Um olhar evangélico “raiz” sobre o Papa-Pastor viveu sua Páscoa

***Versão completa do artigo publicado pela Carta Capital, em 21 de abril de 2025.

E o Papa Francisco viveu sua Páscoa-Passagem! Depois de semanas de sofrimento, com uma pneumonia bilateral, Francisco fez sua travessia “para os braços de Deus” – uma expressão religiosa muito cara aos evangélicos no Brasil.

Como já escrevi neste espaço de Carta Capital, quando das celebrações dos dez anos do pontificado de Francisco (2023), evangélicos brasileiros, majoritariamente, tiveram um imaginário em torno dos Papas da Igreja Católica construído com base em rejeição.

A herança crítica da Reforma Protestante à “corrupção” que a Igreja de Roma promoveu contra o Evangelho, alimenta um imaginário negativo na figura do seu líder maior, o Papa. A imagem é fortemente atrelada à ideia do poder terreno que perverte a fé (como chefe de Estado) e à riqueza representada no amplo no patrimônio da Igreja Católica.

Quando o Papa Francisco assumiu, em 13 de março de 2013, ele sucedia, praticamente, dois papas. Primeiro, João Paulo II que, por 26 anos, se tornou muito popular, marcadamente por suas dezenas de visitas papais a muitos países do mundo. Deu atenção a povos e situações antes esquecidas pela liderança maior da Igreja Católica, colocando-se fisicamente presente.

João Paulo II, porém, tornou-se também conhecido como aquele que “puxou o freio do processo e deu marcha-ré” a uma série de avanços do Vaticano II, com a assessoria especial daquele considerado seu “braço direito”, o cardeal e prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (o antigo tribunal da Inquisição) Joseph Ratzinger.

A ofensiva conservadora que marcou a Igreja Católica, no final dos anos 1980, nos anos 90 e nos 2000, estabeleceu um período de oposição a tudo o que alimentasse a igreja progressista, acusada de ser um desvio marxista. Foram 26 anos de pontificado de João Paulo II (1978 -2005), caracterizados por perseguição a bispos, padres, freiras e leigos ligados à Teologia da Libertação, ou simplesmente lideranças comprometidas com os princípios do Concílio Vaticano II, a fim de “restaurar a grande disciplina”, como João Paulo II afirmou ser prioridade de seu papado, no discurso inaugural.

Ratzinger se tornou o Papa Bento XVI, em 2005, para manter e garantir continuidade desse projeto, afinal, 172 dos 184 membros do Colégio Cardinalício foram nomeados por João Paulo II. Porém, foi um curto papado. Em 11 de fevereiro de 2013, Bento XVI apresentou sua renúncia.

Foi neste contexto que, um mês depois, um Conclave elegeu como Pontífice o argentino, religioso da ordem dos jesuítas, Jorge Mario Bergoglio. Numa referência ao santo de Assis, reconhecido pelo seu trabalho com os empobrecidos, o primeiro latino-americano a se tornar papa escolheu o nome Francisco. A escolha do nome marcava a identidade do episcopado de Bergoglio, como um homem sem luxos, com vocação missionária.

A qualidade de Francisco como “pastor”, elemento significativo do seu papado, relevante característica de uma liderança religiosa sacerdotal, do ponto de vista evangélico “raiz” (não aquele das igrejas-corporações, das churches, ou de Legendários), possivelmente colaborou para a reconstrução da imagem do Papa entre evangélicos, com elementos muito positivos.

A figura do pastor é muito destacada na tradição cristã pela atividade pecuária que marcava o sustento da vida: a criação de ovelhas e o trabalho do pastoreio. Esta atividade era transportada simbolicamente para a vivência da fé.

Deus é considerado o Verdadeiro Pastor, o modelo de pastoreio, pois tem autoridade e é dedicado àqueles de quem cuida, tem poder e carinho, tem vigor e ternura. A maior imagem disto está no Salmo 23, “O Senhor é meu Pastor e nada me faltará”. Assim como Deus faz, os governantes e os líderes religiosos deveriam fazer também, na responsabilidade de conduzir o povo, para o seu bem-estar.

Jesus demonstra, então, com suas ações todas baseadas em misericórdia e justiça, o sentido de ser um bom pastor: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas” (Jo 10.11-15). Jesus reafirma o sentido do pastoreio das ovelhas que, nesta imagem, representam todos que carecem de cuidado amoroso, misericordioso e justo: acompanha-as todas, guia, cuida, conduz, abre caminhos seguros, de bem viver.

A tradição das igrejas evangélicas (o sentido de “raiz”), do valor ao pastoreio dos sacerdotes, no cuidado com o rebanho mais próximo, a Igreja, e o mais amplo, o mundo, torna possível olhar para o pontificado implementado por Francisco por este prisma: o do Papa-Pastor.

São muitos exemplos dos 12 anos de pontificado de Francisco. A começar da primeira visita papal, pouco mais de três meses depois de assumir a função, em 8 de julho de 2013, a Lampedusa. a ilha é uma das principais rotas de entrada de refugiados do Norte da África, via Mar Mediterrâneo, pela Itália, em busca de sobrevivência na Europa. A ida do então novo papa funcionou como um “cartão de visita” do que a ele passaria a representar.

Quando Francisco visitou Lampedusa, estimava-se que cerca de 20 mil pessoas haviam morrido na travessia precária pelo mar nas duas décadas anteriores. Dias antes, um barco com 165 migrantes do Mali atracou no porto. No dia em que ele estava na ilha, 120 pessoas foram resgatadas no mar depois que os motores de um barco quebraram a 11 quilômetros da costa, entre elas, quatro mulheres grávidas.

Depois de colocar uma coroa de flores no mar para reverenciar os mortos, Francisco pronunciou crítica ao que chama de “globalização da indiferença” aos migrantes, classificando-os como principais vítimas de uma “cultura do descartável”.

“Peçamos ao Senhor a graça de chorar sobre a nossa indiferença, de chorar pela crueldade do nosso mundo, do nosso coração e de todos aqueles que no anonimato tomam decisões sociais e econômicas que abrem as portas para situações trágicas como esta”, desafiou Francisco na ocasião. O Papa-Pastor estabelecia ali sua plataforma de trabalho ancorada no pastoreio do cuidado comprometido com a justiça, como o desejo que manifestou a jornalistas, em encontro logo após sua eleição: “Como eu gostaria de uma Igreja pobre para os pobres!”.

Neste contexto, Bergoglio inscreveu seu nome como o primeiro Papa latino-americano, o primeiro Papa jesuíta, o primeiro Papa com o programático e simbólico nome de Francisco. Tudo isto o tornou singular e suficiente para fazer história.

Com aquela base teológica e pastoral que tornou pública em Lampedusa, Francisco atuou pela paz e pela justiça em muitas frentes, com a das relações Estados Unidos-Cuba, pelo fim da guerra entre Ucrânica e Rússia e, mais recentemente, na denúncia do genocídio promovido por Israel contra a Palestina. Ele produziu também, importantes plataformas para a Igreja Católica.

A sua primeira carta pastoral publicada em novembro de 2013 foi intitulada “La alegría del Evangelio” (Evangelii Gaudium). Ela traz um tema importante na teologia e na cultura das igrejas evangélicas “raiz” que é o da conversão. A ideia de conversão vem do termo grego “metanoia”, traduzido como “mudar de ideia”, “mudar o modo de pensar e sentir”. A raiz latina “conversio”, “mutatio”, evoca a noção de transformação, mudança. Por isso, se construiu uma pregação, entre evangélicos, embasada na ideia de transformação, nas crenças e nas práticas, e com ela a mudança de percepção do mundo.

Descartada a reflexão em torno do proselitismo dos evangélicos, centrado na conversão à crença e no (re)batismo, e na mudança de vida ancorada na moralidade puritana, a noção de que o encontro com o Evangelho de Cristo traz mudança de vida, é um elemento-chave nesta leitura pastoral.

É esta a linha da reflexão que o Papa Francisco impôs à sua Exortação Apostólica “A Alegria do Evangelho”, que encontra ressonância nesta tradição evangélica ainda viva em parcela importante das igrejas brasileiras. No texto, o papa pede aos fiéis que se desloquem com a noção da “Igreja em Saída” – uma igreja que não é fechada em si mesma e vai ao encontro dos desafios missionários impostos pelo mundo e suas injustiças.

Na Encíclica, Francisco inclui até mesmo uma “conversão do papado”, para torná-lo “mais fiel ao significado que Jesus Cristo quis dar-lhe e às necessidades atuais da evangelização”

A noção de “igreja em saída” abriu caminho para aprofundamentos que passam pelo cuidado com toda a Terra, expresso na importantíssima Encíclica Laudato Si (2015) e na realização do Sínodo da Amazônia (2019). Também se conecta com o cultivo de fecundos encontros e expressões de amor que Francisco teve com lideranças de igrejas irmãs e de outras religiões.

Neste caminho, o Papa-Pastor, pregador da conversão, colocou como prioridade, no seu primeiro ano, a reestruturação das instituições financeiras do Vaticano, para que estivessem alinhadas com as regras internacionais de transparência e acompanhadas por um controle visível.

Ao mesmo tempo, Francisco frustrou expectativas de conversão entre fiéis progressistas, com posições conservadoras em relação à justiça para mulheres e para pessoas LGBTQIA+. Ele se rendeu à falaciosa noção de “ideologia de gênero”, apesar de ter realizado gestos amorosos e inclusivos para com mulheres e para com a população LGBTQIA+.

Porém, os focos de oposição manifestos em várias partes do mundo ao Papado marcadamente humanitário e conciliador de Francisco devem-se fortemente ao legado conservador dos dois pontificados passados. Há muita resistência de alas da Igreja Católica a suas ações marcadas pela reestruturação das confusas finanças do Vaticano, criação de comissão para combater abuso sexual de crianças na Igreja, defesa de uma Igreja mais tolerante em questões de família, duras críticas ao capitalismo, à destruição do meio ambiente e ao enfrentamento dos poderes que promovem guerras e morte.

É fato que Francisco fez história com sua proposta de imprimir um estilo humanizado ao cargo, coerente com suas ideias. Foi assim que ele marcou seu pontificado como um Papa-Pastor: buscou se aproximar das pessoas comuns e de suas mazelas, com discursos simples, ações e propostas de humildade para a Igreja. Francisco, portanto, rompeu com o histórico aparato em torno do cargo, que tende a afastar Pontífices dos fiéis, e mais ainda dos considerados “infiéis”. Ao mesmo tempo que atingiu racionalidades, afetou corações.

Por estas coisas, é possível reconhecer que um significativo número de evangélicos brasileiros puderam se sentir um pouco mais próximos e menos avessos a um Papa. Este é um exemplo de como Francisco deixa um legado importante, não apenas para quem se reconhece cristão, mas para todas as pessoas com ou sem religião, que têm sede e fome de justiça.

** Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

Foto de Capa : Vatican News/Reprodução

60 anos do Golpe Militar de 1964: memória e ressurreição

Em plena ditadura militar, estes versos compostos pelo então pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil João Dias de Araújo (1931-2014), transformados em canção pelo médico e músico Décio Lauretti, refletem uma compreensão de fé que insiste em subsistir entre evangélicos brasileiros:

Que estou fazendo se sou cristão? Se Cristo deu-me o seu perdão

Há muitos pobres sem lar, sem pão, há tantas vidas sem salvação

Meu Cristo veio pra nos remir, o homem todo sem dividir,

não só a alma do mal salvar, também o corpo ressuscitar.

Há muita fome em meu país, há tanta gente que é infeliz,

Há criancinhas que vão morrer, há tantos velhos a padecer.

Milhões não sabem como escrever, milhões de olhos não sabem ler

Nas trevas vivem sem perceber que são escravos de outro ser.

Aos poderosos eu vou pregar, aos homens ricos vou proclamar

Que a injustiça é contra Deus, e a vil miséria insulta aos céus

(a canção pode ser ouvida na gravação do Grupo Milad, disco Água Viva, 1985)

Para além da busca pela salvação da alma com uma morada no céu, o pastor João Dias e muita gente no seu tempo haviam construído um jeito de entender a fé e a relação com Deus que ia além do individual e passava por um olhar para o ser humano total, marcado por misericórdia e solidariedade, inspirados na ação de Jesus de Nazaré tal como relatada na Bíblia cristã. Esta fé gerava compromissos por relações justas entre as pessoas, e entre elas e as lideranças públicas. E estes compromissos se desdobravam em ações com base na compreensão expressa no refrão daquela mesma canção de 1967: “a injustiça é contra Deus e a vil miséria insulta os céus”.

Neste 31 de março, de celebração da Páscoa, que nos faz vir à tona a memória dos chamados “anos de chumbo”, com o aniversário de 60 anos do golpe militar de 1964, é significativo lembrar esta canção. Hoje ela ainda é cantada em uma pequena parcela de igrejas e em grupos ecumênicos que buscam superar tanto a lógica individualista do mercado da música religiosa quanto a predominância dos conteúdos musicais que passam longe desse jeito de entender a fé expresso na poesia da canção.

A memória dos anos que se sucederam ao Golpe Militar guarda um lugar especial para cristãs e cristãos, entre eles muitos evangélicos, tanto entre as vítimas, aquelas que tiveram liberdades suprimidas e direitos violados por meio da censura, de prisões arbitrárias, da tortura e das execuções sumárias, quanto entre os omissos e os colaboradores, que no balanço, foram todos apoiadores. Os dois grupos se colocaram assim contraditoriamente em nome da sua compreensão de fé e de relação com Deus.

O primeiro grupo pagou o preço de viver a fé que questiona “Que estou fazendo se sou cristão?”, inspirado na justiça e na paz, como viveu Jesus de Nazaré, que também foi vítima de um sistema repressivo que tinha na religião uma aliada. Essas mulheres e homens, boa parte deles em plena juventude, carregaram sua cruz, mas finalmente encontram sua Páscoa, revivendo na memória de muitos grupos hoje com a retomada das ações pela busca da verdade e da justiça que lhes foi negada.

É fato que o jeito de entender a fé entre evangélicos brasileiros que predominou na história e é enfatizado no nosso tempo é aquele voltado para a salvação individualista, seja da alma, das finanças, de projetos pessoais ou políticos, ou mesmo para uma fé intimista muito pouco ou quase nada marcada por um olhar para o ser humano, com misericórdia, solidariedade e sentimento de justiça. No entanto, é significativo guardar a memória de que, ainda assim, tanto no passado quanto no presente esta não é uma unanimidade. Cristãos evangélicos hoje, como o pastor João Dias de Araújo, e tantos outros que os precederam, ainda se inspiram na humanidade divina de Jesus de Nazaré e buscam respostas para a pergunta “Que estou fazendo se sou cristão?” com base na compreensão de que “a injustiça é contra Deus e a vil miséria insulta os céus”.

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Foto de capa: Arquivo Público do Distrito Federal

Quando o bem cede ao mal… mesmo que um pouquinho

*Publicado originalmente no Portal das CEBs

Nossos filhos sempre nos ensinam

Em qualquer tempo e idade.

Esse foi soprado pela nossa Clara.

*Este texto que me tirou da cama na madrugada trata de um olhar muito particular sobre a pandemia que assola nosso mundo, mas que nessa abordagem se restringirá à realidade que me rodeia se estendendo ao máximo ao nosso país.

A pandemia que vivemos é uma experiência única para os que atualmente vivem na terra. A pandemia anterior a essa é datada de 1918, há 102 anos atrás,  impossibilitando termos em nosso meio alguém que tenha sobrevivido a ela. Mesmo que tenhamos pessoas com essa idade ou alguns anos a mais, esses seriam recém-nascidos ou bem pequeninos na época, e talvez tenham vivido em lugares que sequer a pandemia tenha passado.

Meus pais, cuja a idade é de 94 anos, dizem a todo momento que nunca viveram ou viram falar de algo parecido. Isso se explica pela idade, mas também pelo local onde viveram a infância, interior da Bahia, e pela falta de acesso as notícias, sejam elas escritas ou via rádios.

Podemos dizer então, que estamos vivendo o que costumamos chamar, popularmente, de experiência ímpar, para qual não existe um par ou semelhança com outra.

Tendo dito sobre a singularidade dessa experiência vivida por nós nesse momento pandêmico, outras singularidades se apresentam derivadas da complexidade dessa realidade. Uma das singularidades é a forma como tem sido tratada a pandemia no nosso país e, por conseguinte, nos estados e municípios.

Nesse tempo específico vivemos um momento de reabertura das atividades econômicas e sociais.  Lembrando, entretanto, que nunca tivemos fechados totalmente. Mas o que é importante tratar nesse aspecto específico é como a população e as instituições  se comportam diante desse novo cenário de retorno à chamada vida “normal”. E é sobre esse ponto que me é sugerido escrever esse texto.

Nosso comportamento é regido por leis visíveis, palpáveis e com certa logicidade, mas também por outras que aparentemente nos são invisíveis, inexistentes e, em alguns casos, incompreensíveis. Longe de querer afirmar aqui algo do campo de alguma sobrenaturalidade. Pelo contrário, trato aqui de algo muito natural.

Antes de continuar falando sobre o que chamo de leis naturais, quero trazer um exemplo de infância que me veio quando ainda lutava entre o sono e a provocação de escrever esse texto.  Quando criança num bairro pobre da periferia da cidade onde moro, costumávamos ter poucos brinquedos. Um brinquedo muito presente era a bola de plástico. Objeto barato e de fácil acesso.  Quando, porventura a bola furava, colocávamos uma fita adesiva ou, na maioria das vezes, um esparadrapo.  Isso acontecia dezenas de vezes com a mesma bola. Outros furos e o alargamento do furo anterior, mesmo tendo sido tapado, o que dizia da ineficácia do “curativo”. Até que a bola não resistia, murchava de tal forma que nada mais podia ser feito. Havíamos perdido o brinquedo e a brincadeira tão importante para nós naquelas pequenas possibilidades de diversão e lazer.

Por que me veio essa história de tempos tão passados? Acredito que porque ela nos guia para uma boa analogia que deixe mais claro o que estou chamando de “lei invisível”. É como o ar na bola escapando da bola. Era um pequeno furinho que um pedaço de esparadrapo dava conta. Mas o uso insistente nas brincadeiras vai fazendo surgir novos furinhos e alargando os furos anteriormente tamponados.  Ninguém via como acontecia. Só víamos o acontecimento. E, muitas vezes, só nos dávamos conta quando a bola estava totalmente vazia e sem possibilidades de regeneração, tão entretidos que estávamos na brincadeira.

O fato das normas de isolamento social estarem sendo flexibilizadas, os estabelecimentos abertos e a vida social  retornando às atividades, são furos nessa bola, sem que, assim como as crianças, se perceba logo o dano.  Possivelmente, só poderá ser visto quando a bola estiver totalmente vazia.

Onde poderia estar a invisibilidade desses furos, já que é noticiado em ampla rede de comunicação as decisões de cada abertura e flexibilização? Está no ar saindo da bola sem que a gente veja. Na medida em que a aparência de “normalidade“ vai sendo construída com as reaberturas, ao mesmo tempo vai sendo construído dentro de mim, sem que eu perceba, um certo atenuar da realidade, dos riscos da doença e de sua contaminação e, talvez o mais forte em nós, o desejo de retornar a vida como era antes.

Os governantes, quando por uma imensa irresponsabilidade decidem permitir a reabertura do comércio, voltar às atividades produtivas, sociais, de lazer e religiosas, eles estão mandando um recado para esse desejo. Eles estão fazendo o furinho na bola.  E todos nós somos atingidos por esse recado “não dito”.

Fico olhando para os jovens, incluindo meus filhos, e me perguntando: quantos bois são necessários matar para resistir aos encontros dos amigos, a ida aos bares, ao futebol, aos churrascos e festas? Todas essas atividades já estão acontecendo e os chamando para participar. Falo isso dos que estavam ou estão em isolamento. Porque existe um grupo que nunca fez isolamento algum, burlou o que pode e com muita maestria, diga-se de passagem, todas essas normas. E muitos desses não desenvolveram a doença (o que não significa que não ajudaram a espalhar a doença). Este fato acabou colaborando na crença de que eles, os jovens, são “imunes” e a que essa doença tem baixa letalidade.

Penso agora no vídeo que circulou esses dias dos “inocentes do Leblon”.

Imagens da reabertura dos bares no Leblon, RJ.

Entre as falas captadas estavam a pouca importância com essa doença, sua disseminação e letalidade. Aparentemente, nada diferente dos outros lugares que abriram seus bares para a garotada. Mas, a diferença existe não  quanto ao comportamento e sim quanto às consequências.

Para onde vai essa garotada do Leblon caso seja infectada? E a quem contaminará? E para onde vão os jovens da Baixada, por exemplo, caso ocorra o mesmo? Que tipo de assistência terão? E ainda, quantos serão os contaminados por eles caso fiquem doentes?

Dizia o rapper Emicida em uma entrevista, o que já era percebido por nós: a grande letalidade desse vírus é a desigualdade social.

Existe um inconsciente operando e regendo a população, tornando muito difícil para todos resistir ao seu encanto. Quem tem conseguido se manter consciente tem sido como o personagem Ulisses, amarrado no mastro de seu navio, pelos seus marinheiros. Por sinal, essa analogia serve também para dizer que é a vida comunitária e fraterna, mesmo que à distância, que tem sido para nós, os marinheiros  de Ulisses, a corda que nos amarra ao mastro desse navio que navegamos.

Quando o bem cede ao mal, mesmo que um pouquinho como disse no título desse texto, esse inconsciente ganha muita força e as cordas se tornam fracas e a bola murcha.

Herbert James Draper: ‘Ulisses e as sereias’, pintura de 1909 (Reprodução)

Na dedicação de evitar qualquer tipo de julgamento, olhemos. Quando os pais cedem aos filhos suas brincadeiras na rua, quando os jovens cedem ao desejo de se encontrar, quando as famílias cedem às festividades, quando as escolas cedem às aulas presenciais,  quando os templos religiosos cedem a abertura de suas celebrações,  permitimos que os furinhos se alarguem e que a anormalidade tome lugar na realidade. E, em última instância, vamos abrindo mão do bem.

Quero me ater nesse momento à possível abertura dos templos religiosos, especificamente na igreja católica, na qual pratico a minha fé.  Em alguns lugares já reabriram, mas em outros, como em minha cidade, ainda permanecem fechadas em via de reabertura a partir de um protocolo.

As religiões, e digo especificamente da minha, são espaços de cultivo e preservação da vida, dom maior que Deus nos deu: vai e escolhe a Vida.  Somos guardiões da vida. Por ela devemos lutar e defendê-la de qualquer ameaça. Seja ela do campo objetivo e material, ou seja em sua imaterialidade e sacralidade

Nada justifica se abrir para o mal, mesmo que seja um pouquinho. Mesmo que este esteja revestido de bem. O Bem é Deus e se estamos ao seu lado é a esse Bem que devemos servir. São 67.113 pessoas, com nome e sobrenome, criaturas do Altíssimo que foram ao seu encontro precocemente.  São milhares de pessoas e famílias enlutadas, chorando seus mortos ou lutando pela vida em um hospital. É a Páscoa de Nosso Senhor vivida na nossa gente e de forma mais cruel nos pobres e pequeninos, os por Ele amados.

É a Páscoa de Nosso Senhor vivida na nossa gente e de forma mais cruel nos pobres e pequeninos, os por Ele amados.

A hora é de defender a vida, de lutar por ela, de denunciar o que vem acontecendo como nosso povo diante desses governantes. É hora de gastar toda nossa energia lutando pelo Reino e amparando os sofredores, amarrando nosso povo ao mastro para livrá-lo do canto da sereia da dita normalidade, indo contra a maré nesse mar nebuloso que envolve os fiéis em outra fidelidade apenas com a aparência de boa.

INEXISTE protocolo algum que possa proteger nosso povo indo às celebrações. Isso é uma ilusão e faz parte da sustentação da anormalidade como realidade.  É um reforço nesse inconsciente coletivo, nessas trevas que se abateram sobre nós e que agora se disfarça de luz. 

No entanto, não devemos nos deixar enganar. Precisamos ser luz de verdade.  Nos manter acordados e de olhos bem abertos diante da noite escura,  mesmos que nossos olhos pesem clamando pelo sono. Precisamos ajudar nosso povo a entender a gravidade do momento, que nada passou e que vai demorar a passar. Se flexibilizamos, a mensagem que estamos enviando, mesmo com as melhores intenções, é que o pior passou e que a gravidade arrefeceu.

Entendo as dificuldades de natureza econômica de manutenção da instituição e de todos que ganham seu pão trabalhando nas atividades da igreja. Mas assim como tem sido com o povo mais pobre, a instituição haverá de encontrar caminhos de solidariedade que possam permitir a sua subsistência.

É possível que haja também algo de natureza religiosa que nos diz respeito às outras denominações cristãs que já estão realizando seus cultos, e, algumas, diga-se de passagem, sem nenhum protocolo, e outras ainda, que sequer fecharam. Mas isso não pode nos fazer sair do caminho da verdade. Lamentamos por esses irmãos e pelo mal que possam ter realizado, mesmo querendo e pregando o bem.  E, se ao final desse tempo formos poucos, temos o consolo e a força de Nosso Senhor: não tenham medo pequeno rebanho.

O momento ainda é de manter a bola fechada, sem furos ou com estes bem pequeninos, que possam ser tamponados. Podem me dizer: tudo já está aberto. Mas nós não somos esse tudo. Nós fomos chamados a ser a voz que clama no deserto. É no deserto o nosso chamado. É na contramão que Jesus foi chamado para ser fiel à escolha pela Vida e, por isso, atravessou seu deserto com altivez. Em fidelidade àquele que seguimos mantenhamos nossos corações abertos e nossas portas fechadas até que tenhamos um pouco mais de segurança para nos encontrarmos em nossos templos, igrejas e capelas.

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