser relativizadas, bem como a autoridade dos líderes clássicos – pastores e presidentes de igrejas.  Questionamentos de afirmações confessionais são pregados, críticas são explicitadas. Esta é uma característica forte dos espaços midiáticos digitais: as pessoas se sentem liberadas e encorajadas para expressarem o que nunca expressariam num encontro face a face. Processo que ainda faz emergir das mídias novas autoridades religiosas – celebridades (padres e pastores midiáticos, cantores gospel), blogueiros – que se tornam referência para o modo de pensar, agir, ver o mundo, de muitos cristãos.

Tudo isto se relaciona ao avanço, nas últimas décadas, da presença mais intensa de grupos religiosos na política. Esta presença tem se evidenciado mais fortemente por ações que podem ser classificadas como “fundamentalistas”, caracterizadas como reativas e reacionárias às mudanças sociais.

Nesse contexto, observa-se que o fundamentalismo se torna um fenômeno social que ultrapassa fronteiras religiosas, ganha um perfil mais diversificado e adquire caráter político, econômico, ambiental e cultural a partir de uma matriz religiosa. Nessas atuações, certos “fundamentos” são escolhidos para persuadir a sociedade, a fim de estabelecer fronteiras e lutar contra “inimigos”, o que frequentemente resulta em um movimento polarizador e separatista, que nega o diálogo, a democracia e estabelece um pensamento único que visa direcionar as ações no espaço público.

Essas constatações estão presentes na pesquisa “Fundamentalismos, crise da democracia e ameaça aos direitos humanos na América do Sul: tendências e desafios para a ação”, que nasceu da preocupação de igrejas e organizações baseadas na fé (OBFs), articuladas por meio do Fórum Ecumênico ACT Aliança Sul Americano (Fesur), do qual a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese) é integrante. O Fesur tem observado transformações na arena pública em termos sociopolíticos, econômicos, culturais e ambientais, no contexto de diferentes países. Essas mutações têm se dado na forma de reações a avanços e conquistas no campo dos direitos de trabalhadores/as, de mulheres e de comunidades tradicionais (indígenas e afrodescendentes), seguidos de retrocessos e obstáculos políticos de vários tipos.

A pesquisa recuperou a origem do termo “fundamentalismo”, que remonta à tendência conservadora de um segmento protestante dos Estados Unidos, na virada do século XIX para o XX. Ele era enraizado na interpretação literal da Bíblia, classificada como inerrante, em reação à modernidade (encarnada na teologia liberal e no estudo bíblico contextual com mediação das ciências humanas e sociais), em atitude de defesa dos fundamentos imutáveis da fé cristã. De lá para cá, a perspectiva fundamentalista foi se transformando, no interior do evangelicalismo mesmo, e ultrapassou as fronteiras da religião. Torna-se uma postura ancorada na defesa de uma verdade e na imposição dela à sociedade.

A pesquisa do Fesur buscou escapar do uso do termo que denota acusação e rótulo de contrários, e mostra que os fundamentalismos podem ser entendidos como uma visão de mundo, uma interpretação da realidade, com matriz religiosa. Esta é combinada com ações políticas decorrentes dela, para o enfraquecimento dos processos democráticos e dos direitos sexuais, reprodutivos e das comunidades tradicionais, num condicionamento mútuo.

Também se identificou, como descoberta, que a matriz religiosa dos fundamentalismos em avanço não é desenvolvida por evangélicos tão só (do ramo histórico e dos pentecostais) mas também por católico-romanos, que se articulam em uma unidade oportunista em torno de pautas e inimigos comuns.

As pautas fundamentalistas que unem lideranças e segmentos evangélicos e católicos são embasadas na moralidade sexual religiosa e na demonização e inferiorização das espiritualidades indígenas e afrodescendentes. Elas servem ao sistema econômico neoliberal ao apregoarem a redução de políticas públicas (ação do Estado, portanto), relegando à “família” o cuidado com educação, saúde, trabalho, aposentadoria, e ao facilitarem as conquistas de terras de populações tradicionais pelo agronegócio e por mineradoras. Por isso a classificação “fundamentalismos político-religiosos”. São identificados como inimigos, movimentos sociais, sindicatos, partidos que buscam defender esses direitos e essas populações.

Essas pautas são disseminadas nas mídias ocupadas por lideranças entre pastores, pastoras, padres, políticos, cantores gospel e novas celebridades religiosas. Além da visibilidade midiática que as transforma em autoridades/referências religiosas que ultrapassam até mesmo as fronteiras religiosas, essas lideranças têm em comum discursos característicos dos fundamentalismos político-religiosos.

Estudos empíricos têm estabelecido a conexão entre a recepção e a propagação de desinformação com o imaginário de cristãos fundamentalistas. O pesquisador da Universidade de Victoria (Inglaterra) Christopher Douglas, por exemplo, indica que a cultura fundamentalista de: 1) negação seletiva da ciência (especialmente da teoria da evolução e da leitura contextual da Bíblia) e desqualificação da informação pelas mídias;  2) criação de fontes alternativas para conhecimento e informação: suas próprias universidades, museus e mídias; 3) formação cognitiva para rejeitar conhecimento especializado e buscar alternativa – geração de incapacidade de pensamento e análise críticos, é base para que fake news se espalhem facilmente entre cristãos conservadores.

Isso ganha força, no espaço público, segundo Douglas, para além da religião, com o fortalecimento de uma religiosidade partidária entre fiéis (afinidade eletiva com a direita política) e uma aproximação aos extremismos conservadores.

Para esses grupos, o trabalho das agências de pesquisa e dos sites que promovem a checagem de informações não tem efeito. Isso porque, como indicado neste artigo, o que sustenta o processo de crença nas mentiras não é apenas a ignorância, mas o fato de que as pessoas acreditam no que escolhem acreditar.

Quando um grupo se identifica com mentiras, mesmo que elas sejam demolidas em nome da ética e da justiça, permanece com elas e as defende de qualquer jeito. Não importa que seja mentira, mas sim a ideia contida, a falsidade não é apagada dos espaços virtuais e continua ainda a ser reproduzida. E mais: aquele que desmascarou a notícia ou a ideia, que pode ser um familiar, amigo ou irmão na fé, chega a ser objeto de desqualificação e rancor.

 “Ideologia de gênero” é o maior exemplo de fake news entre cristãos

O maior exemplo de fake news criada em espaço cristão na América do Sul é a chamada “ideologia de gênero”. Esta pode ser classificada como a mais bem sucedida concepção falsa criada no âmbito religioso.

Surgido no ambiente católico e abraçado por grupos evangélicos distintos, o termo trata de forma pejorativa a categoria científica “gênero” e as ações distintas por justiça de gênero, atrelando-as ao termo “ideologia”, no sentido banalizado de “ideia que manipula, que cria ilusão”. A “ideologia de gênero” nessa lógica é apresentada como uma técnica “marxista”, utilizada por grupos de esquerda, com vistas à destruição da “família tradicional”.

É fato que qualquer tema que traga o assunto “sexo” e “sexualidade” mexe com o imaginário dos cristãos e provoca muitas emoções. É de se considerar também que nos últimos anos, o contexto político brasileiro ressuscitou e realimentou o velho temor do comunismo e do marxismo. Como a maioria das pessoas não tem conhecimento das teorias de Karl Marx, passa a acreditar nos irmãos de fé que falam de novas técnicas de escravização de mentes desenvolvidas por um “marxismo cultural”.

É fato ainda que os avanços nas políticas que garantem mais direitos às mulheres e às pessoas LGBTQIA+, e ainda participação delas no espaço público, causam desconforto às convicções e crenças de grupos que defendem, por meio de leituras religiosas, a submissão das mulheres e a “cura gay”.

Não foi por acaso que esse tema ocupou grande espaço nas campanhas eleitorais de 2018 e de 2020 no Brasil, com muita circulação de fake news contra as candidaturas de esquerda, que têm por prática a defesa de direitos de gênero.

O tema se soma a outros que têm sido fortemente inseridos nas mídias sociais de comunidades de fé, como o da “cristofobia”, uma suposta perseguição religiosa contra cristãos no Brasil, e o perigo comunista, de uma alegada ameaça vermelha à nação. Tal quadro tem estimulado iniciativas de resposta para a superação dessas práticas de comunicação que têm causado tanto mal aos grupos com identidade cristã.

O enfrentamento das fake news nas comunidades de fé

Por ser uma organização defensora dos direitos humanos, formada por igrejas há quase cinquenta anos, a Cese tem avaliado, com preocupação, casos como o da pastora Romi Bencke e outros que revelam o impacto negativo que as fake news causam nas comunidades de fé. Estimulada por sua história de engajamento nas causas por verdade e justiça e pelos resultados da pesquisa Fesur, a Cese decidiu se unir às várias iniciativas de grupos cristãos que têm enfrentado as fake news.

Em 2021, Cese decidiu que sua campanha anual Primavera para a Vida, que estimula as igrejas a ações referentes a temas sociais emergentes, teria o tema “Buscar a verdade: um compromisso de fé”. Iniciada em setembro de 2021, a campanha contou com um seminário virtual sobre o tema, uma publicação gratuita – que traz como proposta a reflexão sobre esses novos desafios para as sociedades democráticas, através de subsídios bíblicos e teológicos para que as igrejas utilizem em seus diversos espaços de formação e reflexão -, em português e em espanhol, cujo título é o mesmo da iniciativa, formação para igrejas sobre o impacto das fake news e indicação de formas de ação. Para esse último objetivo, a Cese publicou um conjunto de cards para mídias sociais com as principais mentiras que circulam em ambientes cristãos e atitudes preventivas diante delas.

A campanha com cards foi produzida em conjunto com o Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias, que foi parceiro da Cese na Campanha Primavera para a Vida 2021. Bereia é iniciativa ímpar entre as ações contra as fake news no Brasil, pois é o único projeto de jornalismo colaborativo de checagem de fatos especializado em religião. O projeto tornou-se pioneiro no Brasil em verificação de fakes news que circulam em ambientes digitais religiosos, com atenção voltada para cristãos. Criado em 2019, ele é resultado da pesquisa do Instituto Nutes, da UFRJ, citado neste artigo.

A equipe do Bereia, formada por jornalistas, estudantes de comunicação e outros voluntários interessados na busca de superação da desinformação, acompanha, diariamente, mídias de notícias cristãs e pronunciamentos e declarações de políticos e autoridades cristãs de expressão nacional, veiculados pelas mídias noticiosas e pelas mídias sociais. A Cese continua na parceria com o Bereia, em 2022, com a produção de novo conjunto de cards para mídias sociais, numa extensão do tema da Campanha  Primavera para a Vida.

O Coletivo Bereia integra a Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD), fundada em 2020, nascida da inquietação de pesquisadores/as de diferentes universidades provocada pela observação e o estudo da potencialização da circulação de desinformação no campo político e, muito intensamente, durante a pandemia. A RNCD passou a interligar projetos e instituições de diversas naturezas que trabalham e contribuem de alguma forma para combater o mercado da desinformação que floresce no Brasil.  São coletivos, iniciativas desenvolvidas dentro de universidades, agências, redes de comunicação, revistas, projetos sociais, projetos de comunicação educativa para a mídia e redes sociais, aplicativo de monitoramento de desinformação, observatórios, projetos de fact-checking, projetos de pesquisa, instituições científicas, revistas científicas, dentre outros.

A RNCD busca unir esforços, praticar a sinergia, potencializar a visibilidade do trabalho realizado em cada projeto e criar uma onda de enfrentamento da desinformação. Por meio da RNCD é possível conhecer e se integrar a projetos que incluem educação contra fake news que ensinam como os próprios usuários das mídias digitais podem fazer, eles/elas mesmos, a checagem da informação que recebem.

Em parceria com o Coletivo Bereia, a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito – Núcleo Minas Gerais lançou, em 2021, o site Mentiras do Éden. O projeto tem por objetivo construir com as igrejas um pacto pela verdade, prevenir e combater as notícias falsas, principalmente as de cunho religioso. Mentiras do Éden tem realizado atividades em defesa da democracia e do direito à informação, voltadas para a comunidade evangélica, com formações educativas sobre fake news e utilização das mídias sociais.

Durante o período eleitoral de 2020, foi realizada a Campanha #IgrejaSemFakeNews, promovida pela Igreja Batista em Coqueiral (Recife, PE), por meio do Instituto Solidare, em parceria com a Tearfund e a Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB). Uma das ações foi o lançamento da publicação Diga Não Às Fake News!,  com reflexões acerca do tema, tanto à luz da Bíblia quanto da legislação brasileira. O livro gratuito permanece à disposição do público. Outro material resultante da Campanha é o livro da Abu Editora, “As fake news e a Bíblia. Estudo bíblico indutivo”, também com acesso gratuito, organizado por Morgana Boostel e Thiago Oliveira.

Para a diretora executiva da Cese e pastora da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, Sônia Mota, unir-se a esses projetos para enfrentar as fake news nos espaços cristãos significa fortalecer conjuntamente o enfrentamento aos discursos de ódio e de perseguições a lideranças religiosas. “É nosso papel denunciar o avanço fundamentalista que manipula textos bíblicos para disseminar mentiras que afetam não só as igrejas, mas processos mais amplos como a democracia e os direitos humanos”, afirma a pastora.

Com isso, as igrejas cumprem um papel importante na defesa da democracia e da dignidade humana para que casos como o da pastora Romi Bencke se tornem memória sobre a qual se pode construir ações permanentemente transformadoras.

Magali Cunha é jornalista, doutora em Ciências da Comunicação e editora–geral do Coletivo Bereia.
Bianca Daébs é doutora em Educação, mestra em História Social e atua como assessora para Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso da Cese.
Tarcilo Santana é jornalista e atua como analista de Comunicação da Cese.

Foto de capa: reprodução Le Monde Diplomatique Brasil

Campanha Primavera para a Vida 2021 debate fake news dentro das comunidades de fé

Lançamos a 21ª edição da Campanha Primavera para a Vida, que aborda o caminho da verdade como um princípio cristão que produz paz e justiça e denuncia os danos que a cultura de produzir e difundir “Fake News” (expressão sofisticada para o termo “mentira”) tem causado na sociedade, de modo mais particular em comunidades de fé.

A live de lançamento contou com a participação da editora-geral do Bereia, Magali Cunha, da pastora Romi Bencke e da ativista Ana Gualberto, além de diversos membros do movimento ecumênico.Como parte da campanha lançamos também a publicação “Buscar a Verdade: Um Compromisso de Fé”, que traz conteúdos para debate e difusão da aplicação do princípio da verdade. Você pode baixar a publicação aqui.

A campanha, que promovemos desde 2001, busca articular o diálogo com as Igrejas, fortalecendo o compromisso ético com a promoção e garantia dos Direitos Humanos, contribuindo para a formação das lideranças clérigas, leigas e das comunidades de fé, disponibilizando estudos bíblico-teológicos inspirados em demandas sociais vivenciadas pela organização.

Campanha da Fraternidade Ecumênica é alvo de desinformação e ataques

A Campanha da Fraternidade que, em 2021, é ecumênica tem sido alvo de desinformação e ataques de grupos católicos fundamentalistas nos últimos dias. Os ataques têm como vítima principal a pastora luterana, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) Romi Márcia Bencke, que está à frente da realização da campanha 2021. A pastora admitiu ter sofrido agressões pelas mídias sociais, o que tem gerado, inclusive denúncias judiciais. 

Romi Bencke acredita que a campanha de difamação contra ela também tenha motivação para além da religião. “Avalio que esses ataques têm muita relação com o pedido de impeachment que a gente protocolou na Câmara algumas semanas atrás”, diz a secretária-geral do CONIC. Ela foi uma das lideranças religiosas que esteve em Brasília para protocolar o documento que pede o impeachment do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), assinado por um grupo de 380 líderes católicos e evangélicos. 

O que é a Campanha da Fraternidade Ecumênica? 

A Campanha da Fraternidade ocorre no cerne da Igreja Católica do Brasil há mais de 50 anos, sob responsabilidade da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB). Desde os anos 2000 a campanha é realizada de forma ecumênica, a cada cinco anos, e conduzida pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), reunindo diversas denominações cristãs e movimentos. 

A campanha de 2021 tem como tema “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”, com o  objetivo principal: “Através do diálogo amoroso e do testemunho da unidade na diversidade, inspirados e inspiradas no amor de Cristo, convidar comunidades de fé e pessoas de boa vontade para pensar, avaliar e identificar caminhos para a superação das polarizações e das violências que marcam o mundo atual”. 

Em 2021, participam da campanha, organizada pelo CONIC, a Igreja Católica Apostólica Romana, por meio da CNBB; Aliança de Batistas no Brasil; Igreja Episcopal Anglicana; Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil; Presbiteriana Unida; Sirian Ortodoxa de Antioquia; Igreja Betesda (igreja convidada); e CESEEP, organismo ecumênico. O Papa Francisco enviou uma mensagem em apoio à CFE 2021 bem o secretário geral do Conselho Mundial de Igrejas.

Desinformação sobre a CFE e ataques à coordenação 

Entre os vários conteúdos de ataque à CFE 2021 e à coordenação da Pastora Romi Bencke e da CNBB, está um vídeos de grande repercussão, publicado pelo pregador e influenciador católico Anderson Reis. As declarações de Anderson Reis em seu canal do Youtube disseminam desinformação sobre o tema. 

Os ataques à pastora Romi Márcia Bencke e à CNBB se baseiam em afirmações falsas. No vídeo, o autor afirma:

Essa pastora é a favor do aborto, feminista e a favor da ideologia de gênero. Isso é uma agenda que vem sendo imposta para nós e depois dessa pandemia avançou com uma velocidade supersônica. E o dever da igreja que deveria ser uma resistência profunda contra essas trevas do quinto dos infernos está permitindo no Brasil um documento cuja alma desse documento é a favor de tudo isso

Anderson Reis

“Essa pastora é a favor do aborto” diz o influenciador aos 0:43 segundos do vídeo. Anderson Reis realiza aqui prática comum na desinformação, que é mudar o contexto de declarações e favorecer interpretações rasas do conteúdo. 

A pastora Romi Márcia Bencke, registra sua posição sobre o tema no artigo para a Open Society Foundation: é a favor da legalização do aborto, o que diz respeito a uma posição distinta de ser a favor do aborto.

A legalização do aborto é a existência de uma legislação que ampare a mulher que opte por abortar. Envolve acompanhamento psicológico das gestantes, condições específicas para seu cumprimento, e tem um papel relevante no combate às clínicas clandestinas.

Um estudo publicado em 2013, por Karla Ferraz dos Anjos, Vanessa Cruz Santos, Raquel Souzas e Benedito Gonçalves Eugênio, expõe a realidade das mulheres que realizam abortos clandestinos: tem maiores taxas de mortalidade, se encontram desamparadas e geram custos sociais e econômicos para os sistemas de saúde do país. Outro estudo, de Wendell Ferrari e Simone Peres, mostra como a falta de amparo leva a tomadas de decisão trágicas entre jovens que recorrem ao aborto clandestino.

Desta forma, ser a favor da legalização do aborto é se colocar contra o aborto clandestino, e não a favor de que se aborte. A questão é recorrente em debates feministas e busca esclarecer essa diferença primordial entre o direito a se tomar uma atitude e o apoio à atitude.

“O aborto não é um tema bíblico. Como apontou a Pra. Lusmarina Campos Garcia em audiência ao STF existem apenas dois textos no Primeiro Testamento que fazem referência à prática do aborto. O primeiro, em Êxodo 21:22- 23, determina que se uma mulher, por estar envolvida na briga entre o seu marido e outro homem, for ferida e abortar, o agressor deve pagar uma indenização para o marido. Isto significa que, à época, a perda do feto em decorrência de uma agressão sofrida não era considerada grave e passível de penalidade maior, uma vez que o feto não era considerado um “ser vivo”, diz a pastora Romi Bencke no seu artigo.

A segunda situação é ainda mais marcante: “Números 5:11-34, que relata um aborto ritual praticado pelo sacerdote.  Se a mulher abortasse estava comprovado que ela tinha sido infiel e o marido podia puni-la, inclusive com a morte por apedrejamento. Ressalte-se que a punição era por causa da infidelidade e não por causa do aborto realizado”, conclui a pastora, destacando que o debate em torno do aborto comumente se pauta pelo mandamento “não matarás”. “Como pode-se ver, não era considerado vida”, conclui.

Anderson Reis usou de um conteúdo descontextualizado em relação à pastora Romi Bencke para agredi-la, atacando também a CFE. 

O fantasma da ideologia de gênero

Anderson Reis também acusa a CFE 2021 de ser a favor da falaciosa “ideologia de gênero”. Ao acessar o texto base da campanha, Bereia verificou que a palavra “gênero” aparece três vezes no documento, nos itens 67 e 125, destacando a questão da violência contra a mulher:

“Os dados nos mostram quem são as pessoas atingidas pelo sistema de violência. As mulheres, em especial as negras e indígenas, são impactadas em todas as dimensões da sua existência. Observar esta realidade evidencia a necessidade de se discutir as questões de gênero, não se limitando à igualdade entre os sexos, mas, compreendendo que a libertação das mulheres da situação histórica de opressão passa pela discussão da propriedade privada, da divisão sexual do trabalho, da laicidade do Estado e da Teologia quando impõe um patriarcado como modelo divino de hierarquia social. Além disso, é importante salientar que as relações sociais de classe, de gênero, de raça, de etnia estão historicamente interligadas.”

“(…) Efésios (2,1-10) alerta para a necessidade premente de se aceitar plenamente as pessoas, que são diferentes, e ver nas diferenças a riqueza do corpo de Cristo. Não é possível estar com Deus e, ao mesmo tempo, discriminar e desrespeitar as outras pessoas por causa das suas diferenças étnicas, religiosas ou de gênero.” 

Texto-base da CFE

O texto também se manifesta contra a violência contra pessoas LGBTQI+ no item 68:

“Outro grupo social que sofre as consequências da política estruturada na violência e na criação de inimigos, é a população LGBTQI+. O já citado Atlas da Violência de 2020, mostra que o número de denúncias de violências sofridas pela população LGBTQI+ registradas no Dique 100 no ano de 2018 foi de 1685 casos. Segundo dados do Grupo Gay da Bahia apresentados no Atlas da Violência 2020, no ano de 2018, 420 pessoas LGBTQI+ foram assassinadas, destas 164 eram pessoas trans. Percebe-se que em 2011 foram registrados 5 homicídios de pessoas LGBTQI+. Seis anos depois, em 2017, este número aumentou para 193 casos. O aumento no número de homicídio de pessoas LGBTQI+, entre 2016 e 2017, foi de 127%. Estes homicídios são efeitos do discurso de ódio, do fundamentalismo religioso, de vozes contra o reconhecimento dos direitos das populações LGBTQI+ e de outros grupos perseguidos e vulneráveis.”

Texto-base da CFE

A defesa da vida de mulheres e da população LGBTQI+ é relacionada, pelo influenciador católico, como uma “ideologia” em sentido negativo, sendo, portanto, desqualificada.

Bereia já publicou em verificação anterior sobre o fantasma da “ideologia de gênero”, termo falacioso que é objeto de muita desinformação, especialmente entre grupos religiosos. Como demonstra a matéria, líderes políticos e outros grupos de tendência conservadora têm se apropriado dessa pauta para ganhar adesão política, por meio de pânico moral

Consultada por Bereia, a coordenadora nacional do movimento Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG) professora Valéria Vilhena explica que não existe e nunca existiu uma “ideologia de gênero”. “Essa narrativa foi construída para se opor aos direitos da mulher e da população LGBT. Eles constroem esse discurso para mais uma vez se posicionarem e reforçarem a negação da dignidade humana. Essa é a questão. Porque não existe uma “ideologia de gênero” – algo que se referem como uma “crença”, uma crença que se impõe para destruir a família (…) O que há é a construção de uma narrativa se utilizando do conceito “gênero” que vem dos estudos de gênero, mas que não tem nada a ver com o que dizem”, declara.

Texto-base não foi redigido por uma só pessoa

Outra acusação de Anderson Reis, no vídeo que circula nas mídias sociais, é que o texto-base da CFE 2021 é de autoria de uma só pessoa, não tendo a participação da CNBB.

O CONIC publicou nota desmentindo esta afirmação::

“A redação do Texto-Base foi resultado de um processo coletivo de construção, que iniciou no final de 2019. Teve participação direta de pessoas de diferentes áreas do conhecimento, em especial, sociologia, ciência política e teologia. A parte bíblica do Texto contou com a colaboração de biblistas de diferentes igrejas cristãs. Todas pessoas com profundo conhecimento bíblico. Depois de escrito, o Texto-Base foi amplamente discutido por uma Comissão Ecumênica formada por 8 pessoas, sendo 6 indicadas oficialmente pelas igrejas-membro do CONIC, uma igreja convidada e um organismo ecumênico.”

Nota do CONIC

A CNBB publicou nota em que ressalta que a CFE é marca e riqueza da Igreja Católica no Brasil e diz que lhe cabe “cuidar dela, melhorá-la sempre mais por meio do diálogo, assim como nos cabe cuidar da causa ecumênica, um ideal que se nos impõe”.

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Bereia conclui que as informações do vídeo sobre a CFE são enganosas e buscam gerar pânico moral em torno dos temas do aborto e do fantasma da “ideologia de gênero”. O texto-base da campanha, na verdade, defende o fim da violência contra mulheres e pessoas LGBTQI+. 

A Campanha da Fraternidade ocorre desde 1964 e tem como objetivo promover a união entre pessoas de diversas manifestações de fé, tendo apoio do próprio Papa Francisco e de outros líderes religiosos mundiais. 

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Matéria atualizada em 11 de março de 2021 às 9h14 para correção de dado sobre ano de início da CFE.

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Foto de capa: CONIC/Reprodução

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Referências 

Nota da CNBB, https://www.cnbb.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Nota-da-presid%C3%AAncia-da-CNBB-CFE-2021.pdf. Acesso em: 10 mar. 2021.

Nota do CONIC, https://conic.org.br/portal/noticias/3776-leia-a-integra-do-texto-base-da-campanha-da-fraternidade. Acesso em: 09 mar. 2021.

Artigo de Romi Márcia Bencke, https://www.cfemea.org.br/images/stories/publicacoes/laicidade_direito_aborto.pdf. Acesso em: 09 mar. 2021.

Entrevista de Romi Márcia Bencke, http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/606498-bolsonaro-sabe-jogar-muito-bem-com-a-religiao-entrevista-com-a-pastora-romi-bencke. Acesso em: 09 mar. 2021.

Texto-base da Campanha da Fraternidade Ecumênica, https://www.conic.org.br/portal/files/cf_texto_base_2021.pdf. Acesso em: 10 mar. 2021.

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/o-presidente-do-brasil-e-a-falaciosa-ideologia-de-genero/. Acesso em: 10 mar. 2021.

Novo coronavírus e o triunfo dos fundamentalismos

Vassíli Grossman foi um jornalista soviético. Ele era correspondente durante a defesa de Stalingrado e da queda de Berlim, na II Guerra Mundial.  Entre os livros que escreveu está Vida e Destino.

A obra tem uma história curiosa. Ela foi confiscada pela KGB nos anos de 1960 e só foi publicado na década de 1980.  O livro é o relato de um correspondente de guerra que acompanhou, do início ao fim, a Batalha de Stalingrado.

O autor narra sobre os campos de concentração, a vida nos campos de prisioneiros militares, os interesses dos altos comandos da guerra. De um lado, Hitler. E de outro, Stalin.  Grossman capta, e talvez aí esteja a energia dramática da narrativa, a força da insensatez e da irracionalidade humanas. A cidade de Stalingrado já estava toda destruída. Não havia comida, o frio era intenso, mas, apesar disso, os soldados lutavam por casas que estavam parcialmente em pé.  

Deste livro tirei uma frase que carrego comigo desde quando o li. Ela é como um Salmo ou como um daqueles mantras que a gente sussurra continuamente para guardar fundo na memória e no coração o que não desejamos esquecer. A frase diz: “Quando o fascismo triunfa, o ser humano deixa de existir, restam apenas criaturas que sofrem modificações internas”. Sobre esta modificação interna das criaturas humanas em contextos desumanizados é que tenho pensado bastante. 

O Brasil nunca teve um processo profundo de humanização.  Os crimes contra seres humanos marcam nossa história.  O genocídio indígena, a escravização das pessoas negras, os feminicídios, as contínuas e permanentes violações da Mãe Terra, as várias ditaduras que reprimem e assassinam seus opositores e opositoras, as mortes de deuses e deusas pela intolerância religiosa, as torturas e desaparecimentos políticos durante os anos da ditadura civil-militar. 

 Somos um país formado por criaturas modificadas que se alimentaram da dor e do sofrimento alheios. A capacidade de refletir e assumir a responsabilidade destas atitudes também é algo que nos falta.

Ernst Bloch afirma que o grau de responsabilidade individual depende do poder de ação dos sujeitos. Isso significa que as classes e as elites dirigentes têm o dever de ser as primeiras a assumir suas responsabilidades. No entanto, tais elites se negam a qualquer responsabilização dos crimes, dos genocídios, das escravizações. O sofismo cínico busca eliminar a possibilidade de algum peso de consciência. Nossa história de horror fica condenada a uma eterna repetição. 

No Brasil, um caminho que tende a ser utilizado para a expiação da culpa e da responsabilidade é o cristianismo, embora, importante ressaltar, a fé cristã se oriente pela responsabilização dos erros humanos.  

O pecado, que é a tentação eterna do ser humano, colocar-se no lugar de Deus e decidir sobre a vida e a morte, exige autorreflexão e transformação.  

Mas parece que o cristianismo e seus valores foram manipulados para aliviar qualquer possibilidade de responsabilização pelos inúmeros crimes contra a humanidade aqui praticados. Com isso, permanecemos como um país de criaturas com modificações internas. 

Esse cristianismo distorcido, manipulado e instrumentalizado para os interesses das criaturas com modificações internas, é o que está presente hoje na política brasileira. Trata-se de um cristianismo fundamentalista aonde Deus é mero instrumento do mercado como ideal de Reino. Em obediência e reverência a este reino, valem todos os sacrifícios. Este é o triunfo dos fundamentalismos.  

Quando vemos altas autoridades e “pessoas do bem” argumentando que é melhor perder algumas vidas para que a economia seja salva, podemos dizer que deixamos de existir.  Esta também é a morte de Deus. É a repetição da cruz.  

Novamente, são algumas poucas as pessoas que ficarão sob os pés da cruz velando o Cristo que está se esvaindo em medo, dor e solidão. Estas pessoas são as mães que perderam seus filhos e filhas para o racismo estrutural, para as diferentes formas de violência, para as execuções extra judiciais, para a fome. Há bastante tempo chamamos a atenção para a relação simbiótica entre o fundamentalismo de mercado e o fundamentalismo religioso.

O COVID-19 expõe muito bem essa relação, quando vemos o Estado justificando o corte de gastos públicos e injetando dinheiro nas veias sedentas dos bancos, mesmo que isso vá significar a morte de muitos seres humanos.

Esta relação está presente no negacionismo dos conhecimentos científicos e nas mentiras pseudo-religiosas usadas para ludibriar as pessoas e manter Deus escravizado a serviço do mercado. Estas são as homilias de uma religião que se abastece e se alimenta do sofrimento do outro. 

Outro dia, li um texto de Mike Davis com um título bem sugestivo: “A crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo Capitalismo”.  No texto, Davis chama a atenção que o novo coronavírus escancara a desigualdade de classes que alimenta o sistema capitalista. Ele cita o exemplo da indústria de asilos nos EUA que têm fins lucrativos.  Estas clínicas atendem em torno de 1,5 milhões de pessoas idosas. Segundo o autor, é um mercado altamente lucrativo, competitivo. O número de profissionais que trabalham nestas clínicas é sempre inferior ao que realmente seria necessário. O primeiro epicentro do coronavírus nos EUA foi, justamente, em uma dessas clínicas, localizada em um bairro periférico de Seattle. Entre os vários problemas apontados para entender a proliferação do vírus está o fato de que as pessoas que trabalham nesses locais, em função dos baixos salários, atuam em mais de uma clínica. Com isso, tornam-se, sem querer, potenciais transmissoras do COVID-19.  

Um exemplo muito cotidiano do triunfo do fundamentalismo e de como nos tornamos criaturas modificadas. 

 Agora, o que chama a atenção nisso tudo, é a dificuldade em nomear este monstro metamorfoseado de deus. Há uma resistência grande, inclusive entre as criaturas menos modificadas, em dizer que o nome deste monstro é capitalismo. Alguns até celebram o fato aparente de o novo coronavírus ter acabado com o neoliberalismo financeirizado. Mas temem em falar o nome do onipotente capitalismo.  O que vem depois disso tudo?  Não sabemos.  Para alguns, se inaugurará um mundo mais solidário. Para outros, a aposta pode ser que o novo coronavírus contribuirá para a tão sonhada higienização social: os que sobram e atrapalham o sistema serão eliminados. Ficarão apenas as pessoas “justas” e as produtivas. É a realização do Reino do Mercado.  Uma sociedade mais totalitária, com maior controle, maior divisão de classes, mais hierarquias e novas fronteiras tende a ser um cenário possível.  Este é o triunfo dos fundamentalismos.  

E Jesus, nisso tudo?  Ele é um ser, pregado na cruz, em agonia! ___

Fonte: alc-noticias.net