Isenção previdenciária para líderes religiosos foi implementada de maneira ilegal

Recentemente jornais de grande circulação noticiaram que o presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais (Sindifisco Nacional) Isac Falcão, afirmou que a assinatura do Ato Declaratório nº 1 de 29 de julho de 2022, que isenta líderes religiosos de contribuição previdenciária, foi implementado de forma ilegal pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), e os demais contribuintes estariam pagando a aposentadoria dos líderes religiosos.

Acusações do presidente do Sindifisco Nacional

Segundo Isac Falcão, a medida adotada pelo governo Jair Bolsonaro extrapolou a competência da Receita Federal e fez com que o ônus do benefício concedido a pastores recaísse sobre a sociedade. 

Ainda, a adoção da medida não estaria de acordo com os procedimentos legais para este tipo de ato. Normalmente, segundo o presidente do Sindifisco Nacional, o ato teria que passar por conselhos técnicos da Receita Federal, o que não teria se observado.

Imagem: reprodução de foto de Isaac Falcão no site de CartaCapital

À época, o portal Poder 360 chamou atenção para o fato de que a publicação do ato oficial ocorria a apenas duas semanas do início do período eleitoral, em tentativa de “conquistar voto do eleitorado evangélico”.

A delegacia sindical dos auditores federais de Curitiba também emitiu nota por ocasião da publicação do ADI, apontando-o como medida “ilegal e eleitoreira” e afirmando que “a classe trabalhadora brasileira, tão fortemente taxada”, continuaria “pagando a conta”.

Além de Isac Falcão, o presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) à época da assinatura do ADI, Mauro Silva, também discordou da decisão. Ao Metrópoles, o auditor afirmou que a publicação veio em tempo inoportuno.

Segundo Silva, a medida poderia aguardar o término do período de eleição sem prejuízo para nenhum dos envolvidos, visto que a justificativa de dúvidas quanto à legislação é na verdade uma situação antiga e a pressa não se fazia necessária.

Implementação do ADI

O Ato Declaratório Interpretativo nº 1 foi publicado no Diário Oficial da União, em 1 de agosto de 2022, e assinado pelo então Secretário Especial da Receita Federal Júlio Cesar Vieira Gomes.

Segundo o ADI nº 1, os valores pagos por entidades religiosas a ministros de confissão religiosa, a membros de institutos de vida consagrada, congregação ou ordem religiosa “não são considerados como remuneração direta ou indireta” e a “existência de diferenciação quanto ao montante e à forma nos valores despendidos (…) não caracteriza esses valores como remuneração sujeita à contribuição”.

Alguns dias após a assinatura do ADI, em seu primeiro ato de campanha do período eleitoral de 2022, o então presidente Jair Bolsonaro se reuniu com lideranças religiosas em Juiz de Fora (MG).

Segundo reportagem da Folha de São Paulo, durante a reunião, Bolsonaro teria discursado sobre a medida em resposta à indagação de um pastor. “A reivindicação já foi aceita, [o ato] está publicado no Diário Oficial da União”.

E mais adiante o ex-presidente teria incitado a ideia de intolerância ao afirmar que “O que ele [pastor] reivindicou está claríssimo na nossa Constituição, mas por questões de, no meu entender, perseguição, isso não era cumprido. E a Receita agora entendeu”, declarou o ex-presidente na ocasião.

Em matéria publicada em 21 de abril, sobre apuração do Tribunal de Contas da União (TCU), a CNN noticiou ter ouvido técnicos do Ministério da Fazenda que afirmam que todas as mudanças foram tratadas por Bolsonaro com Júlio César Vieira Gomes.

A CNN diz, ainda, que, em declarações ao TCU, o ex-secretário afirmou ter seguido o processo regular de tramitação da Receita. Na época, o órgão divulgou uma nota sobre a medida, dizendo se tratar da consolidação de um entendimento já vigente sobre o assunto em um único documento.

Quem é Júlio Cesar Vieira Gomes

Júlio Cesar Vieira Gomes, que assinou o ADI nº 1, é um dos envolvidos no recente caso das joias sauditas não declaradas à Receita pelo governo Bolsonaro. Após a repercussão do caso, Gomes pediu demissão do cargo, conforme relata o portal UOL. Segundo o portal Poder360, o atual governo tornou sem efeito a exoneração, em virtude da investigação sobre o caso das joias.

Imagem: reprodução de foto de Julio Cesar Vieira Gomes no site da Receita Federal

Segundo o portal G1, durante as tentativas frustradas de recuperação das joias junto à Receita, Jair Bolsonaro teria nomeado Vieira Gomes ao cargo recém-criado de adido tributário em Paris, na França. 

Após a extinção do cargo pelo atual Ministro da Fazenda Fernando Haddad, políticos ligados a Bolsonaro, dentre os quais alguns integrantes da bancada evangélica, tentaram, sem sucesso, um novo cargo para Gomes junto ao governo estadual paulista de Tarcísio de Freitas.

Igrejas são acusadas de sonegação fiscal

Matéria veiculada pelo portal Band News revela que Receita Federal descobriu repasses financeiros das igrejas aos pastores que angariavam mais dízimos e ofertas, ação interpretada como participação nos lucros. Desta forma, as instituições geraram um vínculo empregatício com remuneração por tarefa, e a Receita Federal entende que passaram a sonegar uma contribuição previdenciária.

O ADI estendeu a isenção previdenciária a pastores. Antes de agosto de 2022, quando o ato foi assinado pelo então Secretário Especial da Receita Federal Júlio Cesar Vieira Gomes, os líderes religiosos eram obrigados a recolher a contribuição previdenciária.

Logo, a atenção dos auditores voltou-se para o fato desses ganhos estarem sendo propositalmente considerados como prebenda, a remuneração fixa para a subsistência do eclesiástico.

Análise da Receita Federal e TCU

A CNN divulgou que “tudo o que foi constatado até agora foge da normalidade”. E que pelo que já foi apurado até o momento, o Tribunal deve orientar a Receita a revogar a norma ou, até mesmo, editar um novo texto que exclua as possibilidades de isenção de ganhos em casos como “participação de lucros”, “cumprimento de metas” e auxílios atualmente permitidos sem a necessidade de comprovantes, como por exemplo gastos com saúde e educação.

Ainda segundo o canal de notícias, o relator do caso na Corte de Contas é o ministro Aroldo Cedraz. O documento de análise da medida que favoreceu líderes religiosos deve ser entregue em breve e seguir para a Câmara dos Deputados.

Em 27 de abril, o Jornal da Band noticiou, que a Receita Federal cogita revogar o ADI nº 1, por conta de um esquema de sonegação praticado por igrejas evangélicas. As instituições religiosas foram multadas e também devem ao Fisco 20% sobre o valor sonegado.

***

Bereia considera verdadeiro o conteúdo checado. O ato interpretativo oficializado durante o governo do ex-Presidente Jair Bolsonaro promove benefícios tributários a líderes religiosos, em consonância com o que relata o presidente do Sindifisco Nacional.

Há farto material noticioso que relata os trâmites de processos envolvendo a relação de igrejas e pastores com a Receita Federal e as críticas promovidas por membros de órgãos do fisco, como Sindifisco Nacional e Anfip, convergem no sentido de apontar irregularidades.

Referências de checagem:

Carta Capital. https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/bolsonaro-fez-populacao-pagar-por-aposentadoria-de-pastores-acusa-presidente-do-sindifisco/ Acesso em: 8 mai 2023

Poder 360. https://www.poder360.com.br/economia/ato-de-bolsonaro-faz-com-que-povo-banque-pastores-diz-auditor/ Acesso em: 8 mai 2023

Metrópoles. https://www.metropoles.com/brasil/eleicoes-2022/governo-federal-amplia-isencao-de-impostos-para-salarios-de-pastores Acesso em: 8 mai 2023

Diário Oficial da União. https://www.in.gov.br/web/dou/-/ato-declaratorio-interpretativo-rfb-n-1-de-29-de-julho-de-2022-419213935 Acesso em: 8 mai 2023

Receita Federal. http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=125275 Acesso em: 8 mai 2023

Jornal da Band. https://www.band.uol.com.br/noticias/jornal-da-band/videos/receita-quer-rever-isencao-de-pastores-17158776 Acesso em: 8 mai 2023

G1. https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2023/03/20/bolsonaristas-tentaram-emplacar-ex-chefe-da-receita-no-governo-de-sp-tarcisio-vetou.ghtml Acesso em: 8 mai 2023

Poder 360. https://www.poder360.com.br/governo/governo-barra-saida-de-ex-chefe-do-fisco-envolvido-no-caso-das-joias/ Acesso em: 8 mai 2023

Sindifisco Nacional. https://www.sindifisconacional.org.br/quem-somos/ Acesso em: 8 mai 2023

Auditores Fiscais https://www.auditoresfiscais.org.br/curitiba/?area=ver_noticia&id=4295 Acesso em: 8 mai 2023

Band News https://bandnewstv.uol.com.br/conteudo/receita-federal-estuda-rever-isencao-de-pastores-por-esquema-de-sonegacao Acesso em: 8 mai 2023

CNN Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/tcu-apura-indicios-de-ilegalidade-em-isencao-de-tributos-para-religiosos-concedido-por-bolsonaro/ Acesso em: 8 mai 2023

UOL. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/04/10/ex-secretario-receita-federal-demissao-joias-jair-bolsonaro.htm Acesso em: 8 mai 2023

Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/04/ato-de-bolsonaro-faz-sociedade-bancar-aposentadoria-de-pastores-diz-presidente-do-sindifisco.shtml Acesso em: 8 mai 2023

Metrópoles. https://www.metropoles.com/brasil/eleicoes-2022/governo-federal-amplia-isencao-de-impostos-para-salarios-de-pastores Acesso em: 9 mai 2023

Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/03/isencao-de-bolsonaro-a-pastores-entra-na-mira-de-receita-e-tcu-apos-suspeita-de-ato-atipico.shtml Acesso em: 9 mai 2023

Receita Federal. https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/historia-receita/galeria-secretarios/julio-cesar-vieira Acesso em: 9 mai 2023

Bereia é destaque no jornal O Estado de S.Paulo

O surgimento e o trabalho do coletivo Bereia foi tema de reportagem da edição de hoje do jornal O Estado de São Paulo. Nossa editora-geral Magali Cunha foi entrevistada e discorreu sobre o perfil diverso da equipe, a metodologia de checagem que junta jornalismo e pesquisa em religião, que tem sido compartilhada no meio religioso para combater a desinformação. Leia um trecho:

“O coletivo é o primeiro especializado em fact-checking religioso. Ao que se sabe, segundo Sérgio Lüdtke, editor do Projeto Comprova, é também o único projeto assim no mundo. O diferencial do Bereia não para por aí. Magali relatou que, após pesquisar o modus operandi de agências de checagem no Brasil e no exterior, o grupo criou sua própria metodologia “que junta jornalismo especializado em religião com fact-checking e com pesquisa voltada para a temática da religião no Brasil”

A reportagem completa pode ser acessada no Estadão, mas também foi distribuída no UOL, na IstoÉDinheiro, no Zero Hora, e no Jornal de Brasília.

***

Foto de capa: Wilton Junior/Estadão

A ditadura militar fechou, sim, igrejas, deputado!

Cristãos e cristãs brasileiros têm sido desafiados, dia após dia, a um exercício permanente de compreensão da realidade e interpretação dos sinais de vida e morte que nos cercam. 

Vivemos tempos em que, animados por um governo claramente identificado com ideias e ideais antidemocráticos e que denega mesmo os notáveis avanços da “Constituição Cidadã” de 1988, muitos dos “nossos” irmãos e irmãs cristãos questionam e reprovam a decisão de se dar autonomia a Estados e Municípios para legislar sobre o funcionamento de templos e demais locais de culto. A decisão foi claramente embasada pelas características específicas dos templos, entendidos como locais potencialmente propensos à contaminação em grande escala (por exemplo, uma igreja na Coréia do Sul foi o principal polo dispersor do vírus). Justamente neste contexto, vemos aumentar a disparidade de compreensões entre o que seriam posicionamentos “verdadeiramente cristãos”.  

É dentro desse imenso mostruário de desinformação que se insere a fala do conhecido deputado federal pastor Marco Feliciano (Republicanos/SP). Ele afirmou, em postagem em mídias sociais, que a ditadura não fechou igrejas, indicando nas entrelinhas que atualmente estaria havendo uma perseguição velada às igrejas evangélicas. 

Qualquer compreensão de nosso tempo, no entanto, passa necessariamente pela leitura de nosso passado recente e pela forma como igrejas e cristãos se relacionaram com os governos autoritários. Estes são lembrados mesmo após haverem infligido males terríveis a pessoas e instituições, incluindo aí igrejas e cristãos comprometidos com uma sociedade justa e livre, fiéis seguidores dos ensinamentos de Cristo.

Vejamos o que nos diz uma pesquisa breve no relatório da Comissão Nacional da Verdade

  • Foram identificados 352 cristãs e cristãos que sofreram violência durante a ditadura;
  • Destes, 273 eram católicas ou católicos e foram presos, entre bispos, padres, religiosos, agentes de pastoral e pessoas leigas da igreja;
  • Dentre os católicos, 18 foram assassinados ou foram desaparecidos pelo regime (quatro padres, três religiosos e religiosas), 17 foram banidos, expulsos ou exilados, todos depois de prisão e tortura;
  • O bispo D. Adriano Hipólito (da Diocese de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro) foi sequestrado e humilhado, bem como a Catedral de São Pedro, sob sua jurisdição, foi atacada em um atentado;
  • 27 evangélicos foram presos, quase todos com torturas aplicadas (metodistas, presbiterianos, um assembleiano e uma luterana, sendo alguns pastores e estudantes de teologia);
  • Dentre os evangélicos e evangélicas, sete foram mortos ou permanecem desaparecidos, após quase 50 anos, e 15 foram banidos, expulsos ou exilados, quase todos depois de prisão e tortura;
  • Duas faculdades de Teologia foram fechadas com professores demitidos e alunos expulsos (a Batista do Norte, em Recife, e a Metodista, em São Bernardo do Campo).

Como se vê, houve ataque indiscriminado a religiosos, boa parte deles delatados por lideranças de suas igrejas, em decorrência de sua maneira de professar a fé em Cristo.  

E também ocorreu forte perseguição a igrejas e instituições, pois qualquer manifestação de oposição à situação de censura, perseguição e ausência de democracia instalada no Brasil com o golpe de 1964 e aprofundada com a instauração do AI-5, em dezembro de 1968, passou a justificar perseguições, torturas e assassinatos. Numa alegoria, não seria difícil imaginar o Jesus contestador, que nos inspira e guia, sendo conduzido aos porões da Operação Bandeirantes ou ao DOI-CODI.

Há relatos de membros da Igreja Presbiteriana Unida de Vitória, das Igrejas Presbiterianas do Brasil de Ipanema e de Acari, na Cidade do Rio de Janeiro, que esclarecem que, sim, estas igrejas foram fechadas pela ditadura militar brasileira. 

E tão importantes quanto os ataques desferidos a templos e instituições, locais de formação e comunhão daqueles que, comprometidos com sua fé, acreditavam que a tortura, a censura e as demais formas de opressão não estavam em acordo com os ensinamentos de Jesus, foi a perseguição, morte e tortura destes mesmos cristãos. “Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos?” (1 Coríntios 6.19).

Mais do que nunca, somos chamados à reflexão para, à luz dos ensinamentos de Jesus, nos posicionarmos a favor da vida, ainda que isso nos custe o sacrifício de, por determinado tempo, não nos confraternizarmos presencialmente com nossos irmãos e irmãs queridos. Vivemos um momento em que medidas como essa são necessárias para a garantia da saúde e bem-estar de todos. Que o nosso Deus da vida e da saúde nos abençoe e guarde com seu Santo Espírito!

***

Foto de Capa: Pixabay/Reprodução

Religiosos viralizam vídeos com máscara invisível e receita contra a Covid-19 nas mídias sociais

Circulam em grupos de WhatsApp dois vídeos com conteúdo desinformativo a respeito da Covid-19. Em um deles, o pastor da Assembleia de Deus em Praia Grande (SP) Waldeir de Oliveira, ensina uma receita de gargarejo que supostamente eliminaria o coronavírus.

O outro trata de um anúncio da personagem de humor religioso “Pastor” Adelio, que venderia máscaras invisíveis que protegeriam e curariam o coronavírus por R$ 300. Esse vídeo foi veiculado com a legenda “Este superou o pastor Valdomiro”, em referência ao líder da Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD) Apóstolo Valdemiro Santiago, que no início da pandemia no Brasil vendeu sementes de feijão com a promessa de falsa cura para a Covid-19, conforme verificado anteriormente por Bereia.

É falso que gargarejo mate coronavírus e que receita tenha sido recomendada por Israel

O vídeo do pastor Waldeir de Oliveira mostra a preparação de uma receita anti-coronavírus com água morna, uma colher de chá de bicarbonato e limão para gargarejo. Ele ainda diz que o limão pode ser substituído por vinagre de maçã.

“O coronavírus fica quatro dias alojado na garganta e os judeus mandaram essa receita para todo cidadão de Israel. E lá o coronavírus não está reagindo. Pode ver, a mídia não fala de Israel. Lá estão fazendo isso e lá não se propagou. Você vai fazer todos os dias antes de dormir e você não vai pegar o coronavírus. Porque o coronavírus demora quatro dias alojado na garganta”

Pastor Waldeir de Oliveira

O material foi alvo de verificação da Agência Lupa. De acordo com o médico e professor da Universidade de São Paulo (USP) João Focaccia, procurado pela Lupa, o vírus vai das vias respiratórias ao pulmões e fica na garganta e não o contrário, como o vídeo do religioso quer fazer crer. Além disso, é também falso que o governo israelense recomenda a todos os cidadãos a prática desse gargarejo. O site Fact-Check.org verificou que o governo de Israel tomou medidas de isolamento social para combater o vírus, como fechamento de serviços não-essenciais e quarentena.

Desde o início da pandemia, Israel registrou acima de 350 mil casos e pouco mais de 2.900 mortes (até o momento de publicação desta reportagem). Para efeito de comparação, a partir dos dados disponibilizados pela universidade norte-americana John Hopkins, Israel tem 318 mortes por milhão de habitantes enquanto essa proporção é 868 no Brasil.

Mentiras como esta circularam antes da gravação do pastor Waldeir de Oliveira, que é de maio e repercutiu na imprensa do litoral paulista. O jornal A Tribuna procurou o religioso, que alegou ter falado sobre prevenção em vídeo. No entanto, conforme a transcrição reproduzida acima, o vídeo leva a entender com a afirmação de que a receita do pastor evita a infecção, gerando desinformação.

A “máscara espiritual” do “Pastor” Adelio

Já o vídeo do “Pastor” Adelio acabou se configurando uma “pegadinha” na qual muitas pessoas relacionadas a igrejas caíram bem como a própria mídia de verificação de conteúdos. A Agência Lupa realizou verificação do conteúdo do vídeo em maio deste ano e concluiu que muitas pessoas que acompanham a personagem nos espaços religiosos já sabiam, que se trata de uma sátira.

No vídeo que acabou sendo compartilhado por pessoas que acreditaram ter sido produzido por um pastor verdadeiro, Adelio diz:

“Meus irmãos, aqui é o Pastor Adelio e eu quero dizer a vocês que estou aqui também como representante de Cristo para dar uma solução aos irmãos que vêm sofrendo aí com essa pandemia. Nós estamos oferecendo máscaras, que você pode comprar pela internet, através da Igreja do Pastor Adelio. Aí muita gente fala ‘mas pastor, eu abri a caixa, não tinha nada’. É invisível, porque o poder de Deus é invisível. Você vê o vento? Não vê. Mas você sente. A máscara do Pastor Adelio é uma máscara espiritual. É pra você sentir. Você coloca… Olha, eu estou usando a minha agora (o pastor faz o gesto de por a máscara no rosto). Coloquei. Olha, estou usando. Esta é a máscara do Espírito Santo. Contra essa não tem corona, não tem H1N1, HB, HV, HVI, HIV… Não tem. Porque a máscara do Espírito Santo…Olha, você pode até puxar e você sente (o pastor faz o gesto como se estivesse puxando a máscara). Então você que quer comprar a máscara contra o coronavírus, você entra em contato, tá aqui o número da conta. Você não vai comprar, você vai dar uma oferta, quanto você quiser, a partir de 300 reais. E você meu irmão, não só estará protegido, como será curado. Aleluia?”.

Humorista Márcio Américo representando o personagem Pastor Adelio

O Pastor Adelio é um personagem fictício, criado pelo humorista paranaense Márcio Américo. Na página oficial do humorista no Facebook, a descrição informa que “Pastor Adelio, é um personagem criado pelo humorista Marcio Americo, quaisquer semelhanças com pessoas, nomes ou fato, tera (sic) sido mera coincidência”.

Mesmo se tratando de uma performance, muitos usuários de mídias sociais compartilharam o vídeo como se se tratasse de mensagem de um pastor verdadeiro. O humorista divulga por meio de sua página no Facebook cursos online sobre “teologia do absurdo” e promove lives.

Márcio Américo, que foi entrevistado, em 2014, no antigo Programa The Noite, do SBT, tem canal no Youtube, onde os vídeos tratam de temas ligados ao cristianismo com humor. Criado em abril de 2009, o canal conta com 145 mil inscritos e os vídeos têm centenas de milhares de visualizações.

A personagem Pastor Adelio já foi tema de estudos acadêmicos publicados em 2016 e 2018.

***

O Coletivo Bereia conclui que o conteúdo dos dois vídeos que circulam entre grupos cristãos é falso. O primeiro vídeo, publicado por um pastor da Assembleia de Deus, desinforma ao divulgar uma receita caseira que supostamente eliminaria o coronavírus do organismo, sem embasamento científico e ainda faz uso do imaginário em torno de Israel para dar credibilidade à farsa. O segundo vídeo, divulgado amplamente em mídias sociais, se trata de conteúdo humorístico, sátira explicitada pelo criador, que foi apropriado por disseminadores de desinformação. Bereia alerta que a ampla divulgação do conteúdo analisado, sem a devida contextualização, representa riscos para o direito à informação e para a preservação de vidas.

***

Referências

Portal UOL, https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/12/ministerio-da-saude-fake-news-mpf.htm. Acesso em: 10 dez. 2020.

Agência Lupa, https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/12/09/verificamos-limao-bicarbonato-israel/. Acesso em: 10 dez. 2020.

Fact-Check, https://www.factcheck.org/2020/04/lemon-juice-tea-does-not-cure-covid-19-in-israel-or-anywhere-else/. Acesso em: 10 dez. 2020.

Johns Hopkins University, https://coronavirus.jhu.edu/map.html. Acesso em: 10 dez. 2020.

Reuters, https://in.reuters.com/article/uk-factcheck-coronavirus-israel/false-claim-there-have-been-no-deaths-in-israel-due-to-covid-19-drinking-sodium-bicarbonate-and-lemon-kills-the-virus-idUSKBN21O1U2. Acesso em: 10 dez. 2020.

A Tribuna, https://www.atribuna.com.br/cidades/praiagrande/pastor-de-praia-grande-espalha-fake-news-com-receita-que-cura-o-coronav%C3%ADrus-v%C3%ADdeo-1.100027. Acesso em: 10 dez. 2020.

Agência Lupa: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/05/18/verificamos-pastor-adelio-coronavirus/. Acesso em: 11 dez. 2020

Pastor Adelio (Facebook): https://m.facebook.com/PastorAdelio/. Acesso em: 11 dez. 2020

Márcio Américo (Youtube): https://youtube.com/c/M%C3%A1rcioAm%C3%A9rico. Acesso em: 11 dez. 2020

Coletivo Bereia: https://coletivobereia.com.br/e-verdade-que-apostolo-valdemiro-santiago-oferece-semente-que-cura-covid-19/?amp. Acesso em: 12 dez. 2020

Rede Fale propõe manifesto contra o “Voto de Cajado”; leia a íntegra

Um manifesto pela democracia, pelo exercício consciente do voto e da participação popular, com a devida distinção de papéis entre Estado e Igreja. É isto que propõe a Rede FALE, uma organização de promoção da transformação social e de esforços pela justiça social, dignidade humana e defesa dos direitos humanos.

A organização propôs o Manifesto contra o Voto de Cajado no dia 28 de outubro de 2020, que, entre outros pontos, denunciou as práticas de uso do púlpito religioso como espaço de campanha direta ou indireta para candidatos ou partidos, a bênção a um candidato ou partido por líderes religiosos, a venda de apoio político por denominações ou comunidades, a definição de candidaturas “oficiais” de igrejas, a utilização da Bíblia como instrumento para legitimar ou demonizar a candidatura de quaisquer candidatos e qualquer esquema de produção de desinformação.

Abuso de poder religioso nas eleições

Embora o abuso de poder religioso não seja previsto em lei, as regras em vigor estabelecem punições para candidatos que cometem irregularidades e abusos, como indica esta reportagem da Agência Pública, sobre campanhas em templos religiosos.

O Coletivo Bereia, iniciativa de enfrentamento à desinformação em ambientes digitais religiosos, endossa a necessidade do compromisso inegociável com a verdade para que as eleições sejam limpas e justas.

O Manifesto contra o Voto de Cajado na íntegra

Leia o Manifesto da Rede Fale na íntegra abaixo:

1. É chegado mais um momento de corrida eleitoral na democracia brasileira. Tradicionalmente, as eleições são, para muitas pessoas, os únicos momentos em que se propõem debater a participação política. Lamentamos que a reflexão sobre nossa realidade política não seja parte do dia a dia, no acompanhamento de parlamentares, na discussão das grandes questões nacionais, na participação social e no acompanhamento de políticas públicas, o que nos permitiria dar um salto qualitativo na construção de nossa democracia e num projeto de nação mais justo e igualitário, com ética na política e boa governança nas políticas públicas.

2. Como observado desde a redemocratização e de forma crescente nos últimos anos, o voto evangélico é um dos componentes de grande destaque do processo eleitoral. Fruto da maciça expansão evangélica ocorrida nos últimos anos, a participação cada vez mais ativa de figuras evangélicas das mais variadas formas e concepções políticas, bem como de linhas teológicas na política brasileira impõe um desafio de análise a todos que desejam compreender a conjuntura eleitoral. Se, por um lado, o tradicional desinteresse evangélico pela política já foi superado e cada vez mais os crentes deixam de voltar seus olhares apenas para o porvir; por outro, o investimento evangélico na política comporta uma série de práticas distintas e heterodoxas que não estão em consonância nem com a melhor tradição cristã de participação política como William Wilberforce, Martin Luther King Jr., José Míguez Bonino, Guaracy Silveira, Paulo Wright; nem com valores republicanos e democráticos.

3. No Brasil, há dois perigos diante do cristão que compreende que precisa atuar politicamente: O primeiro é achar que simplesmente por “ser crente” está abençoado para a política. Essa é a concepção que leva milhões de brasileiros a votar no “pastor” ou no “irmão abençoado pelo pastor”. Como consequência, muitos parlamentares são eleitos sem compromisso com a justiça ou a democracia, sem coerência partidária, programática ou ideológica, votando sempre para a expansão do poder de suas igrejas, associações, rádios e empresas. Por fim, acaba-se acreditando que a única – e mais rápida – solução para o Brasil é eleger um governante ou parlamentar “crente”, e declarar de boca que “o Brasil é do Senhor Jesus Cristo”. O segundo problema tem maior profundidade: é quando os cristãos acham que podem transformar a declaração fundamental do “eu creio” da sua fé em lei a ser imposta pelo Estado. Isso ocorre quando queremos reduzir o que consideramos a Revelação de Deus a mera proposição de solução para nossos problemas cotidianos, acreditando que existe uma “política cristã” ou uma “economia cristã”; ou seja, que sistemas políticos e econômicos podem expressar “fé”. No entanto, nossa participação deve atender as necessidades estruturais do país, com justiça, mas não podem expressar fé no sentido da revelação de forma pura e simples.

4. Nós da Rede FALE, cidadãs e cidadãos cristãos compreendemos e identificamos nossa missão na defesa dos direitos humanos e da justiça, temos denunciado há cerca de uma década o “voto de cajado”, assim conceituado a partir de uma metáfora que carrega em si o emblema da modernização conservadora que tanto nos assola: trata-se da releitura das velhas práticas de exercício do poder, incidindo de forma autoritária sobre o comportamento eleitoral da população (consagrado na literatura política como “voto de cabresto”), agora replicadas por pastores evangélicos junto a seus rebanhos nos arraiais evangélicos de todo o país. Evidentemente, nossa denúncia tem por alvo certas formas específicas de interseção entre as campanhas eleitorais e o eleitorado evangélico. Queremos afirmar novamente, de forma clara e inequívoca, nossa perspectiva sobre o que consideramos como “voto de cajado” e uma aberta condenação desta prática como traição à melhor tradição cristã de participação política.

5. Declaramos que a fé não pode ser tratada como moeda para se conseguir vantagens materiais ou simbólicas e, lamentamos que a sede de poder seja ainda hoje uma tentação para muitas lideranças cristãs. Pactos espúrios com partidos ou candidatos para conseguir benefícios para igrejas ou denominações, infelizmente costumam acontecer “por trás dos púlpitos”, durante as campanhas eleitorais. No entanto, o papel da Igreja na sociedade, como bem disse o pastor batista Martin Luther King Jr., não é servir ao Estado ou ser seu senhor, mas zelar para ser sua consciência crítica. Portanto, entendemos que a Igreja, deve estar pronta para o Serviço, para a busca da Justiça e para a propagação do Amor, valores capazes de transformar as estruturas da sociedade.

6. Somos a favor de que haja nas igrejas um processo comunitário de reflexão, oração, que a investigação da estrutura democrática seja costumeira, para que seus membros votem com ética e discernimento.

7. Denunciamos, portanto, como “voto de cajado”, as seguintes práticas e outras similares que atentem contra a democracia.
– O uso do poder pastoral para guiar a consciência dos fiéis, em benefício de qualquer candidato.
– A utilização das Sagradas Escrituras ou de imagens bíblicas, a fim de legitimar a candidatura de uns e demonizar a candidatura de outras figuras públicas.
– A venda da consciência e dos votos dos membros da igreja a algum candidato, em troca de recompensas materiais feitas à liderança, congregação ou denominação.
– A permissão do uso do púlpito como plataforma de propaganda partidária ou de apresentação de quaisquer candidatos para fins eleitorais.
– A transferência da imagem de pastores ou líderes religiosos para candidatos em propaganda eleitoral, afirmando-os como candidatos escolhidos por Deus ou demonizando seus concorrentes.
– O compromisso com a verdade e portanto com o combate ao uso de informações falsas, o combate a destruição de reputações baseada em mentiras. Precisamos identificar e denunciar todo esquema de produção de “fake news”, o que na prática nada mais é do que produção de mentiras.

8. Convocamos os irmãos e irmãs a terem cuidado com lideranças que defendem que as Igrejas tenham “candidatos oficiais”.Que avaliem propostas e programas de governo, que investiguem a trajetória dos candidatos, compreendam quais as principais funções e papéis que serão desempenhados pelos candidatos, votando portanto, com sua consciência!

9. Cumpramos com integridade e espírito público nossa vocação de cidadãos e cidadãs brasileiros. Para os nossos irmãos e irmãs de fé, nosso estímulo é: “Pratique a justiça, ame a misericórdia e ande humildemente com o seu Deus” (Miquéias 6.8).

Manifesto Rede Fale – Voto de Cajado

***

Foto de capa: Rede FALE/Reprodução

Espiritualidade em tempos de pandemia

Claudio de Oliveira Ribeiro*

“Os que confiam no Senhor  renovam as suas forças.

Sobem com asas como águias. 

Correm e não se cansam.

Caminham e não se fatigam” 

(Isaías 40: 31)

“Se não der, tenta ligar
A gente resume a distância
Me conta da tua janela
Me diz que o mundo não vai acabar”.

“Me conta da tua janela”, Canção popular de Anavitória

Para início de conversa…

A pandemia causada pelo coronavírus impactou o mundo todo e trouxe consequências as mais diversas, afetando dramaticamente o âmbito da saúde pública, com um número enorme de mortes. Afetou também a economia, devido às medidas de isolamento social, e à sociedade como um todo, devido aos impactos emocionais no enfrentamento da doença.

As inquietações e receios em torno da pandemia suscitaram reações das mais diversas ao redor do mundo. Entre elas, destacamos o reforço de diferentes formas de espiritualidade, religiosas ou não, para o enfrentamento das questões relativas à morte, à fragilidade física e emocional e ao isolamento social.  

Ao mesmo tempo, muitos temas e argumentos religiosos se destacaram nas conversas e debates, seja pelo clima de obscurantismo estimulado por alguns grupos, seja pela busca de uma compreensão mais ampla e bem fundamentada de um fenômeno que é social. Como entender mais adequadamente esse quadro é uma pergunta que vários grupos têm feito e muitos têm se dedicado a refletir sobre ela.

As causas da pandemia, por exemplo, têm sido analisadas por várias pessoas de diferentes setores do conhecimento. Tais análises não estão dentro do nosso objetivo neste pequeno texto, mas são muito importantes. Indicamos as reflexões científicas do teólogo Leonardo Boff, que nos apresentou uma síntese no artigo “A terra se defende”, publicado pelo Instituto Humanitas da Unisinos (IHU).

O autor afirma que “a pandemia do coronavírus nos revela que o modo como habitamos a Casa Comum é nocivo à sua natureza. A lição que nos transmite soa: é imperioso reformatar a nossa forma de viver sobre ela, enquanto planeta vivo. Ela nos está alertando que assim como estamos nos comportando não podemos continuar. Caso contrário a própria Terra irá se livrar de nós, seres excessivamente agressivos e maléficos ao sistema-vida”.

Em nossas reflexões sobre espiritualidade vamos nos ater às consequências da pandemia, embora reconheçamos que uma visão aprofundada sobre suas causas seja de grande importância para nos sensibilizar na direção de outras formas de espiritualidade,  que reforcem a sustentabilidade da vida e do mundo,  e que nos indiquem a necessária crítica ao sistema econômico atual e à forma excludente como a sociedade está organizada. Todas essas dimensões estão relacionadas à espiritualidade.

O que a pandemia tem nos mostrado

Proponho que tenhamos um outro olhar: entre os vários aspectos negativos desta situação tão difícil e dramática que vivemos, há aqueles que revelam possibilidades para a reorganização da sociedade, tanto em termos das vivências pessoais no cotidiano quanto na estrutura social. O sociólogo português Boaventura de Souza Santos chamou estas possibilidades de “a cruel pedagogia do vírus”, título de seu mais recente livro.  

Entre as conclusões que podem ser tiradas deste processo, destacamos:

  • A pandemia revelou que o sistema econômico no qual a sociedade está estruturada, mesmo com as variações entre os países e continentes, não atende às demandas da dignidade humana e dos direitos básicos das pessoas. Há um pequeno texto deste mesmo autor, denominado “Para o Futuro Começar”, que nos oferece uma boa síntese;
  • A situação no Brasil mostrou que os riscos e os maiores problemas se concentram nos setores mais pobres da sociedade e que a realidade das populações de áreas favelizadas e de moradores de rua é dramática;
  • O número expressivo de mortes causou forte inquietação e insegurança para a maioria das pessoas em relação ao futuro da vida, tanto em termos pessoais quanto planetário;
  • O isolamento social manteve boa parte das pessoas em suas casas. Isso trouxe variadas consequências. Para as famílias que possuem moradias minúsculas, a convivência se tornou tensa, com maior número de violência doméstica e conflitos (uma boa análise deste ponto encontramos no texto “Patroas, empregadas e coronavírus”, da antropóloga Debora Diniz e da cientista política. Giselle Carino).

  • As atividades profissionais desenvolvidas pelas pessoas em casa pela Internet reforçaram a precarização as relações de trabalho, aumentaram o volume de tarefas e subverteram a noção do lar como espaço de aconchego e descanso;
  • Houve uma movimentação social muito significativa, com iniciativas e campanhas de solidariedade, envolvendo amplos setores sociais, profissionais de saúde e grupos de defesa dos direitos humanos e da cidadania. Entre as diversas experiências, uma campanha comunitária no Rio de Janeiro nos chamou muita atenção. Ela está apresentada neste vídeo, que articula a assistência social necessária para as famílias pobres com a firme defesa dos direitos humanos e da cidadania. Um testemunho belíssimo!
  • Uma parcela das pessoas, devido ao isolamento social, se sentiu sensibilizada em relação à valorização das relações humanas, da amizade e de visões mais humanizantes, e à necessidade de se dar maior atenção aos filhos. Há muitas reflexões teológicas e pastorais sobre esses aspectos. O teólogo Faustino Teixeira, no artigo “A dimensão espiritual da crise do coronavírus”, faz uma análise dos impactos globais da pandemia, destacando a crise como oportunidade de se encarar a precariedade e a fragilidade humanas;
  • Sinais de diminuição da poluição nas grandes cidades e a redução do consumo desenfreado. Quem desejar um aprofundamento deste tema, encontrará no artigo “Voltar à normalidade é se auto-condenar”, de Leonardo Boff, uma reflexão muito consistente e desafiadora.

Todos esses aspectos, complexos e desafiadores, mostram caminhos significativos para a vida e para a vivência espiritual.  

Mas, afinal, o que é espiritualidade?

Sabemos que entre uma série de aspectos que marcam a vivência humana está a incessante busca de superação de limites, do ir além das contingências e das ambiguidades históricas, da procura por absolutos que possam redimensionar a relatividade e a precariedade da vida, assim como se busca também o desfrutar das potencialidades, realizações e alegrias da vida nos seus mais diversos planos. Muitos denominam esta dimensão humana como espiritualidade.

Em certa medida, tal visão está relacionada ao olhar crítico das teologias que tem produzido uma saudável distinção entre fé e religião. É fato que tal relação é complexa e possui numerosas implicações, mas, no que diz respeito às nossas reflexões, é preciso afirmar que a primeira, a fé, requer uma espiritualidade que, embora seja autenticamente humana, vem de uma realidade que transcende as engrenagens históricas. Nesta perspectiva, a espiritualidade humana é recebida, acolhida. A espiritualidade, irmã da fé, é vista pela teologia como dom divino. 

Nas reflexões mais recentes, tem sido cada vez mais comum a indicação de que a fé é antropológica e que pode tornar-se religião. As experiências religiosas, historicamente, pretenderam e pretendem possibilitar respostas para essa busca, a qual inicialmente nos referimos. Na diversidade de tais experiências confluem elementos os mais diversos, desde os preponderantemente numinosos, “santos”, espontâneos e indicadores de uma transcendência, até aqueles marcadamente ideológicos, facilmente identificados como reprodução de filosofias ou culturas e artificialmente criadas. 

Há, entre os estudos de religião, uma série de análises sobre as distinções conceituais entre religião, crença, fé, espiritualidades e outras expressões similares. Em função dos limites de nossas reflexões, destacamos apenas a distinção entre as práticas religiosas mais institucionalizadas e a dimensão transcendente mais ampla, de caráter antropológico, que se expressa no humano e que vai além dos aspectos formais da religião. Em ambas a espiritualidade está presente.

Há também a noção de espiritualidade não religiosa. Ela, conforme nos indica o cientista da religião Flávio Senra, se constitui no “âmbito da crença em Deus que se desenvolve à margem das instituições religiosas ou desligadas de seu antigo pertencimento a instituições religiosas, consideradas as pessoas que se afirmam sem religião ou não afiliadas, mas mantêm a crença em Deus (perspectiva teísta)”.

E como tem se dado a relação entre espiritualidade e a pandemia?

Tanto as formas mais espontâneas de espiritualidade quanto as expressões religiosas mais tradicionais ou institucionalizadas estão presentes no debate acerca da pandemia e do isolamento social. Ambas têm marcado a vida de muita gente e tem estado presente, de diferentes maneiras, em cada situação enfrentada. 

As formas de expressão dessas espiritualidades, como sabemos, são muito diferenciadas. Há visões religiosas que negam a dramaticidade da pandemia, ou mesmo, seguindo argumentos ideológicos obscurantistas em voga, atribuem a disseminação da doença à ira e ao castigo de Deus aos seres humanos pecadores e, até mesmo, à supostos interesses comunistas para afrontar a fé cristã. 

Há abordagens e formas de espiritualidade de caráter mais intimista, que destacam a importância da vida devocional, das orações e da meditação como caminho de equilíbrio interior, considerando que os tempos atuais são de incertezas e inseguranças.

E há aquelas que buscam interpretações de fé mais consistentes, conectadas com os aspectos sociopolíticos evidenciados nesta crise social revelada pela pandemia e ancoradas nos princípios da solidariedade, da comunhão e da responsabilidade com os destinos da vida e do mundo. 

Desafios não nos faltam!

***

Claudio de Oliveira Ribeiro é Pastor metodista e Doutor em Teologia (PUC-Rio)