Matérias da Folha de S. Paulo e de O Globo alimentam desinformação sobre perseguição a igrejas no período pós-eleitoral

Matéria publicada pela Folha de S. Paulo, em 24 de novembro passado, com o título “Lula diz que vai cobrar apoio de evangélicos a vacinas ou responsabilizar igrejas por mortes” foi fonte para uma série de publicações críticas ao presidente eleito em mídias digitais religiosas. 

Imagem: Reprodução do site do jornal Folha de S. Paulo

As publicações, como as reproduzidas a seguir, em sites de notícias gospel e mídias sociais de apoiadores religiosos do atual governo, ganharam tom de terror verbal e deram fôlego ao tema desinformativo mais disseminado durante as eleições, segundo levantamento do Bereia, a “perseguição a cristãos e a igrejas”. 

Imagem: reprodução site Pleno.News

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Imagem: reprodução do Twitter, perfil de Damares Alves, 24 nov 2022

Imagem: reprodução do Instagram do senador eleito Magno Malta (PL/ES), 26 nov 2022

A matéria da Folha de S. Paulo

A matéria que serviu de base para nova safra de publicações sobre “perseguição a igrejas”, relata reunião fechada da equipe de saúde do governo de transição com representantes de várias áreas da saúde, em 24 de novembro, em Brasília. Segundo o jornal, a reunião teve formato híbrido e a participação do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se deu por vídeo. 

No relato da Folha de S. Paulo, Lula teria afirmou aos participantes da reunião: “Eu pretendo procurar várias igrejas evangélicas e discutir com o chefe delas: ‘Olha, qual é o comportamento de vocês nessa questão das vacinas?’”. Ele teria dito ainda, segundo o texto: “Ou vamos responsabilizar vocês pela morte das pessoas”.

O presidente eleito ainda teria dito, de acordo com a matéria, que os primeiros cem dias de seu governo terão como foco a recuperação do PNI (Programa Nacional de Imunizações), o aumento da cobertura vacinal e a restauração da confiança da população, que, segundo a avaliação de Lula, foi afetada por fake news sobre o tema. “Vamos ter de agora pegar muita gente que combateu a vacina que vai ter de pedir desculpa”, teria dito o presidente eleito.

A matéria da Folha de S. Paulo relatou ainda que Lula se comprometeu a “enfrentar a burocracia da máquina pública” diante do sofrimento da população na busca de atendimento médico e atender demandas com a questão do autismo. Além destes temas e o da cobertura vacinal, o fortalecimento do Serviço Único de Saúde (SUS) também foi pauta do diálogo com o presidente eleito, segundo o jornal.

A reportagem cita a participação de ex-ministros da Saúde na reunião (Alexandre Padilha, Arthur Chioro, José Gomes Temporão, José Agenor e Humberto Costa, bem como de representantes do Instituto Butantan, da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), da Fiocruz, do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), do Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde) e ex-chefes de PNI, entre outros órgãos. 

A fala do presidente eleito na reunião fechada durou cinco minutos, foi assistida por algum interlocutor em um notebook, gravada em telefone celular e publicada em link da TV UOL. O link está inserido na matéria da Folha de S. Paulo. A menção às igrejas evangélicas foi uma parcela do total da exposição de Lula que durou 38 segundos.

Reações e novo destaque no noticiário

O destaque do jornal Folha de S. Paulo à parcela da fala do presidente que mencionou as igrejas provocou publicações críticas, como as citadas acima, e notas públicas de organizações evangélicas. A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) publicou nota de repúdio à fala de Lula na reunião fechada, em 25 de novembro, com base na matéria do jornal. 

Segundo a nota da Anajure, o repúdio refere-se ao fato de Lula, “ao generalizar o segmento evangélico, desconsidera os múltiplos exemplos de colaboração de interesse público ocorridos na pandemia e na sociedade brasileira, afastando-se da via adequada para os debates acerca da vacinação com as entidades religiosas e o público em geral, qual seja, o do consentimento informado”. 

A Anajure afirma na nota que “tal perspectiva, que aposta num consentimento informado, colide com discursos excludentes que, próximos da ameaça, terminam por se mostrar contraproducentes”.

A Frente Parlamentar Evangélica também publicou nota de repúdio, assinada pelo presidente, o deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), também em 25 de novembro. No texto, a FPE se coloca “em defesa de todos os Evangélicos do Brasil” para repudiar a fala de Lula. Segundo o texto, “ao complementar a fala LULA disse que vai ‘pegar muita gente’ demonstrando claro intuito de perseguir preconceituosamente à comunidade Evangélica, visto que não se referiu a nenhuma outra organização religiosa, sindical e ou a qualquer outro segmento da sociedade que defende a ampla liberdade de escolha de seus integrantes”.

A FPE, mantendo a postura de oposição ao presidente eleito com uso do terror verbal, ainda afirma na nota que: “Discursos como esse reforçam a necessidade de continuarmos conclamando nossa sociedade a refletir sobre os fundamentos e os princípios que nortearão a República, caso Lula assuma e permaneça na presidente, eis que tal fala conduz o país ao temeroso caminho da discriminação, preconceito e intolerância religiosa, especificamente contra os Evangélicos”.

O jornal O Globo repercutiu o caso, na mesma direção da Folha de S. Paulo, e publicou, em 26 de novembro, matéria com o título “Pastores e bancada evangélica reagem a cobrança de Lula sobre vacina”. 

Imagem: reprodução de O Globo, 26 nov 2022

Para o conteúdo, o jornal fez uso de um vídeo publicado em mídias sociais, pelo pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, no qual ele critica o Partido dos Trabalhadores (PT) e afirma que o presidente eleito tem “preconceito com a igreja evangélica”.

O Globo ainda transforma em notícia um extrato da gravação do pastor Malafaia em que ele ataca o presidente eleito e o Supremo Tribunal Federal de forma grosseira: “Que moral o Lula tem para cobrar alguma coisa? Vai lavar essa sua boca de cachaça. você só está aí porque tem amiguinho no STF (Supremo Tribunal Federal) que liberou você. Você foi condenado em todas as instâncias por corrupção. Quero ver que líder evangélico que vai receber esse crápula”.

Além de Silas Malafaia, os pastores ouvidos por O Globo, críticos à fala de Lula, foram os deputados federais vinculados às Assembleias de Deus, apoiadores da reeleição de Jair Bolsonaro, Sóstenes Cavalcate, Otoni de Paula (MDB/RJ) e Marco Feliciano (PL/SP). Um deputado federal pastor foi ouvido “em contraponto”, Davi Soares (União/SP), da Igreja Internacional da Graça de Deus, que, segundo a matéria, afirmou que “sua igreja ‘é 100% a favor da imunização’ e que tomou quatro doses da vacina contra a Covid-19”. O pastor e deputado apoiador do atual governo, declarou à reportagem ter as portas abertas ao diálogo com Lula: “O presidente, tendo contato com as lideranças das igrejas, verá que apoiamos a vacinação por completo. Tomara que ele as procure”.

O tom da reunião da equipe de transição 

Para compreender o contexto da fala do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na reunião com o Grupo de Trabalho em Saúde da equipe de transição para o novo governo, Bereia ouviu a pesquisadora da Fiocruz e ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS) Dra. Socorro Souza. Ela integra o GT como representante da diversidade regional, racial e de gênero na área da saúde. 

Socorro Souza avalia que a matéria da Folha de S. Paulo cobre “incorretamente ou insuficientemente alguns dos importantes pontos abordados na reunião; que não somente a fala do presidente eleito”.   A ex-presidente da CNS relata que foi tratado o relevante tema da defasagem no orçamento da saúde decorrente do teto de gastos, superior aos 22,7 bilhões  anunciados. Segundo ela “este valor a ser recomposto resulta da aplicação da Lei 141/2012, que determina à União aplicar o valor do ano anterior somado à variação do PIB. Algo que se aproxima de 10% da receita corrente líquida da União”. 

Sobre a vacina e o Plano Nacional de Imunização (PNI), Socorro Souza explica que “o presidente iniciou sua fala referindo-se à importância de se falar com a sociedade, as famílias e o povo (e não somente os evangélicos) para que possam voltar a acreditar na eficácia das vacinas, e não mais nas ‘brincadeiras’ ditas pelo atual governo”.  

A pesquisadora acrescenta que Lula “fez elogios aos trabalhadores da saúde e afirmou que quer que o trabalhador tenha qualidade de vida. Que vai procurar conversar com líderes religiosos (das igrejas)”. Socorro Souza acrescenta que o presidente eleito “mencionou, neste contexto, a responsabilidade sanitária de autoridades. Sobre responsabilidade por mortes, a referência foi feita a Bolsonaro, atual Presidente da República”.

A ex-presidente do CNS ouvida pelo Bereia, reitera a fala do ex-ministro da Saúde Arthur Chioro, citada na matéria da Folha de S. Paulo, que, segundo ela, “contextualiza e usa palavras que retraram o exato sentido dos conteúdos abordados na reunião”. Ela se refere ao trecho da reportagem que cita a afirmação de Chioro: “Muito bom saber que nós temos um presidente que participa da reunião com a sociedade de especialistas e que se compromete [com a pauta]. O Brasil vai contar com o presidente da República liderando a retomada do nosso Programa Nacional de Imunização e do enfrentamento da pandemia”.

A fala de Lula na reunião (transcrição em blocos de assuntos):

00:00 a 1:30 (um minuto e meio): Primeiro, eu estou muito feliz com a reunião. Era exatamente este tipo de discussão que eu queria ouvir. E estou mais preocupado é como vocês vão sistematizar toda esta história. O dado concreto, gente, é que vou sair agora e só queria dizer o seguinte. Nós vamos ter que tratar neste mandato na saúde tentando vencer um pouco a burocracia na máquina pública. Você foi ministro, Padilha foi ministro, Humberto foi ministro, Temporão foi ministro, e sabe como às vezes a máquina emperra, a máquina não anda. Às vezes um burocrata faz e não faz, nós vamos ter que tentar lidar com isto porque todo o nosso lema, além da saúde de qualidade é a gente tentar atender este povo, povo está muito sofrido. Consegue até ir a Upa depois não consegue mais nada. O povo fica esperando, esperando e a gente não pode deixar isto. 

1:31-2:09 (38 segundos): A gente não pode, de forma precipitada, achar que a gente anunciar vacina, o povo vai tomar. Não. O povo tem que ser convencido outra vez da eficácia da vacina, e nós vamos ter agora que pegar muita gente que combateu a vacina, que vai ter que pedir desculpa. Eu, pelo menos, pretendo procurar várias igrejas evangélicas e discutir com o chefe deles o seguinte: ‘Qual é o comportamento de vocês nessa questão da vacina?’ Ou nós vamos responsabilizar vocês pelas mortes das pessoas.

2:10-2:19 (nove segundos): Outra coisa que me preocupa é que temos que levar médicos para o interior longínquo, para aqueles lugares que ninguém quer ir.

2:20-2:49 (29 segundos):  Estamos com um desafio muito grande. Nós temos que tentar fazer. Neste ano, eu tenho desejo de fazer neste ano tudo o que eu não fiz em oito anos. A gente não conseguiu fazer porque não conseguiu, não tinha expertise para fazer. Hoje nós temos muita gente com expertise, temos aí cinco ministros, muita gente com expertise para ajudar. 

2:50-3:00 (10 segundos): Nos próximos dias eu vou passar a escolher o ministério e qualquer ministro da saúde, da educação, vai ter uma gama de gente para ajudar, não para atrapalhar. 

3:01-3:36 (35 segundos): A saúde para mim é uma coisa muito dura porque a gente ouve no palanque, quando a gente desce do palanque, as pessoas que vêm abraçar a gente, muitas vezes, vêm pedir coisas, e uma coisa que me assusta é a preocupação com o autismo. Você não tem noção, Chioro, quantas pessoas no palanque falavam ‘Lula, faz alguma coisa pelo autismo, eu tenho um filho autista”. É uma coisa que eu nem me dava conta. 

3:37-4:16 (39 segundos): nós precisamos voltar a ter uma medicina humanizada, qualificada e funcional. Esta é a ideia básica e por isso é que eu estou gostando da reunião. Esta reunião serve de base para a gente ter um bom começo de mandato. Eu não posso estar anunciando algumas coisas e esperar três meses para começar. Tem que ser logo. Por exemplo, farmácia Popular, estas coisas, nós vamos ter que dar de bico, e começar a ganhar este jogo. 

4:17-5:00 (43 segundos): eu queria só agradecer. Padilha, a Janja acha que eu estou falando demais, eu queria agradecer [comentários]. Espero que vocês vão ter um relatório disto que eu gostaria de receber – está gravando, né Padilha? Eu quero receber tudo. Vocês vão ficar até que horas? [comentários]. Se eu puder eu entro um pouco à noite. Muito obrigado.

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Bereia classifica as matérias da Folha de S. Paulo e de O Globo como imprecisas. Os veículos de notícias desinformam com imprecisão em vários elementos.

A Folha de S. Paulo promove desinformação ao dar destaque à menção de 38 segundos sobre as igrejas evangélicas na fala do presidente eleito, sem contextualizá-la, no que dizia respeito ao tratamento do tema do Plano Nacional de Imunização, colocado na reunião como uma das prioridades para o novo governo na área da saúde.  O papel das igrejas evangélicas não foi o tema central da reunião e nem da fala de cinco minutos de Lula, que teve oito blocos temáticos, como se pode observar na transcrição oferecida pelo Bereia nesta matéria. 

A desinformação, produzida por extrato de material de reunião fechada da equipe com a participação do presidente eleito, destacada no título da matéria (muitas vezes, o único conteúdo lido pelo público), induz à compreensão de um destaque às igrejas evangélicas que não ocorreu. A opção do jornal por uma hierarquização temática, que provocou reações entre os evangélicos, citados brevemente na reunião, leva à conclusão de ter ocorrido uma deliberada alimentação da tensão já existente com o presidente eleito desde o período eleitoral, com a suposta ameaça de perseguição a igrejas em futuro governo de esquerda.

Isto se reflete na forma como as reações se deram em publicações de indivíduos e de mídias religiosas apoiadores do atual governo e nas notas públicas de organizações ligadas ao segmento evangélico. Elas reacenderam o tema desinformativo da “perseguição a igrejas” como usado na campanha eleitoral de oposição à candidatura de Lula. 

A ação desinformativa da Folha de S. Paulo se estende na matéria de O Globo, que repercute várias reações críticas de líderes evangélicos, a maioria políticos de oposição ao presidente eleito. O jornal chega a publicar um ataque grosseiro a Lula, em vídeo publicado na internet, que atinge também o STF e faz uso de mentiras, sem informação que ofereça contraposição. 

A reportagem de O Globo ouviu apenas um deputado federal pastor “em contraponto” e desconsiderou outros que teriam relevância para o tema, como lideranças fora do campo político, que pudessem opinar sobre uma possível cobrança de apoio das igrejas em relação à vacinação.

A desinformação se configura ainda no fato de que nem a Folha de S. Paulo nem O Globo recuperaram o papel exercido por diferentes lideranças evangélicas no contexto da pandemia de covid-19 para se verificar a pertinência de uma “responsabilização” em relação a “comportamento em relação a vacinas” da parte do futuro governo. Estes veículos de notícias também não buscaram informação dos participantes da equipe de transição sobre o porquê da menção de igrejas evangélicas pelo presidente eleito quando o tema tratado foram as vacinas.

Referências de checagem:

TV UOL. https://tvuol.uol.com.br/video/lula-participa-de-reuniao-online-com-grupo-tematico-de-saude-na-transicao-04028C183072C4897326. Acesso em 28 nov 2022.

Anajure. https://anajure.org.br/nota-publica-sobre-fala-de-lula-quanto-a-responsabilizacao-de-igrejas-evangelicas-em-relacao-a-vacinacao/. Acesso em 28 nov 2022.

Frente Parlamentar Evangélica. https://www.facebook.com/fparlamentarevangelica/posts/pfbid02uft5L2zjkaTD9fnfgS95NdKuxrvPFssrqVBsRQ4xJA9jJaX3uqDEKonbdya3cJ8Vl. Acesso em 28 nov 2022.

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Foto de capa: Pexels

Líder evangélico afirma que cristãos começaram a ser perseguidos no Brasil

*Matéria atualizada em 26 nov 2021 às 20:20

O pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia publicou em seu perfil no Twitter um vídeo sobre a notícia de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o Ministério Público da Bahia e um pastor de Ipiaú, cidade do sul do estado. Durante um culto, transmitido também pelo YouTube, esse pastor havia utilizado o termo pejorativo “homossexualismo”. O religioso ainda orientou que os fiéis não consumissem produtos de duas grandes empresas que haviam feito campanhas publicitárias no Dia do Orgulho Gay. O ato foi denunciado como homofobia e o TAC foi proposto. Nele, o pastor comprometeu-se a se retratar durante o culto e não utilizar mais o termo “homossexualismo”.

A partir do fato, o pastor Malafaia pontuou no vídeo que teria começado uma perseguição religiosa contra evangélicos e sustenta que a decisão do MP da Bahia fere o artigo 5o. da Constituição Federal, sendo uma afronta aos direitos individuais. Ele afirma que dessa forma pastores poderão ser presos pelo que falam dentro de suas igrejas. Malafaia também afirmou que a interpretação de que o termo “homossexualismo” é relacionado a doença seria  “o absurdo dos absurdos”.

Imagem: reprodução do Twitter

“Homossexualidade”, e não “homossexualismo”: quando e por que houve essa mudança

Em 1886, o psiquiatra alemão  Richard von Krafft-Ebing publicou a obra Psychopathia Sexualis. O Tratado de Krafft-Ebing constitui, naquele período, um texto unificador dos conhecimentos até então elaborados de maneira esparsa e assistemática no campo médico-psiquiátrico a respeito da sexualidade humana.

Para definir a normalidade em relação à qual determinados comportamentos sexuais seriam considerados desviantes, Krafft-Ebing  recorreu à noção biológica, portanto natural, de “preservação da espécie”. O prazer obtido da relação sexual seria natural na medida em que contribui para a reprodução. Portanto, todo erotismo praticado fora desse contexto deveria ser considerado como desviante.

O termo “homossexual” não foi utilizado até meados do século 19. As práticas homoeróticas sempre existiram, mas os sujeitos não eram rotulados como tais. O termo só foi utilizado em 1869, por Karl Maria Kertbeny, argumentando contra o código que criminalizava a homossexualidade. Já em 1886, Richard von Kraft-Ebing utilizou o termo “homossexual” para descrever o que ele considerava ser um desvio, uma doença.

A Organização Mundial de Saúde incluiu o “homossexualismo” na classificação internacional de doenças de 1977 (CID) como uma doença mental, mas, na revisão da lista de doenças, em 1990, a orientação sexual foi retirada. Desde então, o termo “homossexualismo” – com ISMO no final – passou a ser considerado pejorativo, já que o sufixo, que também tem outros significados, ficou marcado por remeter à classificação como doença. Já o termo “homossexualidade” refere-se à atração física e emocional por uma pessoa do mesmo sexo, uma orientação sexual. Estudos mais avançados fazem uso do termo “homoafetividade”, levando em conta a relação humana que está para além do ato sexual.

Entretanto, apesar desta resolução internacional, cada país e cultura trata a questão da homossexualidade de maneira diferente. O Brasil, por exemplo, por meio do Conselho Federal de Psicologia, deixou de considerar a opção sexual como doença ainda em 1985, antes mesmo da resolução da OMS. Por outro lado, a China tomou a atitude apenas em 2001.

De acordo com dados publicados no ano passado pela organização Associação Internacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Trans e Intersexuais (ILGA), em 70 países a homossexualidade ainda é criminalizada.

O artigo 5o. da Constituição e a prisão de pastores

Silas Malafaia cita que a postura do Ministério Público seria uma afronta ao artigo 5o. da Constituição. No vídeo, ele se refere a dois incisos (parágrafos) específicos:

“O artigo 5o. é cláusula pétrea, ninguém pode mudar. Vamos ao inciso VI: inviolável, vou repetir, inviolável a liberdade de consciência e de crença, [sendo assegurado] o livre exercício dos cultos religiosos [e garantida, na forma da lei], a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Lugar do culto é inviolável”. E em seguida: “Inciso VIII: ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa [ou de] convicção filosófica ou política”.

O pesquisador em Religião e Política João Luiz Moura, que é coordenador de projetos no Instituto Vladimir Herzog e pesquisador visitante no Instituto de Estudos da Religião (ISER), explicou ao Bereia que Malafaia cita os incisos corretamente, mas ignora o caput do artigo 5o., ou seja, o enunciado principal, que orienta os incisos:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”

“Claro que todos são livres para fazer o que querem, conquanto que isso não atinja exatamente a liberdade de todos e todas. Nesse caso concreto que a estamos discutindo aqui não é que o pastor está deixando de exercer a sua liberdade ao proferir um discurso religioso em torno de qualquer tema que seja.  É que o pastor está violando a liberdade de alguém ser o que é, nesse caso de alguém exercer a sua sexualidade”, explica João. “Então aqui nesse caso, e no Direito, o que prevalece é justamente o direito do indivíduo de exercer sua liberdade,  nesse caso sexual. O pastor não está deixando de exercer sua liberdade de crença religiosa”.

João Luiz Moura também sublinha que Malafaia faz um “jogo de linguagem” sobre pastores que poderiam ser presos. “Na verdade, qualquer pessoa pode ser presa se cometer discriminação sexual e racial, se violentar, agredir ou incitar ódio em questões de raça ou sexo”. O pesquisador ainda ressalta que o conteúdo do TAC entre o pastor e o Ministério Público não foi colocado a público. E que se o pastor não concordasse, ele poderia recorrer na Justiça, e o caso seria levado para instâncias superiores. 

Perseguição de evangélicos não ocorre no Brasil

Sobre a perseguição alegada pelo pastor Malafaia, é mais um eco da suposta “cristofobia” existente no país, mencionada inclusive pelo presidente Jair Bolsonaro em discurso na Organização das Nações Unidas. A “cristofobia” tem sido usada para se referir a episódios de preconceito e discriminação contra evangélicos, embora não exista no país um sistema estruturado de perseguição violenta contra esse setor religioso.

O Brasil não aparece nas pesquisas sobre países que perseguem cristãos, e não podemos afirmar que exista perseguição aos cristãos aqui, pois cristãos não são presos, condenados, expulsos de suas casas ou perseguidos por sua fé. Eles têm plena liberdade de culto e de expressão.

Podemos considerar que dentro contexto político e religioso do Brasil, onde grande parte dos evangélicos ainda apoia o Presidente da República e setores conservadores da sociedade, religiosos ou não, são constantemente mobilizados pelos discursos do presidente e de seus apoiadores, em temas como “Ideologia de Gênero”, defesa da família ou perigo comunista, o termo cristofobia é mais um utilizado dentro da retórica conservadora para mobilizar seus apoiadores

Desta maneira, o uso do termo cristofobia por alguns setores evangélicos e políticos do Brasil seja uma maneira de “tentar equiparar” a perseguição e a discriminação violenta sofrida por LGBTs, negros e outras minorias. 

O professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Renan Quinalha, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) afirma que é “é evidente que cristãos são perseguidos em outros países, mas isso não acontece no Brasil, onde eles são a esmagadora maioria. Sem negar que existam casos concretos e isolados de preconceito, mas me parece que essa operação de falar em cristofobia é falaciosa. Ainda mais guardando analogia com outras fobias, que são estruturais, institucionais e culturais no Brasil, como racismo e LGBTfobia”. 

João Luiz Moura complementa: “Nós não vemos um monte de pastores sendo presos em todo o Brasil porque falam contra questões sexuais. Pelo contrário, dominicalmente pode-se ir à grande maioria das igrejas brasileiras e ver um pastor falando ‘teologicamente’, ‘biblicamente’ sobre questões sexuais e inclusive contra a comunidade LGBTQIA+ e não sendo denunciado nem condenado. Isso aconteceu de maneira isolada nessa cidade da Bahia e o pastor Malafaia toma isso como seu exemplo absoluto a fim de construir uma linguagem, uma narrativa, uma performance, de um fantasma que é a perseguição e a cristofobia no Brasil”.

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Bereia conclui que as informações divulgadas por Silas Malafaia no vídeo em sua conta do Twitter são falsas. Não há evidências de perseguição religiosa aos evangélicos no Brasil e ao citar os incisos do artigo 5o., o pastor ignora o caput do artigo. Além disso, o termo “homossexualismo” é associado a doença, ao contrário do que diz o pastor, conforme a mudança de abordagemda Organização Mundial de Saúde, a fim de evitar discriminação contra as pessoas e suas orientações sexuais diversas.  Pode-se concluir que a alegação de perseguição faz parte de estratégia para produzir pânico moral e mobilizar os evangélicos no alinhamento político com pautas da extrema-direita, incluindo o  governo federal.

Referências:

Tribuna da Bahia. https://www.trbn.com.br/materia/I49621/ap-s-acordo-com-mp-pastor-de-ipia-se-retrata-por-conte-do-homof-bico Acesso em: 26 nov 2021.

Scielo Brasil. https://www.scielo.br/j/rlpf/a/cnRtXwjGCBk9DHqbS6Lqf8g/?lang=pt Acesso em: 26 nov 2021.

BBC Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48801567 Acesso em: 26 nov 2021.

Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/constfed.nsf/fc6218b1b94b8701032568f50066f926/54a5143aa246be25032565610056c224?OpenDocument Acesso em: 26 nov 2021.

Pew Research Center. https://www.pewresearch.org/fact-tank/2021/09/30/key-findings-about-restrictions-on-religion-around-the-world-in-2019/ Acesso em: 26 nov 2021.

Bereia. https://coletivobereia.com.br/cristofobia-uma-estrategia-preocupante/ Acesso em: 26 nov 2021.

BBC Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54254309 Acesso em: 26 nov 2021.

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Imagem de capa: reprodução do Twitter