Mendonça, evangélicos e bolsonarismo

Na condição de evangélico e membro de uma igreja presbiteriana no Rio de Janeiro, venho a público manifestar meu mais profundo lamento pela aprovação de André Mendonça, pastor presbiteriano, para o STF. O Estado é laico. Evangélicos precisam confiar realmente em Deus, e não depender de acesso aos poderes do Estado, como boa parte de seus líderes vêm fazendo, sobretudo desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República. Mendonça foi aprovado pelo Senado para assumir uma vaga no STF, por 47 votos a 32.  É a segunda indicação de Bolsonaro para o STF, a única instituição do país que ainda consegue deter os desmandos do presidente da República.

Bolsonaro – que está mais para lobo em pele de cordeiro – nunca foi evangélico. Mas quando começou a pensar em ser presidente da República rapidamente se aproximou de líderes evangélicos oportunistas. Com a ajuda dessas figuras, Bolsonaro então montou seu marketing eleitoral pra cima dos evangélicos. Deixou-se fotografar sendo batizado nas águas do Rio Jordão, no mesmo local onde Jesus Cristo foi batizado. A foto rapidamente se espalhou pelos grupos de WhatsApp do segmento evangélico. Além disso, o presidente – que tinha seu nicho político-eleitoral entre as “viúvas” do golpe civil-militar de 1964 e pensionistas de militares – acabou ganhando terreno entre os evangélicos por apresentar uma narrativa baseada nos costumes, na homofobia e no anticomunismo, temas que costumam ser caros à direita cristã americana e sua congênere brasileira. 

Quando encontrou na Advocacia-geral da União com o advogado André Mendonça – um profissional que transmitia segurança e competência e, além disso era pastor presbiteriano de uma igreja chamada Esperança (que triste sina a nossa) – Bolsonaro juntou a fome com a vontade de comer. Alçou Mendonça ao cargo máximo da instituição e logo depois ao de ministro da Justiça, substituindo o “traidor” Sergio Moro. 

Como titular do Ministério da Justiça, Mendonça foi alvo de críticas por mandar abrir inquéritos contra opositores do governo Bolsonaro, tais como Ciro Gomes, Guilherme Boulos, Hélio Schwartsman e outros políticos, jornalistas e cartunistas, sob a acusação de calúnia ou injúria devido a críticas ao presidente. Na sabatina, o mesmo Mendonça disse que a liberdade de imprensa é um bem sagrado. Para quem?

Também durante sua gestão, o Ministério da Justiça foi acusado de produzir um dossiê contra mais de 500 servidores federais e estaduais de segurança identificados como membros do “movimento antifascismo“. Mendonça confirmou à Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso a existência de um relatório de inteligência, mas negou que houvesse ilegalidades em sua produção. Apesar de aparentar notório saber jurídico, Mendonça fez o jogo do poder. Só pelas duas atitudes acima, não se pode dizer que tenha “caráter ilibado”, uma das exigências para ser ministro do STF. E, ao assumir o cargo de ministro da Justiça, sinalizou para o chefe que estaria disposto antes de tudo a cumprir ordens.

Em plena posse como ministro da Justiça, Mendonça chamou Bolsonaro de “profeta” por ele ter sido um político “preocupado” com a agenda da segurança pública quando esse assunto não comovia Brasília. Um gesto típico de bajulador, principalmente se levarmos em conta que o tal “profeta” jamais apresentou um projeto sequer em favor da segurança pública do povo brasileiro. 

Pela bajulação, Mendonça não levou sequer um “puxão de orelhas” de sua igreja. Na verdade, os evangélicos, de modo geral, continuam fazendo vista grossa para os erros de Bolsonaro e sua equipe. Entre os evangélicos que se arrependeram do mau caminho bolsonarista, poucos têm coragem de ir à público e manifestar sua opinião. De certo modo, a igreja evangélica brasileira aprofundou suas divisões com a chegada de Bolsonaro ao poder. Mesmo sem ser evangélico, ele consegue influenciar muitos membros de igrejas, sobretudo as pentecostais e neopentecostais. Evangélico que tem a coragem de criticar os desmandos de Bolsonaro muitas vezes sofre discriminação dentro da própria igreja. Há uma legião de jovens evangélicos que ficaram “desigrejados” diante da insistência de pastores e diáconos em manifestarem, até do púlpito, apoio ao governo.

Embora o presbiterianismo tenha suas bases na busca de reformas sociais, também por meio da pregação do Evangelho, os evangélicos no Brasil se afastaram da política partidária justamente durante o regime militar. Boa parte das igrejas mais conservadoras apoiou o golpe, mas sempre houve na membresia ilhas de oposição à ditadura e seus algozes. Tanto assim que saiu das fileiras da Igreja Presbiteriana um líder respeitado na luta pelos direitos humanos, o reverendo James Wright, que se tornou o executivo do projeto Brasil Nunca Mais, patrocinado pela Arquidiocese de São Paulo – que denunciou os violentos crimes praticados pela ditadura, com base em 707 processos da própria Justiça Militar. Wright, a quem tive o prazer de conhecer e entrevistar, era o braço direito do cardeal Paulo Evaristo Arns.

Com o Congresso Nacional Constituinte, em 1987, os evangélicos voltaram a se aproximar da política, convencidos de que tinham que participar da construção da nova Constituição, temendo, principalmente, que sofressem algum revés no direito à liberdade de culto. Encontraram de braços abertos justamente o Centrão que reunia o que de mais fisiológico havia na política, em partidos de centro-direita. Seu lema na época era “é dando que se recebe”, frase que também teria sido citada pelo frade São Francisco de Assis. Esses evangélicos negociaram seus votos na bacia das almas. Muitos deles com a desculpa esfarrapada da ameaça do comunismo. Afinal, o Muro de Berlim – que precipitou a extinção da União Soviética e da chamada Cortina de ferro, só cairia em 1989. E ali, com o Centrão de 1987, está a origem desse núcleo político que viu em Bolsonaro um líder capaz de derrotar as esquerdas progressistas que, para os evangélicos, defendem o comunismo  que eliminou cristãos na Cortina-de-ferro, exatamente como o Império Romano fez aos primeiros mártires cristãos nas arenas dos leões.

Esses “novos evangélicos” na política sofrem também grande influência da direita cristã norte-americana, que, nos Estados Unidos, conseguiu, com uma agenda conservadora nos costumes e na economia, eleger Donald Trump. O principal estrategista de Trump, Steve Bannon, ainda hoje dá conselhos ao governo Bolsonaro. 

Apesar de Bolsonaro não ter feito tudo que poderia ter feito pela candidatura de Mendonça, o presidente usou o carimbo de “terrivelmente evangélico” para seu candidato, como uma espécie de ameaça ao Supremo, que tornou-se o único poder a conter os ímpetos autoritários do presidente. Só esse carimbo feito pelo presidente já deixa o novo ministro do STF sob suspeita. Como ministro de estado, numa corte suprema, Mendonça não pode agir como lobista de qualquer que seja o grupo, político ou religioso. Mendonça, inclusive, se revelou um homem de duas faces. Na sabatina, apresentou-se como guardião da Constituição. Logo após eleito, fez um discurso em tom triunfalista, afirmando que sua vitória é o passo para um homem (no caso, ele), mas também para todos os evangélicos. Nada a ver. O Supremo não pode ser evangélico, católico, espírita ou qualquer outra religião e, muito menos, se comprometer com a agenda de qualquer ideologia política. O Estado é laico. E foi justamente a separação entre Igreja Católica e Estado que historicamente deu força para os evangélicos conseguirem superar todas as discriminações, sendo minoria religiosa no país. Agora somam 40 milhões. Um enorme rebanho de ovelhas que cada vez mais atrai lobos vorazes. Sobretudo às vésperas de ano eleitoral.

Agora cabe aos verdadeiros evangélicos, preocupados com a ética e a cidadania, serem os primeiros a fiscalizar as atitudes e os votos de André Mendonça no STF.  E essa forma de preenchimento dos cargos do Supremo precisa urgentemente ser revista pelos legisladores. Mas quem vai ter coragem de mexer nesse vespeiro?

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Foto de capa: Alan Santos/PR

A sabatina de André Mendonça pelo Senado – Parte 2: evangélicos no STF

Bereia prossegue com a parte 2 da checagem da sabatina de André Mendonça, agora sobre o “salto” da chegada de um evangélico ao STF (veja aqui a parte 1).

O Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Luiz de Almeida Mendonça é um advogado e pastor presbiteriano. Durante a sabatina perante a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Mendonça reiterou sua postura garantista, bem como declarou compromisso com o Estado laico e o respeito aos direitos de minorias. Foi aprovado na comissão com 18 votos favoráveis e 9 contrários e no plenário com 47 votos favoráveis e 32 contrários.  

Em sua primeira entrevista após a aprovação de seu nome para a condição de ministro, parafraseando a chegada do homem à Lua, na década de 60, quando o astronauta norte-americano Neil Armstrong classificou o feito como “um pequeno passo para o homem, mas um grande salto para a humanidade”, Mendonça declarou: “É um passo para um homem, mas na história dos evangélicos do Brasil é um salto. Um passo para um homem e um salto para os evangélicos”

Não foi salto

Em Brasília, os evangélicos sabem que Mendonça não foi o primeiro evangélico a ocupar um cargo elevado na elite do judiciário. Este “salto” foi noticiado pelo Jornal Batista, em 21 de fevereiro de 1957.  Na capa do periódico religioso há um destaque para o diácono Antônio Martins Villas Boas, a quem o Jornal Batista felicitou por ter sido escolhido por unanimidade (33 votos, na época), destaca que é um crente fiel. Há uma grande comunidade batista em Brasília que é testemunho de sua dedicação. Fundada em 1967 pelo então ministro do STF Antonio Martins Villas Boas, a Igreja Batista Central de Brasília reúne, semanalmente, 4,5 mil fiéis nos cultos. A atuação do ministro foi discreta, mas operosa na fundação de congregações e na assessoria de instituições evangélicas por toda a região. O ministro Antônio Villas Boas exerceu a presidência da Corte de 9 de março de 1965 até 15 de novembro de 1966. Possivelmente o silêncio sobre sua figura remonta aos anos de chumbo.

Imagem: reprodução d’O Jornal Batista

O verbete sobre o ministro Villas Boas, no CPDOC (da FGV), acentua sua atividade incômoda ao regime de arbítrio: “Como ministro do STF, Vilas Boas votou favoravelmente à transferência desse órgão para Brasília, o que de fato se consumou a partir de abril de 1960. Participou de diversos julgamentos de importância política, como ocorreu em 18 de setembro de 1957, quando votou a favor das representações dos diretórios regionais do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e do Partido Republicano (PR), bem como da deputada Almerinda Magalhães Arantes, contra o Ato Constitucional nº 1, promulgado em maio de 1957 pela Assembleia Legislativa de Goiás, prorrogando por mais um ano os mandatos do governador, do vice-governador e dos prefeitos desse estado. A votação do STF processou-se por unanimidade”.

Todavia, não são apenas ministros cassados que escreveram a história da presença evangélica nas cortes superiores. A família Gueiros (com vários líderes presbiterianos e um ramo batista), também forneceu vários de seus filhos para as cortes durante a ditadura militar. O Rev. Jerônimo de Carvalho Silva Gueiros (1880-1953) pastor, professor, jornalista teve doze filhos. Entre eles, Neemias Gueiros foi o redator do Ato Institucional nº 2 e Evandro Gueiros foi o primeiro presidente do Supremo Tribunal de Justiça.  Eraldo Gueiros Leite (1912 1983) ocupou o centro do poder, durante o regime de exceção, como ministro do Supremo Tribunal Militar (STM). Como presidentes do STJ e do STM, evangélicos já ocuparam, portanto, o centro do poder judiciário brasileiro, em época recente.

O Salto Supremo: A Presidência da República

Além das cortes superiores, topo da carreira do Judiciário, evangélicos já ocuparam também a Presidência da República, duas vezes. Com Café Filho, presbiteriano, e Ernesto Geisel, luterano.

Café Filho

João Fernandes Campos Café Filho  (1899-1970) foi um advogado e político brasileiro, tendo sido o 18.º presidente do Brasil, entre 24 de agosto de 1954 e 8 de novembro de 1955. Também foi o 13.º vice-presidente do país, entre 1951 e 1954, função que assumira paralelamente com a de presidente do Senado Federal. Era filho de um líder da Igreja Presbiteriana,  frequentou o Colégio Americano, o Grupo Escolar Augusto Severo, a Escola Normal e o Ateneu Norte-Rio-Grandense, todos localizados em Natal. Foi o único potiguar e o primeiro protestante a ocupar a Presidência da República do Brasil. 

Ernesto Geisel

Ernesto Beckmann Geisel (1907-1996) general do Exército brasileiro, que, entre 1974 e 1979, foi o 29º Presidente do Brasil, tendo sido o quarto na ditadura militar. Filho de imigrantes luteranos alemães, estudou no Colégio Martinho Lutero de Estrela (RS) e no Colégio Militar de Porto Alegre, formando-se aspirante a oficial na Escola Militar de Realengo, atual Academia Militar das Agulhas Negras, na arma de artilharia. Depois de alcançar o topo da carreira militar, como general, participou do grupo que depôs o presidente João Goulart, atuou no governo de Castelo Branco e, no período de Costa e Silva, foi nomeado ministro do Superior Tribunal Militar (STM), onde participou do julgamento de inúmeros processos referentes a crimes políticos enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Com fama de “disciplinador”, Geisel foi ativo e influente das Forças Armadas. Como o fim da ditadura,envolveu-se na eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral, em 1985. Geisel apoiou o presidente José Sarney (1985-1989) e defendeu a realização de eleições diretas para a Presidência da República, com a retirada dos militares para os quartéis.

Educação, a melhor política

Nos perfis biográficos de Villas Boas, dos Gueiros, de Café Filho e de Geisel há uma constante – o acesso à educação de qualidade, por meio de diversos colégios evangélicos, de educação básica, fundamental e do ensino médio. O professor e historiador ex- Chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie Osvaldo Henrique Hack, em seu livro “Protestantismo e Educação Brasileira” (Editora Cultura Cristã, 2000), acentua que a educação “foi o motor para a formação de uma elite acadêmica, jurídica e econômica” entre os evangélicos, que mesmo minoritários diante da população brasileira, puderam ocupar, pela formação, diversos cargos. Ou seja, as personagens citadas nesta matéria são fruto de uma visão de educação popular, básica e fundamental, que, espalhando-se por todo o Brasil ,resgatou crianças e adolescentes da pobreza e da invisibilidade social. 

Na biografia de Jerônimo Gueiros registra-se: “Fundou com o Rev. Calvin Porter uma escola para rapazes chamada Externato Natalense, na qual estudou João Café Filho (1899-1970), futuro Presidente da República. Também fundou a Escola Eliza Reed e reorganizou o Instituto Pestalozzi, onde lecionou português por vários anos. Foi professor da Escola Normal do Rio Grande do Norte, primeiro interinamente e depois como titular, tendo feito concurso para a cadeira de português em fevereiro de 1919. Rev. Jerônimo foi secretário geral da Associação Cristã de Moços (ACM), que oferecia cursos profissionalizantes, entre os quais datilografia, algo muito valorizado na época. Lecionou no Colégio Americano Batista e fundou o Instituto de Assistência e Educação, que mais tarde recebeu o seu nome”  (Instituto Presbiteriano Mackenzie “Os Consolidadores da Obra Presbiteriana no Brasil”, 2014)

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Bereia verifica, portanto, que não houve um “salto” de evangélicos a um alto espaço de poder público com a aprovação da indicação de André Mendonça ao STF, Já houve outros nomes na história recente do Brasil, ligados a igrejas evangélicas, ocupando cargos relacionados ao Poder Judiciário  e ao cargo maior, a Presidência da República. A pesquisa mostra, também, que a chegada a estes cargos, além de estar relacionada a uma aproximação do poder, tem relação com a formação educacional. As  escolas básicas e fundamentais e as universidades evangélicas são uma rede de inclusão que abriu portas das cortes e escolas para os filhos de imigrantes, migrantes e para a minoria religiosa  evangélica.

Universidade, missão e igreja: para poucos ou para todos?

O Ministro da Educação é pastor presbiteriano. Eu também sou, desde 1996. Em entrevista à TV Brasil, no dia 10/08/2021, Milton Ribeiro declarou que “universidade deveria, na verdade, ser para poucos”. A frase provocou questionamentos, por parte da comunidade acadêmica; gerou indignação entre estudantes e suas famílias e, também, incentivou reflexões sobre o papel da Universidade.

O contexto da frase acompanha a lógica de incentivo à educação técnica – voltada para o mercado de trabalho. No discurso e na prática – que se traduz em verbas cortadas ou reduzidas (veja o gráfico no final do texto) – o Brasil vive um momento de desindustrialização, de subordinação aos processos produtivos internacionais, condenando o país à mera posição de exportador de matérias-primas, minérios, alimentos e proteína animal. Todavia, a engenharia nacional, capaz de produzir no passado, jatos da EMBRAER, poderia também produzir tecnologia 5G. 

Nesse texto, não vamos discutir os pontos acima, mas questionar qual seria a visão de um pastor presbiteriano acerca da universidade. Qual seria a visão da Igreja Evangélica acerca da educação? Optamos pelo modelo de educação e evangelização para as elites? 

Para ajudar, há muitas pistas, livros e instituições. No livro “Protestantismo e Educação Brasileira”, o professor e pastor presbiteriano Osvaldo Henrique Hack, descreve como o impacto dos missionários protestantes (presbiterianos, congregacionais, metodistas e batistas) transformou a educação do Brasil e promoveu uma evangelização consistente, interiorizada.

Em 12 de agosto, dois dias depois da fala do ministro, presbiterianos recordaram que, em 1859, o primeiro casal de missionários chegou ao Brasil – Rev. Ashbel Green Simonton e Helen Murdoch Simonton. Helen morreria no parto de sua primeira filha (1864) e Ashbel faleceu de febre amarela (1867). Atualmente, seriam ambos salvos pelo SUS – com suas maternidades e vacinas.  

O casal Simonton, além de organizar igrejas, também criou o primeiro seminário, o primeiro jornal e uma escola. Todos os quatro casais de missionários pioneiros (Simonton, Blackford, Schneider e Chamberlain) organizaram igrejas e escolas. Havia, inclusive um lema: “ao lado de cada igreja, uma escola”. 

De fato, os missionários acreditavam que “outro meio indispensável para assegurar o futuro da igreja evangélica no Brasil é o estabelecimento de escolas… O Evangelho dá estímulo a todas as faculdades do homem e o leva a fazer os maiores esforços para avantajar-se na senda do progresso.” (Relatório Pastoral de Ashbel Green Simonton, em 1867, cujo original encontra-se no Arquivo Presbiteriano)

James Cooley Fletcher, missionário presbiteriano, filho do banqueiro Calvin Fletcher, graduado na Universidade Brown e Princeton (EUA) foi um dos mais ativos agentes na implantação dessa missão educacional. Entre 1851 e 1856 Fletcher atuou no Brasil, como agente da União Americana de Escolas Dominicais e representante da União Cristã Americana Estrangeira, quando viajou quase cinco mil quilômetros Brasil adentro – distribuindo Bíblias, incentivando escolas, patrocinando missionários e, principalmente, difundindo o sistema educacional norte-americano. Curiosamente, no Brasil, chamava-se à época o sistema estadunidense de “sistema escolar socialista de Horace Mann”.  Em 1866. Fletcher escreveu ao imperador Pedro II, convidando o ministro Joaquim Maria Nascentes de Azambuja e uma delegação brasileira para visitar escolas e universidades nos EUA. Fletcher, Azambuja (que tornou-se Diretor de Instrução Pública nas Províncias do Espírito Santo e Pará) e principalmente o Deputado Aureliano Cândido Tavares Bastos iniciaram uma campanha pública de críticas ao sistema educacional brasileiro. Em 1869, falando no Senado, Francisco de Paula Silveira Lobo, irmão do jornalista e líder abolicionista Aristides Lobo lembrava que “na própria Côrte havia apenas 4.800 alunos primários para uma população estimada em 400 000 a meio milhão de almas”. Ou seja, segundo o Censo de 1872,  a taxa de analfabetismo era de 77,2% (RJ) , 87,1% (PB) e 87,0% (CE). Havia grande disparidade, mas como se pode perceber, a educação era para poucos. 

O analfabetismo era, desde a origem do movimento missionário, o grande problema. No Brasil, para fins de comparação, a alfabetização surge como questão nacional somente com a reforma eleitoral de 1882 (Lei Saraiva), a qual conjugava “censo pecuniário” (econômico) com o “censo literário”, proibindo o voto do analfabeto. A Constituição Republicana de 1891, acabou com o “censo econômico”, mas manteve o “censo literário” (vetando direitos políticos aos analfabetos). 

Assim, não era raro que os missionários protestantes fossem acusados de “agitação política” e “socialismo” por conta de seus esforços alfabetizadores. Na tabela abaixo constatamos que, ainda agora, no Censo 2000, na capital da República, não erradicamos o analfabetismo. Portanto, junto com a Missão, a educação ainda é tarefa da Igreja. Pois como lerão as Sagradas Escrituras se não sabem ler? Que espécie de igreja pode ser gerada sem leitura? 

Tabela – Percentuais de Analfabetismo no Brasil (de 1872 a 2000)

Horace Mann defendia uma educação pública, universal e gratuita, para todos – como forma de alfabetizar, civilizar e gerar progresso e prosperidade. Todos os missionários pensavam da mesma forma. Os batistas chegaram registrar a necessidade de fundarem pelo menos um colégio em cada capital do país. Textualmente: “a superioridade das doutrinas batistas não será demonstrada ao povo brasileiro exclusivamente no campo da evangelização. É justamente no campo da educação que o Evangelho produz os seus frutos seletos e superiores, homens preparados para falar com poder à consciência nacional” (Cabtree, A. História dos Batistas, Casa Publicadora Batista, 1962, p. 125) William Buck Bagby (missionário pioneiro na implantação das missões batistas no Brasil) defendia a tese de que “colégios prepararão o caminho para a marcha das igrejas”.

De fato, os missionários implantavam, junto com os educandários, sistemas educacionais e práticas, consideradas avançadas para o século XIX. O Rev. George Whitehill Chamberlain (1839-1902), educador pioneiro, ordenado pastor pelo Presbitério Rio de Janeiro, em 8 de julho de 1866, fundou em 1870 São Paulo, junto com sua esposa Mary Chamberlain, a Escola Americana, o embrião daquilo que viria a se tornar a Universidade Mackenzie. Uma escola mista (para meninos e meninas, inter-racial, multicultural e com aulas de educação física) era um “escândalo” para uma sociedade escravagista, racista, machista – e a prática de esportes esbarrava no decoro público. 

Em sua correspondência à Junta de Nova Iorque (EUA) para justificar o investimento de recursos para a nova tarefa, Chamberlain registra “o fato de as filhas e filhos de muitos pais brasileiros não evangélicos, pertencentes às correntes republicanas e abolicionistas (grifo nosso), também sofrerem perseguições” (Garcez, Benedito. Mackenzie, Casa Editora Presbiteriana, 1970. p. 32) 

A Junta de Missões da Igreja Presbiteriana dos EUA não somente percebeu a oportunidade, como também determinou que a nova escola deveria “observar o sistema de ensino americano (EUA): escola mista para ambos os sexos; liberdade religiosa, política e racial (grifo nosso). Educação baseada nos princípios da moral cristã, segundo as normas das Santas Escrituras, atendendo ao conceito protestante que exclui da escola a campanha religiosa, limitando-se às questões de moralidade ética, contidas no ensino de Cristo”. 

Em 1897, o “Protestant College” mudou o seu nome para “Mackenzie College at São Paulo”. A mudança foi uma homenagem a John Theron Mackenzie, (1818-1892), advogado e filantropo, o qual por meio de testamento, doou parte de sua herança, à então “Escola Americana” (hoje Universidade Presbiteriana Mackenzie). Morreu em 17 de setembro de 1892, aos 74 anos de idade e seu testamento dedicava um terço de seus bens à construção de uma escola de engenharia na então Escola Americana, que passou a chamar-se Universidade Presbiteriana Mackenzie.

É desnecessário dizer que não havia campo de trabalho para engenheiros no Brasil na segunda metade do século XIX – a base de nossa economia era, como ainda é, o agro.

Assim, vincular a oferta de vagas de ensino ao mercado, é um erro histórico – que penaliza as futuras gerações. 

Para encerrarmos esse início de debate sobre a visão, missão e tarefa para a Igreja Evangélica no Brasil cabe perguntar: se os presbiterianos do século XIX tivessem uma visão estreita, de uma universidade para poucos ou de uma igreja seletiva (apenas para uma classe), nós estaríamos aqui hoje?  Existiria uma Universidade Mackenzie? Existiria curso de engenharia na universidade plantada em um país exportador de café e açúcar?

O papel de uma Universidade é formar apenas gente para o mercado de trabalho? 

O papel de uma Igreja é apenas influenciar algumas poucas pessoas e lugares exclusivos? 

O que é uma Missão Cristã? 

São perguntas que me surgem quando olho para o passado, quando me entristeço diante do presente e quando creio que o futuro há de levantar uma geração de pregadores e pregadoras que não seja formada apenas para agradar aos interesses da ocasião. 

Lanço então, esta  mensagem, como numa garrafa, a balançar nas ondas desse informar, como um pequeno fio nessa rede. Vamos debater o papel da Universidade e da Educação? Será possível que sou o único a imaginar que escolas e centros universitários devem ser lugares de inovação, transformação e progresso? Seria a Missão da Igreja um fermento para o Mundo?

Se quiser continuar essa conversa, mande um e-mail. Ficarei imensamente grato pela sua opinião e estou aberto para ampliar esse diálogo: revmello@gmail.com.


Gráfico – Investimento nas Universidades (MEC/Brasil)

A vara e o lápis: reflexões sobre o novo Ministro da Educação

O novo ministro da educação do governo Bolsonaro (o quarto, já), que tomou posse no dia 16 de julho, é evangélico, presbiteriano, mais especificamente.

A repercussão que seu nome provocou nos últimos dias é muito ruim, por conta de posicionamentos ultrapassados e deploráveis. Milton Ribeiro teve vídeos de suas palestras e pregações veiculados nas redes sociais; fala de castigos físicos e tem postura abertamente machista. Sim, tudo isso, obviamente, deve ser reprovado. Não se pode, em pleno século XXI, admitir que uma autoridade pública em educação pense com a cabeça de séculos atrás. Pior, que seu discurso seja uma contradição com um Estado democrático, pluralista, garantidor de direitos e igualitário. Em que pese o Estado brasileiro não conseguir fazer cumprir os direitos fundamentais de sua Constituição, não se pode, sob qualquer pretexto, aceitar um ministro de Estado que, em seu discurso e testemunho, reme contra tudo que está estampado como valor de uma Nação.

Mas há uma ponderação necessária a ser feita: se ele fosse católico, budista ou ateu, seu posicionamento retrógrado seria atribuído a sua religião? Ou seria simplesmente tratado como um equívoco de sua formação reacionária e fundamentalista (traços presentes em setores de todas as religiões e culturas)? Convenhamos, o que nunca nos faltou foi ministro reacionário. Mas por que somente os evangélicos são tratados pela designação de sua religião?

Concordo que, em muitos casos, sua conduta é expressão de seus valores e esses são fundamentados na sua fé religiosa. Mas não é diferente o que ocorre com outras visões de mundo. Explico melhor: há, sim, entre setores evangélicos um discurso de superioridade. Mas isso também ocorre em outros campos.

O que se deve ter em mente é que o problema não é ser evangélico. O problema é ser atrasado e desconectado de seu tempo. Coisa totalmente antagônica ao Evangelho. O ministro Milton Ribeiro pode confessar a fé que for, mas um país não pode não pode se quedar a um discurso tão nocivo como os que foram exibidos na internet de sua carreira de pastor.

Mas mantém-se a ponderação de base desse ensaio: se o ministro tivesse outra religião, seu posicionamento retrógrado seria atribuído a sua fé?
É preciso se perguntar sempre sobre preconceito. O dos outros é facilmente observável e condenado. O nosso, em geral, tem alguma desculpa, salvo-conduto ou mesmo legitimação. Criticar evangélicos virou esporte nacional. E isso é ruim. Muito ruim. Porque a imensa maioria dos evangélicos é gente simples, honesta, bem intencionada e, acima de tudo, Evangélica (na acepção mais profunda e ampla desse termo).

No seu discurso de posse, Ribeiro afirmou: “jamais falei de violência física na educação escolar, nunca defenderei tal prática, que faz parte de um passado que não queremos de volta. Entretanto, vale lembrar que devido à implementação de políticas e filosofias educacionais equivocadas no meu entendimento, que desconstruíram a autoridade do professor em sala de aula, o que agora existe são episódios de violência física de alguns maus alunos contra o professor. As mesmas vozes críticas da sociedade devem se posicionar contra esses episódios com a mesma intensidade”.

O ministro contradisse sua tese de que a educação precisa de “dor”. Que bom. Mas precisa esclarecer sobre que “políticas e filosofias educacionais” ele considera equivocadas. Quem são os “maus alunos”. E, sim, que se esforce para valorizar e proteger professores (oportunidade não faltará na necessária e urgente aprovação do Fundeb). Oxalá saiba separar a sua visão particular de mundo do que deve ser uma política pública de educação.

Quanto a nós, tomara aprendamos a dar a César o que é dele e a Deus o que é de Deus. E não tomemos o todo pela parte. Tampouco tomemos as tradições libertadoras do protestantismo em todos os seus matizes por meia dúzia de vendilhões no templo.

Quanto a ele, tomara que desça do púlpito, deixe de lado a vara e consiga dar conta dos seus deveres de casa reais: Fundeb, Enem, aulas na pandemia, valorização dos professores, analfabetismo, evasão escolar etc.

Que o ministro passe a usar mais o lápis em detrimento da vara. Lápis cuja marca fica registrada no aprendizado, nas experiências de crescimento, na possibilidade de errar e corrigir, na qualidade de se permitir sempre e de novo se aprontar para melhor escrever e, sobretudo, na redação de uma história de dignidade para as novas gerações desse país tão profundamente injusto e desigual. Que abandone em definitivo a vara, cujas marcas nos fizeram o que temos assistido hoje (ódio e perseguição) e nos trouxeram até esse capítulo tão nefasto de nossa história.

Capa: Pixabay.com/Reprodução

Calvino e as Fake News

O contexto da Reforma foi de muitos conflitos no campo da comunicação. Por meio da imprensa recém inventada, muitas imagens de caricaturas e escritos circularam na Europa divulgando, de ambos os lados, protestante e católico, acusações, calúnias, impropérios, ameaças e mentiras. Defenestrar o inimigo era uma estratégia para impor uma verdade por meio, se possível, da mentira. 

Defensor da tolerância aos protestantes franceses, Calvino tentou persuadir “ao Potentíssimo e Ilustríssimo Monarca Francisco, Rei Cristianíssimo dos Franceses, Seu Príncipe”, da inocência dos protestantes diante de muitas acusações, escrevendo sua maior obra, A Instituição da Religião Cristã, encerrada no ano de 1559.  

Seu objetivo primeiro foi:

… preparar e instruir os candidatos ao aprendizado da palavra divina da sagrada Teologia, para que possam ter acesso fácil a ela, assim como prosseguir livremente em seus passos, pois que considero ter reunido uma tal suma da religião em todas as suas partes e tenha classificado em tal ordem, que qualquer um que a considere retamente não terá dificuldade em estabelecer e buscar o que é principal na Escritura, e possa aquele, ao final, referir tudo que nela está contido.1 

João Calvino

Evidencia-se a lógica calviniana em estruturar uma obra de forma racional obedecendo uma ordem de apresentação temática em partes e classificada com a finalidade de “estabelecer e buscar o que é principal na Escritura”. Os dois livros reunidos em um só tomo explorou a suma ou o sumo do que as Escrituras ensinam a fim de preparar e instruir os novos aprendizes da fé.  

No entanto, outro propósito se apresentou na obra, qual seja, a de orientar o monarca e alertá-lo quanto aos equívocos das acusações, calúnias, ardis e mentiras proferidas. Dirigindo-se ao rei, Calvino reiterou o objetivo de “ensinar alguns rudimentos”, para “ser ensinado de modo fácil e simples”, não somente aos franceses, mas ao próprio soberano na condição de um principiante que deveria atentar para as fakenews contra os protestantes franceses: 

Evidentemente se alguém, com o pretexto de excitar o ódio a essa doutrina da qual procuro expor a vós a razão, der como pretexto que, condenada por toda ordem de cálculos, já tivesse sido criticada por muitas sentenças do foro, não teria dito se não que, em parte, foi violentamente abatida pelo conluio e potência dos adversários, e em parte insidiosa e fraudulentamente oprimida por mentiras, ardis e calúnias. É violência que, por pretexto, não declarado, sejam levantadas contra ela sentenças sanguinárias; fraude, que seja, acusada de sedição e de malefícios sem merecimento.2   

Assim, Calvino incidiu contra a rede de propagação de mentiras sobre os protestantes na França, apelando para o bom senso e a verdade do rei, bem como dos leitores.  

[1] CALVIN, Jean. A instituição da religião cristã, Tomo I, Livros I e II. Trad. Carlos Eduardo de Oliveira. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 12. [1] CALVIN, Jean. A instituição da religião cristã, Tomo I, Livros I e II. Trad. Carlos Eduardo de Oliveira. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 14.