Veículo extremista de direita divulga conteúdo enganoso sobre restrições à educação sexual e de gênero no Reino Unido

Circula em grupos de WhatsApp de igrejas, matéria publicada pela Revista Oeste, em 16 de maio passado, com o título “Reino Unido proíbe ensino de ideologia de gênero nas escolas”. Bereia recebeu de leitores a sugestão de checagem deste conteúdo que tem apelo em comunidades religiosas cristãs.

A matéria afirma que a secretária de Educação do Reino Unido (formado pelos países Inglaterra, Escócia, País de Gales, Irlanda do Norte) Gillian Keegan publicou comunicado na mesma data, que declara ser proibido o ensino da “ideologia de gênero” nas escolas.

A justificativa é que “esse tipo de ensinamento ‘ignora sexo biológico’”. O texto diz ainda que Keegan afirmou que isto não impede as escolas de ensinarem às crianças sobre as pessoas que se submetem à cirurgia de mudança de gênero.

Imagem: reprodução/Revista Oeste

Contexto           

A maior parte da matéria da Revista Oeste é a menção a duas entrevistas da secretária de Educação Gillian Keegan para oferecer mais justificativas: uma para a TV BBC e outra para o jornal Telegraph. A matéria diz que, à BBC, Keegan afirmou que muitos livros têm conteúdo impróprio para as escolas, pois “esse tipo de conteúdo ignora o sexo biológico”. Ela teria afirmado também à TV que não sabe se o problema é generalizado, mas o governo tomou a medida depois que alguns professores manifestaram preocupações.


A notícia em outros veículos de imprensa

Bereia verificou que a notícia da Revista Oeste foi repercutida pelo portal de notícias da Rede Record R7, com indicação do link para leitores e leitoras. A CNN deu a notícia com a mesma ênfase, variando apenas o foco, neste caso dado na palavra do primeiro-ministro Rishi Sunak (Partido Conservador) na defesa da pauta.

Imagem: reprodução/site R7

Imagem: reprodução/CNN

Esta mesma ênfase da notícia foi repercutida por vários veículos e portais que se alimentam de notícias de identidade conservadora, inclusive os religiosos.

Imagem: reprodução/Pleno.News

Outros três veículos de imprensa, O Globo, Folha de S. Paulo e O Dia, ofereceram outra informação, via agência France Press (AFP) de jornalismo: que o governo do Reino Unido “quer proibir”, “cria limite de idade” e “projeta limitar” aulas de educação sexual/de identidade de gênero nas escolas. Com apuração mais ampla, a matéria divulgada por estes veículos enfatiza a informação de que este é um projeto a ser implementado e não uma ação efetivada, como os demais levaram a crer.

Imagem: reprodução/O Globo

Imagem: reprodução/Folha de S.Paulo

Imagem: reprodução/O Dia

O que diz a imprensa do Reino Unido

O que nenhum dos veículos de imprensa no Brasil noticiou é que o que está em questão é um plano, um rascunho de proposta para limitar as idades em que o assunto “identidade de gênero” deve ser abordado nas escolas do Reino Unido – como Bereia apurou em uma pesquisa sobre a cobertura do tema na mais importante rede de imprensa,  a BBC News, e no jornais The Guardian e The Independent.

Segundo matéria da BBC News, de 16 de maio passado, com o título “Escolas são orientadas a não ensinar sobre identidade de gênero”, o veículo informa o que fontes governamentais disseram sobre os planos para proibir a educação sexual para menores de nove anos, bem como o ensino sobre identidade de gênero. A BBC News acrescenta que o primeiro-ministro Rishi Sunak disse que a nova orientação garantiria que as crianças não fossem “expostas a conteúdos perturbadores”.

No entanto, a matéria registra que alguns professores disseram que não há evidências de um problema generalizado. O texto acrescenta que de acordo com os planos, os alunos do ensino secundário aprenderão sobre características protegidas, tais como orientação sexual e mudança de gênero. Porém, a orientação atualizada deixa claro que as escolas “não devem ensinar sobre o conceito de identidade de gênero”, afirma o governo.

Imagem: reprodução/BBC

Em matéria intitulada “Alunos na Inglaterra podem aprender sobre cirurgia de gênero mas não ‘ideologia’, diz Keegan, o The Guardian informa que a orientação será aplicada apenas na Inglaterra, e não em todo o Reino Unido. De acordo com o documento publicado pelo governo, as escolas na Inglaterra serão proibidas de ensinar educação sexual a crianças menores de nove anos. O jornal explica que se espera que a orientação instrua as escolas a não ensinarem às crianças sobre “ideologia de gênero” e deixe claro que se trata de um assunto contestado, se solicitado. A secretária de Educação Gillian Keegan disse ao The Guardian que isso não impediria as escolas de ensinar às crianças sobre as pessoas que se submetem à cirurgia de mudança de sexo e que esta distinção era uma “maneira sensível” de lidar com isso.

The Guardian ouviu professora Jo Morgan, diretora executiva da organização Engendering Change, que realiza oficinas de educação sexual nas escolas. Ela disse que os ministros não deixaram claro o que queriam dizer com ensino de “identidade de gênero”.

Imagem: reprodução/The Guardian

Já o tradicional jornal The Independent, na matéria intitulada “Sunak defende planos de educação sexual como proibição de ensino de identidade de gênero em comparação com a odiada Seção 28 de Thatcher”, chama o plano do governo de controverso. O jornal enfatiza que os ministros devem proibir aulas de educação sexual para crianças menores de nove anos e da noção de identidade de gênero para adolescentes até 18 anos.

The Independent ouviu o chefe-executivo da Anistia Internacional Sacha Deshmukh, que denunciou os planos como “perigosos e colocam em risco a segurança e o bem-estar das crianças, enquanto as escolas enfrentam questões como a exposição de crianças a partir dos sete anos à pornografia”.

Deshmukh acrescentou ao The Independent: “toda uma geração de crianças e jovens LGBTI ficou marcada pela Secção 28 – devemos esforçar-nos para não cometer novamente os mesmos erros… Crianças de todas as idades têm direito a uma educação completa e não devem temer a discriminação. As escolas precisam de mais recursos, mais formação e mais apoio para que os professores proporcionem relações inclusivas, saúde e educação sexual que respondam aos desafios que as crianças enfrentam hoje.”

Imagem: reprodução/The Independent

A cobertura da TV e dos jornais britânicos contextualiza a pauta e oferece pontos de vista críticos à medida. Os veículos informam que o documento oficializa o controverso termo “ideologia de gênero”, avaliado cientificamente como um conceito inventado no espaço da Igreja Católica para confrontar os direitos de gênero conquistados a partir dos anos 90, mesclando a noção de educação sexual com conceitos de sexo anatômico/ biológico com gênero, permitindo que se discuta a cirurgia de mudança de sexo.

Polêmica deixa outros temas em segundo plano

Bereia ouviu o psicólogo e pastor da Igreja Metodista no Brasil, em atuação na Igreja Metodista Britânica Paulo Bessa sobre o caso.

O pastor enviou ao Bereia um relatório do Parlamento Britânico, a House of Commons, de abril passado, o qual oferece um quadro de como a temática de gênero vem sendo tratada nas escolas do Reino Unido, e também sobre a reação dos parlamentares e de organizações que trabalham com educação e com direitos à nova proposta do governo que impõe limites à educação sexual e de gênero.  Ele reafirma que apenas a Inglaterra aprovou a aplicação das novas medidas.

O pastor Paulo Bessa afirma que não sabe se esta medida será, de fato implementada, pois há grande possibilidade de o Partido Conservador não ser reeleito nas próximas eleições. Para ele, levantar esta questão é apenas desviar dos temas fundamentais que vem afligindo a população nos últimos anos e que, estes sim, deveriam ter políticas de enfrentamento. Bessa listou, a pedido do Bereia, os principais problemas do país hoje:

  1. Custo de vida alto e inflação. No ano passado, a inflação oficial chegou a 11% ao ano, altíssima para os padrões britânicos.
  2. Financiamento do sistema público de saúde, o NHS. Já se vê aqui o que acontece em alguns hospitais brasileiros: pacientes sendo colocados em camas nos corredores.
  3. Moradia: há um déficit de moradias em Londres, mais especificamente, e a população de sem-teto tem aumentado, pois muitas pessoas não conseguem pagar os preços atualmente cobrados pelos “locatários”.
  4. Não tenho números oficiais, mas um “Conselheiro” de Hackney, “Boroughs” em que resido, cargo mais ou menos equivalente ao dos vereadores, disse-me que faltam 90 mil  moradias em Londres. “Boroughs” são unidades administrativas parlamentaristas, com Conselheiros eleitos pela população, que administram a vida de áreas equivalentes às subprefeituras de São Paulo, por exemplo. Só que lá, em São Paulo, o prefeito indica os subprefeitos. Aqui, cada “borough” tem um/a prefeito/a, eleito/a pela população, que administra a unidade a partir do parlamento local, que é o “Conselho”.
  5. “Rough sleepers” são as pessoas que dormem diretamente nas ruas. Homeless podem ser pessoas que encontram um abrigo temporário oficial ou não. Temos um trabalho de acolhida a homeless em duas de minhas igrejas e converso com pessoas que ocupam construções abandonadas, mas vivem sem água, eletricidade ou aquecimento. Ofereço um artigo sobre o tema, do começo do ano, mas dá, aos leitores do Bereia, uma ideia do problema

O pastor destaca que é importante lembrar que os planos privados de saúde (convênios) não são comuns, como no Brasil. O sistema de saúde todo é conectado ao NHS. Mesmo que uma pessoa vá a um/ médico/a privado, este/a profissional deve enviar relatório de consultas, exames, etc para o GP (General Practitioner), que é a clínica do bairro, responsável pela guarda do histórico relacionado à saúde dos indivíduos. O NHS atende  todas as pessoas oficialmente residentes no Reino Unido, mas não é universal como no Brasil, onde até os/as turistas estrangeiros podem ser atendidos/as pelo SUS sem terem que pagar.

****
Bereia classifica a matéria da Revista Oeste, que circula em grupos de WhatsApp de igrejas como enganosa. É fato que o governo do Reino Unido apresentou um plano para uma possível restrição à educação sexual e de gênero em escolas dos países que o compõem. No entanto, a notícia é oferecida como proposta já implementada, o que não é verdade pois está em discussão e diz respeito apenas à Inglaterra, neste momento. O veículo quer chamar a atenção para uma suposta cruzada internacional contra a chamada “ideologia de gênero” e veicula conteúdo descontextualizado, com informações erradas (a medida não será aplicada a todo o Reino Unido) e sem os dados necessários para oferecer um panorama do que significa esta política do governo britânico no atual momento do país.

Bereia chama a atenção de leitores e leitoras sobre a prática de veículos e lideranças extremistas de direita de divulgar conteúdo desinformativo sobre casos em outros países, com situações distantes, na maioria das vezes, pouco conhecidas no Brasil. É importante buscar fontes locais, como feito nesta entrevista, para conhecer o verdadeiro teor dos casos.


Referências de checagem:

R7, https://noticias.r7.com/internacional/revista-oeste/reino-unido-toma-medida-polemica-proibe-ensino-de-ideologia-de-genero-nas-escolas-17052024/ . Acesso em 27 mai 2024.

CNN, https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/americo-martins/internacional/reino-unido-proibe-ensino-sobre-identidade-de-genero-nas-escolas/ . Acesso em 27 mai 2024.

O Globo, https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2024/05/16/reino-unido-quer-proibir-aulas-sobre-identidade-de-genero-nas-escolas.ghtml  . Acesso em 27 mai 2024.

Folha de S. Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2024/05/reino-unido-cria-limite-de-idade-para-educacao-sexual-nas-escolas.shtml . Acesso em 27 mai 2024.

O Dia, https://odia.ig.com.br/mundo-e-ciencia/2024/05/6846710-reino-unido-projeta-limitar-aulas-de-identidade-de-genero-nas-escolas.html . Acesso em 27 mai 2024.

BBC News, https://www.bbc.co.uk/news/education-69017920. Acesso em 28 mai 2024.

The Guardian, https://www.theguardian.com/world/article/2024/may/16/pupils-in-england-will-not-be-taught-gender-ideology-says-gillian-keegan . Acesso em 28 mai 2024.

The Guardian, https://www.theguardian.com/uk-news/2024/mar/04/nhs-funding-faces-biggest-real-terms-cuts-since-1970s-warns-ifs Acesso em 28 mai 2024.

The Independent. https://www.independent.co.uk/news/uk/politics/rishi-sunak-sex-gender-identity-section-28-b2546256.html . Acesso em 28 mai 2024.

House of Commons, https://researchbriefings.files.parliament.uk/documents/CBP-9078/CBP-9078.pdf. Acesso em 28 mai 2024.

Governo do Reino Unido, https://www.ons.gov.uk/economy/inflationandpriceindices. . Acesso em 28 mai 2024.

Inside Housing, https://www.insidehousing.co.uk/comment/government-has-failed-to-face-up-to-the-real-cost-of-fixing-londons-housing-crisis-84671. Acesso em 28 mai 2024.

Bereia, https://coletivobereia.com.br/panico-moral-sobre-ideologia-de-genero-aborto-erotizacao-de-criancas-e-defesa-da-familia-e-usado-para-disputa-eleitoral-com-base-em-desinformacao/. Acesso em 30 mai 2024