Olimpíadas Paris 2024: Polêmicas sobre religião envolvem surfista brasileiro e cerimônia de abertura

Duas situações que envolvem a religião cristã agitaram as mídias digitais nos primeiros dias das Olimpíadas de Paris 2024: a proibição da imagem do Cristo Redentor na prancha do surfista brasileiro João Chianca, conhecido como Chumbinho, e supostas referências à Última Ceia de Jesus durante a cerimônia de abertura. O Comitê Olímpico Internacional (COI) vetou o uso da imagem religiosa pelo atleta,  citou a regra de neutralidade dos Jogos.

Já a performance na abertura, descrita por várias pessoas como uma representação da Última Ceia de Cristo “com deboche”, protagonizada por artistas LGBTQIA+, foi negada pelos organizadores como inspiração religiosa. Os casos repercutiram amplamente, e receberam cobertura tanto da grande imprensa quanto de veículos alternativos políticos e religiosos, tendo provocado debates acalorados nas mídias digitais.

O caso do Cristo nas pranchas: intolerância?

O portal evangélico Pleno News publicou, em 27 de julho, matéria sobre a proibição imposta ao surfista brasileiro João Chianca de usar a imagem do Cristo Redentor em pranchas  durante os Jogos Olímpicos de Paris. Com o título “Olimpíadas: Surfista brasileiro é proibido de usar pintura do Cristo”, a publicação afirma que o Comitê Olímpico Internacional (COI) vetou o uso de imagens religiosas por atletas na competição.

A decisão de proibir a pintura da imagem do Cristo Redentor nas pranchas de João Chianca foi interpretada como uma tentativa de restringir a expressão pessoal e a identidade cultural e religiosa do atleta. 

Imagem: Reprodução Pleno News

A reportagem destaca mensagens de apoio ao surfista que denunciam que ocorreu “intolerância religiosa”. Um usuário das redes sociais afirmou: “Quanta injustiça, intolerância religiosa e hipocrisia da França e dos jogos olímpicos! Não pode prancha com Jesus, mas pode demonizar a santa ceia!” 

Ainda que o portal evangélico tenha relatado que Chianca, em página pessoal do Instagram, tenha explicado que a pintura não foi autorizada devido à natureza religiosa da imagem do Cristo, o que fere as regras estritas dos Jogos Olímpicos quanto à neutralidade, a ênfase foi outra. O Pleno News destacou no título da matéria a ideia genérica de “proibição”, que remete  a intolerância religiosa,  e colocou em evidência as reações dos apoiadores de Chianca.

Imagem: Reprodução: Instagram/Stories de João Chianca, 27 jul 2024

Bereia observou que publicações como a do Pleno News contribuíram para a disseminação de informações que levaram diversos perfis em mídias sociais a atribuírem o caso a uma suposta perseguição a cristãos. 

Imagem: Reprodução Facebook

A polêmica sobre a cerimônia de abertura das Olimpíadas 2024 

Os Jogos Olímpicos Paris 2024 também foram alvo de outra polêmica, relacionada à cerimônia de abertura da competição, em 26 de julho. Durante o segmento intitulado “Festividade”, um grupo de artistas franceses, entre eles drag queens e a DJ Barbara Butch, apareceu por trás de uma longa mesa, em uma composição que foi identificada como uma paródia da “Última Ceia de Cristo” por usuários das mídias digitais. 

Imagem: Reprodução X

Políticos brasileiros ligados à direita e à esquerda reforçaram esta abordagem em páginas pessoais no X. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) afirmou que “com Deus não se brinca”; o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) classificou a cerimônia de abertura de “zombaria demoníaca da fé cristã.”; o vereador de São Paulo Rubinho Nunes (PL-SP) como “profanação da Santa Ceia” e afirmou que é uma ação de “classe de minorias que querem pautar a sociedade”. O senador Randolfe Rodrigues (PT-AP) também comentou sobre a cerimônia e afirmou que a única “bola fora” foi a interpretação da Santa Ceia.

Imagem: Reprodução X em 27 de julho de 2024

Veículos de esquerda, como o Diário do Centro do Mundo, publicaram conteúdo crítico aos comentários de políticos da direita, e se referiram à encenação como  “representação da Santa Ceia” e como “show de diversidade”, com protagonismo de “artistas imigrantes, negros, transsexuais, homossexuais e drags”. A revista Fórum, também alinhada à esquerda, descreveu o trecho como “uma representação queer do quadro ‘A Última Ceia’ de Leonardo da Vinci”.

Imagem: Reprodução Diário do Centro do Mundo

Imagem: Reprodução Revista Fórum

Veículos alinhados à direita  também se referiram  à apresentação francesa como uma representação da pintura de Da Vinci. O Pleno News afirmou que se tratou de uma “referência da Última Ceia de Jesus sendo representada por drags queens”. Já a Revista Oeste reportou que a performance “gerou críticas de religiosos em todo o mundo”, e mencionou-a como uma “paródia da Última Ceia”.

Imagem: Reprodução Pleno News

Imagem: Reprodução Revista Oeste

O BZN Notícias relatou que os Jogos Olímpicos de 2024 serão lembrados por apresentarem a pior cerimônia de abertura da história, e a descreveu  como afronta aos cristãos, tendo relacionado ao ocorrido com o caso do surfista João Chianca. Um trecho da matéria diz:

“O mundo cristão ficou indignado com a profanação da Santa Ceia na cerimônia de abertura da Olimpíada 2024, em Paris. Tripudiou do profundo sentimento do cristianismo, que simboliza a comunhão com o corpo e o sangue de Jesus Cristo, a antecipação do seu calvário. Aí vem o Comitê Olímpico Internacional obrigar ao surfista brasileiro João Chianca – Chumbinho – a apagar a imagem do Cristo Redentor das suas pranchas (…)”. 

Imagem: Reprodução: BZN Notícias

Na França, esta parte da cerimônia de abertura das Olimpíadas gerou uma forte reação negativa entre políticos de direita. Muitos condenaram a apresentação, considerando-a desrespeitosa às tradições religiosas e aos valores cristãos. A crítica destacou a paródia como um exemplo de insensibilidade cultural e provocação desnecessária, evidenciando uma preocupação com a preservação dos símbolos e tradições religiosas no espaço público.

A política de direita Marion Maréchal, em um post no X, afirmou: “Para todos os cristãos do mundo que estão assistindo à cerimônia #Paris2024 e se sentiram insultados por esta paródia drag queen da Última Ceia, saibam que não é a França que está falando, mas uma minoria de esquerda pronta para qualquer provocação.” 

Já a Igreja Católica na França criticou a performance, por meio de declaração oficial da Conferência dos Bispos Franceses que continha a frase: “Infelizmente, esta cerimônia apresentou cenas de escárnio e zombaria do Cristianismo, que deploramos profundamente.”

Regras do Comitê Olímpico Internacional (COI) sobre manifestações religiosas 

O Comitê Olímpico Internacional (COI) é a entidade responsável pela coordenação,  supervisão e promoção dos Jogos Olímpicos. A Carta Olímpica, considerada a “Constituição” do Movimento Olímpico, estabelece os princípios fundamentais, regras e diretrizes que regem a organização e o funcionamento dos Jogos, bem como os direitos e obrigações de quem deles participa.

A Regra 50 da Carta Olímpica proíbe qualquer tipo de manifestação ou propaganda política, religiosa ou racial nas instalações olímpicas. Esta norma ganhou destaque após o gesto, feito pelos velocistas estadunidenses dos 200 ms rasos Tommie Smith e John Carlos, nas Olimpíadas do México em 1968, que remeteu ao movimento antirracista dos Panteras Negras .

Imagem: Reprodução Olimpíadas

Em Paris 2024, após a notificação do COI com base na Regra 50, o surfista João Chianca foi obrigado a trocar as pranchas de última hora, antes da estreia nos jogos . O texto da norma ainda enfatiza que qualquer desvio dessas regras pode resultar em sanções, o que inclui desclassificação. O protocolo vale para qualquer atleta e para qualquer manifestação religiosa, política ou racial, o que descarta que o veto à pintura do Cristo Redentor nas pranchas do brasileiro Chianca tenha representado uma perseguição voltada para cristãos, como o próprio surfista explica na publicação que fez no Instagram.

Cerimônia de abertura: referências religiosas?

O diretor artístico da cerimônia, Thomas Jolly, negou que o relato bíblico da Última Ceia de Cristo tenha sido sua inspiração. Ele declarou à rede de televisão BFMTV: “A ideia era fazer um grande festival pagão ligado aos deuses do Olimpo… Olimpismo”.

O Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos (COJO) também afirmou que não houve intenção de desrespeitar grupos religiosos. A diretora de comunicações do COJO Anne Descamps disse em entrevista coletiva: “Nunca houve qualquer intenção de desrespeitar qualquer grupo religioso”. Ela acrescentou que a cerimônia tinha o objetivo de celebrar a comunidade e a tolerância, e expressou arrependimento por qualquer ofensa causada.

Na polêmica sobre a suposta paródia da Santa Ceia, vários veículos da imprensa e perfis nas redes sociais argumentaram que a referência não era apenas para cristãos, mas para obras de arte que tratam de temas religiosos de forma geral. Exemplos citados incluem o quadro “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci, e a pintura de Baco, deus grego do vinho. Matérias como as do G1 e BBC News Brasil sugerem que a performance buscava interagir com o mundo da arte religiosa em vez de atacar a fé cristã diretamente.

Imagem: Pintura ‘A Festa dos Deuses’, obra concluída em 1514 pelo italiano Giovanni Bellini

Imagem: Quadro “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci

O criador da performance afirmou que não houve intenção de zombar ou difamar. Ele explicou que seu objetivo era criar uma cerimônia que promovesse a união e a reconciliação das pessoas, ao mesmo tempo que afirmasse os valores de liberdade, igualdade e fraternidade. Thomas Jolly também ressaltou que acreditava que suas intenções eram claras, ao destacar que a figura de Dionísio foi incluída na mesa como uma referência ao Deus da festa e do vinho, e pai de Sequana, deusa associada ao rio Sena. 

Imagens: frames do segmento na cerimônia de abertura das olimpíadas de Paris 2024

Bereia também ouviu, em conjunto, o mestre em Ciências da  Religião Jorge Miklos e a especialista em Psicologia Analítica Daniela Moura Barbosa, que relataram não ser a primeira vez que uma representação artística causa polêmica. Eles mencionam que, em 1989, o carnavalesco Joãosinho Trinta, da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis (RJ), gerou controvérsia ao apresentar Cristo como um mendigo no desfile do enredo intitulado “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia”. mesma forma, em 2020, a Escola de Samba Mangueira, no Rio, também provocou polêmica com o enredo “A Verdade Vos Fará Livre”, que retratou Jesus como uma figura transgênero crucificada. 

Jorge Miklos e Daniela Barbosa acrescentam que “A Última Ceia” é parte dos rituais cristãos até hoje. Eles recordam que vários artistas clássicos renomados pintaram versões do relato bíblico da Última Ceia além de Leonardo da Vinci, como Andrea del Castagno (1447), Domenico Ghirlandaio (1480), Pietro Perugino (1493-1496) e Salvador Dalí (1955), que apresentou uma versão surrealista chamada “O Sacramento da Última Ceia”.  “Os símbolos circulam no imaginário cultural, carregando significados profundos que transcendem épocas e lugares. Ao longo do tempo, esses símbolos são ressignificados, ganhando novos sentidos conforme são reinterpretados por diferentes culturas e contextos históricos”, explicaram os especialistas.

Os estudiosos observam que “a percepção de blasfêmia em relação à performance artística das Olimpíadas de 2024 pode ser vista como resultado de um fundamentalismo cultural e religioso que literaliza os símbolos e ignora sua dinâmica evolutiva. Fundamentalismos tendem a fixar os significados simbólicos de forma rígida, não reconhecendo que os símbolos culturais são fluidos e sujeitos a ressignificações”, dizem Miklos e Barbosa.

“Assim como a pintura ‘A Última Ceia’ pode ser uma ressignificação cultural, a performance olímpica ressignificou a ‘Última Ceia’, adaptando seu simbolismo a um novo contexto contemporâneo”, explicam Miklos e Barbosa. Eles também ressaltam que a falta de imaginação e de compreensão sobre o que os símbolos representam impedem a percepção. “Este comportamento é recorrente entre muitos religiosos que ainda interpretam os textos bíblicos de forma nítida, sem reconhecer seu caráter metafórico”, afirmam.

Nesse sentido, Bereia também ouviu o doutor em Ciências da Religião, biblista, professor e pesquisador da Universidade Metodista de São Paulo Marcelo Carneiro, que menciona dois aspectos que movem esta reação da parte de pessoas e grupos: “ênfase atual na pauta moral, vendo tudo que tem relação com a cultura LGBTQI+ como uma ameaça; e uma visão de mundo dualista e maniqueísta, transformando o diferente no inimigo. É o nós e os outros de Sartre [filósofo francês]”. 

Marcelo Carneiro afirma que por trás das publicações está uma evidente homofobia e transfobia. “Os grupos religiosos estão agindo de maneira violenta contra pessoas homoafetivas, alegando que são captores da sociedade, da estrutura familiar tradicional, e se apegam ao texto bíblico para condenar o comportamento delas”. 

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Bereia alerta leitores e leitoras que verifiquem o contexto antes de compartilhar notícias que tendem a ser uma exploração temática desinformativa, especialmente no que diz respeito a eventos polêmicos. Este é o caso do veto à pintura do Cristo Redentor em pranchas de surf nas Olimpíadas de 2024 (que não foi uma proibição persecutória) e o da representação de pinturas que remetem a relatos religiosos, na abertura dos jogos.

A ideia de perseguição a cristãos vem sendo explorada politicamente em ambientes digitais religiosos no Brasil, especialmente em períodos eleitorais, para disseminação de pânico social e captura de apoios. Leitores e leitoras devem estar atentos a esta prática e verificar a veracidade de publicações antes de qualquer compartilhamento. 

Referências de checagens:

Band. https://www.band.uol.com.br/noticias/protestos-e-religiao-o-que-e-proibido-nos-jogos-olimpicos-202407301340. Acesso em 30 de julho de 2024.

Brasil de Fato. https://www.brasildefatope.com.br/2017/11/30/ha-49-anos-o-podio-mais-emblematico-das-olimpiadas. Acesso em 30 de julho de 2024.

 g1. https://g1.globo.com/mundo/olimpiadas/paris-2024/noticia/2024/07/28/diretor-da-cerimonia-de-abertura-dos-jogos-de-paris-nega-ter-zombado-da-ultima-ceia.ghtml.. Acesso em 30 de julho de 2024.

Globo Esporte. https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/2024/07/11/com-maioria-feminina-delegacao-do-brasil-tera-277-atletas-nas-olimpiadas-de-paris.ghtml. Acesso em 30 de julho de 2024.

O Globo. https://oglobo.globo.com/tudo-sobre/evento-esportivo/paris-2024/. Acesso em 29 de julho de 2024.

Olympics.

https://olympics.com/ioc/olympic-charter#. Acesso em 30 de julho de 2024.

https://olympics.com/pt/noticias/brasil-dia-3-surfe-jogos-olimpicos-paris-2024. Acesso em 29 de julho de 2024.

Poder 360. https://www.poder360.com.br/olimpiadas/comite-olimpico-internacional-celebra-130-anos-em-2024/. Acesso em 30 de julho de 2024.

Mídia Ninja. https://midianinja.org/paris-2024-protestos-e-a-regra-50-da-carta-olimpica-o-que-esperar/. Acesso em 30 de julho de 2024.

Wikipédia.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Comit%C3%A9_Ol%C3%ADmpico_Internacional. Acesso em 29 de julho de 2024. 

Coletivo Bereia. https://coletivobereia.com.br/a-mentira-que-nao-quer-calar-sobre-perseguicao-a-cristaos-no-brasil/. Acesso em 1 de Agosto de 2024.

Artigo Quinto. https://www.politize.com.br/artigo-quinto/liberdade-religiosa/. Acesso em 1 de Agosto de 2024.

G1. https://g1.globo.com/mundo/olimpiadas/paris-2024/noticia/2024/07/27/olimpiadas-igreja-catolica-francesa-chama-parodia-da-ultima-ceia-de-escarnio-na-franca-as-pessoas-sao-livres-diz-diretor.ghtml. Acesso em 1 de Agosto de 2024.

BBC News Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/olimpiadas/organizacao-de-paris-2024-se-desculpam-por-suposta-parodia-de-a-ultima-ceia/.  Acesso em 1 de Agosto de 2024.

BBC News Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgervy94eq0o.   Acesso em 1 de Agosto de 2024.

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Foto de capa: print do YouTube

Governo Lula não excluiu projetos religiosos da Lei Rouanet

Políticos religiosos compartilharam em seus perfis nas mídias sociais a notícia de que o atual presidente teria excluído a categoria arte sacra de entre os grupos contemplados pela Lei Rouanet. Alguns destes perfis no Twitter publicaram a notícia acompanhada de frases que acusam o atual presidente de perseguição cristã.

As informações foram publicadas pela Revista Oeste e disseminadas por políticos como Marco Feliciano (PL-SP) e Bia Kicis (PL-DF). Sites religiosos como Gospel Mais e Pleno News repercutiram a informação. O discurso concentra-se em alterações na lei promovidas pelos governos de Jair Bolsonaro e de Lula.

Imagem: reprodução Facebook

O que é e como funciona a lei Rouanet

Conhecida popularmente como lei Rouanet, a Lei nº 8313/91 instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), com a finalidade de captar e canalizar recursos para o setor cultural, fomentando diversas iniciativas ligadas à cultura. A forma mais comum de financiar projetos via Lei Rouanet é o incentivo fiscal, prática que articula setor cultural, governo e setor privado.

Para beneficiarem-se de um incentivo fiscal, os projetos culturais devem, primeiramente, ser submetidos à avaliação de um corpo técnico, que verifica se o projeto se enquadra nos requisitos da lei.

Imagem: reprodução Twitter

Uma vez aprovados pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Cnic), órgão que analisa se os projetos que buscam incentivos fiscais estão em conformidade com a lei, os projetos são autorizados a captar recursos junto ao setor privado. As empresas que investem em projetos culturais recebem descontos em impostos devidos ao governo. Quem decide quais projetos apoiar são as próprias empresas.

Conforme relato da Época Negócios, em 2018, um estudo encomendado pelo Ministério da Educação à Fundação Getúlio Vargas revelou que, a cada R$1,00 em incentivos ligados à Lei Rouanet, gera-se um retorno financeiro de R$1,59.

Lei Rouanet durante o governo de Jair Bolsonaro

Uma vez eleito, Jair Bolsonaro promoveu diversas mudanças na legislação dedicada à cultura, a começar pela alteração do status ministerial da pasta – o antigo Ministério da Cultura passou a ser uma Secretaria Especial ligada, primeiro, ao Ministério da Cidadania (2019) e, depois, ao Ministério do Turismo (2021), conforme explica matéria do Jornal da USP.

Segundo matéria do portal G1, a alteração mais impactante aconteceu ainda em 2019, com a redução do montante máximo de captação por cada projeto, que era de R$60 milhões e passou a ser de R$1 milhão, com limite de R$10 milhões anuais por empresa do setor cultural. O setor audiovisual passou a seguir limites ainda mais rígidos, a depender da categoria contemplada.

Imagem: reprodução Pleno.news

Em outubro de 2021, o governo dispensou 174 profissionais responsáveis pelos pareceres de projetos que se submetiam aos critérios da Lei Rouanet. No ano seguinte, o governo federal promoveu novas mudanças: cortes em cachês artísticos chegaram a 93,4% e o valor máximo de captação encolheu ainda mais, passando de R$1 milhão para R$500 mil, segundo informações do Estado de Minas.

Bolsonaro alterou também a composição da Cnic. A partir de um novo decreto, os membros da comissão deveriam pertencer a cinco áreas: arte sacra, belas artes, arte contemporânea, audiovisual, patrimônio cultural e museus.

Trata-se de uma especificação para a composição do órgão, não havendo, anteriormente, impedimento de que membros dessas áreas integrassem a comissão, fato ignorado pelas recentes narrativas enganosas.

De que trata o decreto assinado por Lula

O atual presidente assinou, em 23 de março de 2023, um decreto que trata especificamente de meios de fomento do sistema de financiamento à cultura e procedimentos padronizados para prestação de contas de recursos ainda não previstos em legislação específica, o Decreto nº 11.453.

De acordo com o decreto, a utilização desses meios de fomento objetiva a implementação do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), de que trata a Lei nº 8.313, de 1991, conhecida popularmente como Lei Rouanet, e da Política Nacional de Cultura Viva, de que trata a Lei nº 13.018, de 2014.  


Imagem: reprodução Twitter

Em relação ao fomento cultural através de incentivo fiscal, o decreto trata, no artigo 49, da análise técnica a que os projetos culturais devem ser submetidos. O Ministério da Cultura verificará a adequação ao Pronac. Após o parecer técnico, os projetos serão submetidos à Cnic.

Governo Lula não retirou projetos religiosos da lei

A única citação à arte sacra que existia no Decreto (revogado) nº 10.755, de 26 de julho de 2021, assinado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, referia-se à representatividade desta arte através de membros da Cnic. Esta citação explícita não está presente no Decreto nº 11.453, de 23 de março de 2023, assinado pelo atual presidente. 

No entanto, não existe exclusão da arte sacra como uma categoria a ser contemplada pelas leis de fomento à cultura, visto que ela sempre foi considerada dentro de outras categorias artísticas. Na prática, as alterações feitas pelo atual governo na composição da Cnic foram, assim como pelo governo anterior, na forma de categorizar as artes contempladas com possíveis vagas na comissão.

Imagem: reprodução Instagram


O decreto em vigência dividiu os segmentos em artes cênicas, artes visuais, audiovisual, humanidades, música e patrimônio cultural. Outra mudança foi a exigência de, no mínimo, um representante dos povos originários e tradicionais, um da cultura popular, um de instituição que atue com acessibilidades artísticas, um de instituição cultural que atue no combate a discriminações e preconceitos e dois representantes e residentes de cada uma das cinco regiões do Brasil como membros titulares ou suplentes da Cnic.

Lei Rouanet e desinformação política

Nos últimos anos, muita desinformação circunda a Lei Rouanet e supostos artistas ou projetos contemplados pelas políticas de incentivo. Trata-se de uma estratégia política para descredibilizar tanto artistas quanto a própria política cultural brasileira.

Os ex-secretários de cultura Mário Frias e Regina Duarte, críticos da lei, já captaram recursos via Lei Rouanet. Há, ainda, artistas críticos da lei que participam de contratações de grande orçamento diretamente com prefeituras, um processo menos transparente

Em recente reportagem da Agência Lupa, a jornalista Carol Macário mostra que o tema ficou em maior evidência nas plataformas digitais justamente nos momentos de corrida eleitoral, no segundo semestre de 2018 e ao longo de 2022, evidenciando o caráter político das polêmicas fabricadas.

Imagem: reprodução Twitter

As narrativas fabricadas associam os incentivos fiscais à gastança excessiva e famosos estão sempre entre os alvos. Neste mês de março, a artista Ludmilla foi vítima de uma notícia falsa, desmentida pela Secretaria de Comunicação Social.

Conforme Bereia já publicou, a perseguição a cristãos foi um dos temas com mais desinformação nos espaços religiosos durante as eleições de 2022. Na mais recente onda de desinformação, a narrativa da perseguição religiosa funde-se ao espantalho da Lei Rouanet.

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Após realizar pesquisa em leis, documentos e notícias veiculadas em diversos veículos da imprensa nos últimos anos, Bereia apurou ser enganosa alegação de que o presidente Lula excluiu projetos religiosos da Lei Rouanet. A notícia da Revista Oeste distorce os fatos, ao que se segue uma narrativa enganosa de perseguição aos cristãos, encampada por políticos que utilizam a fé como plataforma política.

As alterações na Lei Rouanet efetivadas durante o governo Bolsonaro não inovaram ao contemplar projetos religiosos, visto que esses projetos já poderiam ser beneficiados anteriormente. Da mesma forma, as alterações promovidas pelo governo Lula não diminuem o escopo de projetos contemplados, apenas alteram as denominações de áreas artísticas. A arte sacra continua apta a submeter-se aos critérios da Lei Rouanet.

Referências

Lei 8.313/91. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8313cons.htm Acesso em: 30 mar 2023

Decreto n/] 10.755/21. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Decreto/D10755.htm Acesso em: 30 mar 2023

Decreto nº 11.453/23 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Decreto/D11453.htm#art82 Acesso em: 30 mar 2023

Gazeta do Povo. https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/lula-derruba-versao-de-bolsonaro-da-lei-rouanet-e-retira-citacao-a-arte-sacra/ Acesso em: 30 mar 2023

Revista Oeste. https://revistaoeste.com/politica/lula-exclui-projetos-religiosos-da-lei-rouanet/ Acesso em: 30 mar 2023

Folha de São Paulo.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/03/governo-diz-que-mantem-arte-sacra-na-lista-de-projetos-que-podem-usar-rouanet.shtml Acesso em: 30 mar 2023

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/07/mario-frias-captou-recursos-com-a-mesma-lei-rouanet-que-ele-criticou-no-governo.shtml Acesso em: 31 mar 2023

Secom. https://www.gov.br/secom/pt-br/fatos/brasil-contra-fake/noticias/2023/3/ludmilla-nao-captou-r-5-milhoes-via-lei-rouanet Acesso em: 30 mar 2023

G1.

https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2021/10/06/lei-rouanet-entenda-como-funciona-lei-e-o-que-mudou-nos-ultimos-meses.ghtml Acesso em: 27 mar 2023

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/eleicoes/2018/noticia/2018/09/03/bolsonaro-defende-mudancas-na-lei-rouanet-e-diz-que-se-eleito-vai-tirar-status-de-ministerio-da-cultura.ghtml Acesso em: 27 mar 2023

Diário Oficial da União. https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=05/10/2021&jornal=515&pagina=50&totalArquivos=425 Acesso em: 29 mar 2023

Estado de Minas. https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2022/02/08/interna_politica,1343394/governo-bolsonaro-altera-a-lei-rouanet-confira-o-que-mudou.shtml Acesso em: 29 mar 2023

Agência Lupa. https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2023/03/01/como-funciona-lei-rouanet Acesso em: 30 mar 2023

Estado de São Paulo. https://estadodaarte.estadao.com.br/lei-de-incentivo-a-cultura-qual-deveria-ser-a-sua-funcao-e-quais-oportunidades-ela-poderia-gerar-para-o-brasil/ Acesso em: 30 mar 2023

Bereia. https://coletivobereia.com.br/cristofobia-perseguicao-a-cristaos-e-fechamento-de-igrejas-estao-entre-os-temas-com-mais-desinformacao-em-espacos-religiosos-nestas-eleicoes/ Acesso em: 30 mar 2023

Época Negócios. https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2018/12/fgv-lei-rouanet-da-retorno-59-maior-do-que-o-valor-financiado.html Acesso em: 30 mar 2023

O Globo. https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2022/06/e-tudo-dinheiro-publico-entenda-a-diferenca-entre-os-recursos-da-lei-rouanet-e-das-prefeituras.ghtml Acesso em: 30 mar 2023

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Foto de capa: Rafael Machado / Pixabay

Igreja Luterana em Joinville é usada em mentira sobre religião na campanha eleitoral pró-Jair Bolsonaro

* Com colaboração de André Mello. Matéria atualizada às 12:43 e às 15:40 para complementação de informações.

Passou a circular com intensidade nas mídias sociais, na noite deste 18 de outubro, postagens com imagens de suposta invasão de militantes de esquerda ao templo da Paróquia da Paz da Igreja Evangélica de Confissão Luterana (IECLB), em Joinville (SC).

Imagem: reprodução do Twitter
Imagem: reprodução do Twitter

Imagem: Uma das postagens em mídias sociais e os comentários em apoio

O portal evangélico Gospelmente publicou matéria sobre a suposta invasão, com as imagens acusatórias ao Partido dos Trabalhadores (PT) e à Central Única dos Trabalhadores (CUT), com base em postagens em mídias sociais, incluindo menção ao Instagram da igreja, sem apuração.

Imagem: reprodução do site Gospelmente

O site GP1, cuja aparência é semelhante à do portal G1, da Globo, também repercutiu:

Imagem: reprodução site GP1

A notória veiculadora de desinformação, revista Oeste, também publicou matéria, sob a vinheta “Eleições 2022”, com base nas postagens em mídias sociais, incluindo menção ao Instagram da igreja, sem apuração. 

Imagem: reprodução Revista Oeste

Ambas matérias dizem que os militantes invadiram a paróquia, interromperam o culto e tocaram o sino da igreja. Estas matérias estão sendo repercutidas nas mídias sociais com discursos de campanha eleitoral antipetistas, antiesquerda e pró-candidatura do presidente Jair Bolsonaro.

Bereia checou o episódio que gerou as imagens que foram base para tais publicações e ouviu lideranças da paróquia sobre o ocorrido. O presidente (leigo conforme a organização da IECLB)  Álvaro Kleper Filho explicou que a Igreja da Paz e o Instituto Educacional Luterano de Santa Catarina (Faculdades IELUSC) dividem o mesmo espaço, um pátio. Ele conta que houve um protesto de alunos do curso de Jornalismo contra a demissão de uma professora com o apoio de outros grupos da cidade. A manifestação ocorreu no horário das aulas, mesmo momento em que acontecia um culto na igreja. Os discursos por megafone, segundo o presidente da paróquia, de fato, atrapalharam o culto que ocorria e, depois, a saída das pessoas ao término, mas diz que não houve qualquer tipo de invasão à área interna da igreja. As imagens em que aparecem pessoas dentro de um espaço, de acordo com Álvaro Kleper Filho, não são da igreja mas das faculdades, do IELUSC.

O IELUSC, instituição de ensino superior com dez cursos de graduação, mais oito de especialização e um mestrado, é parte da Associação Educacional Luterana Bom Jesus IELUSC, em Joinville, à qual está integrado o Colégio Bonja.  O culto na Igreja da Paz, ao lado da instituição, estava sendo dirigido pela pastora Camila Faber Kerber. O outro pastor da paróquia Cleo Martin declarou:
Não entraram na Igreja. Apenas ficaram do lado de fora durante o culto com megafone, apitos, algazarra. A Pastora Camila conduziu o culto até o fim, mas de fato terminou com 15 minutos, pois as pessoas ficaram apreensivas.  Entraram sim, na Deutscheschulle [termo usado na tradição alemã luterana para “escola alemã~] e obstruiram a saída das pessoas que estavam no culto no portão principal. Os integrantes do coral não puderam entrar no estacionamento. Essa situação durou uns 20 minutos, até a chegada da  Polícia Militar, esta liberou o trânsito. A manifestação foi basicamente contra a demissão de uma docente do Colégio Bom Jesus que se posicionou contra a motociata do presidente em Joinville. A manifestação foi de alunos e de agremiações políticas.

A direção da instituição divulgou esclarecimento sobre o fato para a liderança da igreja:


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Mensagem por WhatsApp enviada pela direção do IELUSC à paróquia

Imagens enviadas ao Bereia pela liderança da Paróquia que mostram o momento da manifestação. A concentração de pessoas, na foto à esquerda, está no espaço do IELUSC. A foto à direita mostra a igreja, dividindo o mesmo pátio, sem concentração de pessoas à frente.

Extrato do vídeo enviado pela liderança da paróquia ao Bereia afirmando que esta é uma parte interna do IELUSC e não da igreja

A Paróquia da Paz divulgou nota oficial sobre o assunto afirmando que não houve invasão:

Bereia também ouviu dois professores do IELUSC que não querem ser identificados, por conta da perseguição que está sendo imposta a docentes mais críticos na instituição. Eles declararam ao Bereia

“Eu estava lá ontem à noite e ninguém invadiu nada! Aqui saiu a notícia falsa de que a CUT e o PT haviam invadido a igreja e tocado o sino! Rir para não chorar, pois os sinos aqui são automáticos e tocam a cada meia hora e, também, inteira! É impressionante como mentem. Foi tudo pacífico! A manifestação foi por conta da demissão de uma colega professora que desabafou nas redes sociais contra os bolsonaristas! Foi tudo pacífico! Fizeram a manifestação e depois se aquietaram e foram para as aulas!”

“Eu estava lá… um monte de mentiras está sendo contado. Primeiro que os estudantes não invadiram nada. Eles foram fazer uma manifestação em solidariedade à professora que foi demitida por se posicionar contra o presidente Bolsonaro. Segundo, não invadiram igreja nenhuma, não pararam o culto e não tocaram o sino… o sino toca automaticamente na Paróquia da Paz. Terceiro, a CUT e o PT não ajudaram. Fizeram a manifestação depois se aquietaram e foram para as aulas. Tudo pacífico, ordeiro. Eu estava lá! É rir para não chorar”.

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Bereia classifica como FALSAS as publicações que afirmam que houve uma invasão à Igreja da Paróquia Luterana da Paz em Joinville na noite de 18 de outubro. Como apurado por nossa equipe o que ocorreu foi uma manifestação de estudantes contra a demissão de uma professora por conta de posicionamento político. 

O Estado de Santa Catarina é apontado em pesquisas eleitorais como reduto da campanha pela reeleição do presidente Jair Bolsonaro (alcança 63% de apoio do eleitorado, conforme pesquisa do IPEC divulgada neste  18 de outubro).


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Fonte: G1 https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/eleicoes/2022/noticia/2022/10/19/ipec-com-eleitores-de-sc-bolsonaro-tem-63percent-no-estado-e-lula-27percent.ghtml 

As postagens falsas foram produzidas por apoiadores de Jair Bolsonaro para acirrar os medos em torno do fechamento de igrejas, recurso de convencimento com cristãos utilizado nestas eleições, como Bereia já tratou em matéria especial. Este é o tema com mais incidência de mentiras nesta campanha eleitoral. 

Veículos como sites gospel e outros propagadores de desinformação, como o Gospelmente e a revista Oeste têm explorado a temática. Neste caso de Joinville, os dois veículos chegaram a forjar que o caso foi divulgado no Instagram da Igreja da Paz, o que é mentira. Gospelmente, na certeza de que seus leitores não checam desinformação, chegou a indicar um nome de perfil no Instagram, que, checado por Bereia, não existe: 

Imagem da menção ao Instagram da Paróquia da Paz na matéria do site Gospelmente

O site Gospelmente já se declarou apoiador da campanha de Jair Bolsonaro como registrado em matéria publicada pela revista Piauí intitulada “Louvor, fofoca, notícia e fake news”. 

Referências de checagem:

Igreja da Paz no Instagram https://www.instagram.com/paroquiadapazjoinville/ Acesso em 19 out 2022

G1, https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/eleicoes/2022/noticia/2022/10/19/ipec-com-eleitores-de-sc-bolsonaro-tem-63percent-no-estado-e-lula-27percent.ghtml Acesso em 19 out 2022.

Revista Piauí, https://piaui.folha.uol.com.br/eleicoes-2022/louvor-noticia-e-fakenews Acesso em 19 out 2022.

Instagram. https://www.instagram.com/paroquiadapazjoinville/ Acesso em 19 out 2022