Paz na Terra: a difícil, mas possível, esperança de Natal

* Publicado originalmente na Carta Capital

2023 chega ao fim com uma mescla de sentimentos que, no plano nacional, vão do alívio e do orgulho à apreensão e a incerteza. Também outros, em âmbito internacional, que estão entre a esperança, de um lado, e a comoção e revolta, de outro. É um tempo que desafia os grupos religiosos, comprometidos com a paz com justiça, diante de mais um ano que chega neste século 21.

É fato que depois de um tempo difícil em termos de governo no Brasil, este primeiro ano inspira alívio. Diante do caos instalado no período anterior, com obscurantismos, negacionismos e destruição de políticas públicas que buscavam garantir direitos, em especial na educação, no meio ambiente, na saúde, nos direitos de minorias sociais, e nas relações internacionais, as propostas de reconstrução e pacificação do atual governo começam a fazer diferença. Não é à toa que recente pesquisa indicou que a satisfação de morar no Brasil subiu de 59% para 74% em um ano, enquanto o sentimento de orgulho de ser brasileiro passou de 77% para 83%, no mesmo período.

Porém, com o perfil do Congresso Nacional, majoritariamente composto por uma direita fisiológica, ironicamente chamada de “Centrão”, e por uma extrema-direita ancorada no ódio e na desestabilização, a dificuldade de governar com justiça se impõe. Negociações necessárias para fazer valer a reconstrução, comprometida com a pauta de direitos, resultam em perdas que podem representar ameaças futuras, na forma de nomeações questionáveis e concessões que são retrocessos diante dos avanços necessários. Com isso, a apreensão ganha lugar.

O reconhecimento do Brasil e do atual governo no campo das relações internacionais tem sido retomado, o que reforça nas pessoas o orgulho de morar no Brasil e de ser brasileiro, e a esperança por tempos melhores. A diplomacia e o Ministério do Meio Ambiente têm atuado em importantes processos, como na intermediação por paz entre Rússia e Ucrânia, Israel e Palestina, Venezuela e Guiana e na defesa da Amazônia e de outras áreas de floresta. Importantes acordos de parceria têm sido firmados e o país se prepara para receber, em 2024, a reunião do grupo das 20 maiores economias do planeta, o G 20, e, em 2025, a 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-30).

Porém, o avanço dos extremismos no mundo, dos partidos e políticos de extrema-direita ocupando postos de poder, com imposição de políticas e ações desestabilizadoras, especialmente para as populações mais vulneráveis, causa muita preocupação. É o caso da vizinha Argentina, de partes da Europa e no caos instalado no Oriente Médio, com o Estado de Israel, liderado por Benjamin Netanyahu.

Chegamos ao fim de 2023, com mais de dois meses de massacre da população da Palestina, imposto na oportunidade de retaliação de Israel a um ataque do grupo político palestino Hamas, em 7 de outubro. Isto causa comoção, revolta e sentimento de impotência em muita gente sensível à causa da paz e ao direito de a Palestina existir.

No caso dos cristãos, não é possível chegar ao Natal de 2023, recitar cânticos de Natal e as palavras do anjo aos pastores, no anúncio do nascimento do Menino Jesus, “Glória a Deus nas Alturas e Paz na Terra às pessoas de boa vontade”, sem considerar que aquela terra do anúncio, Belém, é alvo de massacre e destruição por Israel.

Como as igrejas, que anunciam “Paz na Terra…”, cantam e pregam o Menino Jesus, o Emanuel (Deus Conosco), o Príncipe da Paz, poderão celebrar a data sem considerar as milhares de pessoas palestinas mortas, as centenas de famílias desfeitas, desabrigadas, feridas e humilhadas, na terra em que Ele nasceu?

Como cristãos e cristãs lembrarão, revoltados, que o Rei Herodes perseguiu Jesus e sua família, a ponto de buscar impedir que o menino sobrevivesse e mandar matar inocentes de até dois anos de idade até que ele fosse alvejado, sem pensar no “Herodes que ocupa o cargo de Primeiro-Ministro de Israel hoje”? É de Netanyahu que parte a ordem do massacre que promove a matança de crianças (dez mil, segundo o Ministério da Saúde da Palestina, em 15 de dezembro), além de tornar cerca de 25 mil órfãs (segundo o Monitor Euromediterrâneo de Direitos Humanos, de Genebra/Suíça).

O massacre da Palestina causa comoção e revolta em quem tem compromisso com a paz com justiça, além de remeter a violentas e injustas ações similares perto daqui, nas periferias e interiores do Brasil. Sim, do país onde agentes públicos praticam execuções sumárias, que matam para investigar depois; do poder paralelo das milícias, dos “comandos”, dos matadores e jagunços a serviço dos eternos coronéis.

Sim, chegou o Natal e com ele o raiar de um novo ano. É legítima e importante oportunidade de celebrar a vida, a família, a amizade, o alívio, o orgulho, a esperança que precisam confrontar a apreensão, a incerteza, a comoção e a revolta. É com as atitudes, alimentadas pelos sentimentos que embasam reconstrução e pacificação, que se concretiza a “Paz na Terra às pessoas de boa vontade”. Sigamos nesta trilha, inspirada pelo Menino de Belém!

Aviso de recesso: Eu e as companheiras de artigos Angélica Tostes e Simony dos Anjos estaremos em recesso até 31 de janeiro. Desejamos aos nossos leitores e leitoras neste espaço um Natal de muita paz e esperança por um 2024 com justiça e alegria! Retornaremos em fevereiro.

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Foto de capa: Família palestina/Al Jazeera

O Natal de Jesus e o nosso Natal sob o Covid-19

O Natal do ano 2020 seja talvez o mais próximo do verdadeiro Natal de Jesus sob o imperador romano César Augusto.

Este imperador ordenara um recenseamento de todo o império. A intenção não era apenas como entre nós, de levantar quantos habitantes havia. Era isso, mas o propósito era cobrar de cada habitante um imposto, cuja soma com aquele de todas as províncias se destinava a manter a pira de fogo permanentemente acesa e sustentar os sacrifícios de animais ao imperador que se apresentava e assim era venerado como deus. Tal imposição a todos do Império provocou revoltas entre os judeus.

Esse fato, mais tarde, foi usado pelos fariseus como uma armadilha a Jesus: devia pagar ou não o imposto a César? Não se tratava do imposto comum, mas aquele que cada pessoa do império devia pagar para alimentar os sacrifícios ao imperador-deus.

Para os judeus significava um escândalo pois adoravam um único Deus, Javé, como poderiam pagar um imposto para venerar um falso deus, o imperador de Roma? Jesus logo entendeu a cilada. Se aceitasse pagar o imposto seria cúmplice da adoração a um deus humano e falso, o imperador. Se o negasse se indisporia com as autoridades imperiais negando-se a pagar o tributo em homenagem ao imperador-deus.

Jesus deu uma resposta sábia: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. E outras palavras, dai a César, um homem mortal e falso deus o que é de César: o imposto para os sacrifícios e a Deus, o único verdadeiro, o que é de Deus: a adoração. Não se trata da separação entre a Igreja e o Estado como comumente se interpreta. A questão é outra: qual é o verdadeiro Deus, aquele falso de Roma ou aquele verdadeiro de Jerusalém? Jesus, no fundo, responde: só há um Deus verdadeiro e deem a ele o que lhe cabe, a adoração. Dai a Cesar, o falso deus, o que é de César: a moeda do imposto. Não misturem deus com Deus.

Mas votemos ao tema: o Natal de 2020, como nunca na história, se assemelha ao Natal de Jesus. A família de José e de Maria grávida são filhos da pobreza como a maioria de nosso povo. As hospedarias estavam cheias, como aqui os hospitais estão cheios de contaminados pelo vírus. Como pobres, Jesus e Maria, talvez nem pudessem pagar as despesas como, entre nós, quem não é atendido pelo SUS não tem como bancar os custos de um hospital particular. Maria estava na iminência de dar à luz. Sobrou ao casal, refugiar-se numa estrebaria de animais. Semelhantemente como fazem tantos pobres que não têm onde dormir e o fazem sob as marquises ou, num canto qualquer da cidade. Jesus nasceu fora da comunidade humana, entre animais, como tantos de nossos irmãos e irmãs menores nascem nas periferias das cidades, fora dos hospitais e em suas pobres casas.

Logo depois de seu nascimento, o Menino já foi ameaçado de morte. Um genocida, o rei Herodes, mandou matar a todos os meninos abaixo de dois anos. Quantas crianças, no nosso contexto, são mortas pelos novos Herodes vestidos de policiais que matam crianças sentadas na porta da casa? O choro das mães são eco do choro de Raquel, num dos textos mais comovedores de todas as Escrituras: “Na Baixada (em Ramá) se ouviu uma voz, muito choro e gemido: a mãe chora os filhos mortos e não quer ser consolada porque ela os perdeu para sempre” (cf.Mt 2,18).

De temor de ser descoberto e morto, José tomou Maria e o menino Jesus atravessam o deserto e se refugiram no Egito. Quantos hoje sob ameaça de morte pelas guerras e pela fome, tentam entrar na Europa e nos USA. Muitos morrem afogados, a maioria é rejeitada, como na catolicíssima Polônia e vem discriminada; até crianças são arrancadas dos pais e engaioladas como pequenos animais. Quem lhes enxugará as lágrimas? Quem lhes mata a saudade dos pais queridos? Nossa cultura se mostra cruel contra os inocente e contra os imigrantes forçados.

Depois que morreu o genocida Herodes, José tomou Maria e o Menino e foram esconder-se num lugarejo tão insignificante, Nazaré, que sequer consta na Bíblia. Lá o Menino “crescia e se fortalecia cheio de sabedoria” (Lc 2,40). Aprendeu a profissão do pai José, um fac-totum, construtor de telhados e coisas da casa, um carpinteiro. Era também um camponês que trabalhava o campo e aprendia a observar a natureza. Ficou lá escondido até completar 30 anos, foi quando sentiu o impulso de sair de casa e começar a pregação de uma revolução absoluta: “O tempo da espera expirou. A grande reviravolta está chegando (Reino). Mudem de vida e acreditem nessa boa notícia” (cf. Mc 1,14): uma transformação total de todas as relações entre os humanos e na própria natureza.

Conhecemos seu fim trágico. Passou pelo mundo fazendo o bem (Mc 7:37; Atos 10:39), curando uns, devolvendo os olhos a cegos, matando a fome de multidões e sempre se compadecendo do povo pobre e sem rumo na vida. Os religiosos articulados com os políticos o prenderam, torturaram e o assassinaram pela crucificação.

Saiamos destas “sombras densas” como diz o Papa Francisco na Fratelli tutti. Voltemos o olhar desanuviado para o Natal de Jesus. Ele nos mostra a forma como Deus quis entrar na nossa história: anônimo e escondido. A presença de Jesus não apareceu na crônica nem de Jerusalém e muito menos de Roma. Devemos aceitar esta forma escolhida por Deus.  Realizou-se a lógica inversa da nossa: “toda criança quer ser homem; todo homem quer ser grande; todo grande quer ser rei. Só Deus quis ser criança”. E assim aconteceu.

Aqui ecoam os belos versos do poeta português Fernando Pessoa:

“Ele é a Eterna Criança, o Deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
É a criança tão humana que é divina”.

Fernando Pessoa

Tais pensamentos me trazem à memória uma pessoa de excepcional qualidade espiritual. Foi ateu, marxista, da Legião Estrangeira. De repente sentiu uma comoção profunda e se converteu. Escolheu o caminho de Jesus, no meio dos pobres. Fez-se Irmãozinho de Jesus. Chegou a uma profunda intimidade com Deus, chamando-o sempre de “o Amigo”. Vivia a fé no código da encarnação e dizia: “Se Deus se fez gente em Jesus, gente como nós, então fazia xixi, choramingava pedindo o peito, fazia biquinho por causa da fralda molhada”. No começo teria gostado mais de Maria e mais grandinho mais de José, coisa que os psicólogos explicam no processo da realização humana.

Foi crescendo como nossas crianças, observava as formigas, jogava pedras nos burros e, maroto, levantava o vestidinho das meninas para vê-las furiosas, como imaginou irreverentemente Fernando Pessoa em seu belo poema sobre o Jesus menino.

Esse homem, amigo do Amigo, “imaginava Maria ninando Jesus, fazê-lo dormir porque de tanto brincar lá fora, ficava muito excitado e lhe custava fechar os olhos; lavava no tanque as fraldinhas; cozinhava o mingau para o Menino e comidas mais fortes para o trabalhador o bom José”.

Esse homem espiritual italiano que viveu, muitas vezes ameaçado de morte, em tantos países da América Latina e vários no Brasil, Arturo Paoli, se alegrava interiormente com tais matutações, porque as sentia e vivia na forma de comoção do coração, de pura espiritualidade. E chorava com frequência de alegria interior. Era amigo do Papa que o mandou buscar de carro na cidadezinha uns 70 km de Roma para passarem toda um tarde e falarem da libertação dos pobres e da misericórdia divina. Morreu com 103 anos como um sábio e santo.

Não esqueçamos a mensagem maior do Natal: Deus está entre nós, assumindo a nossa condition humaine, alegre e triste. É uma criança que nos vai julgar e não um juiz severo. E esta criança só quer brincar conosco e nunca nos rejeitar. Finalmente, o sentido mais profundo do Natal é esse: a nossa humanidade, um dia assumida pelo Verbo da vida, pertence a Deus. E Deus, por piores que sejamos, sabe que viemos do pó e nos tem uma misericórdia infinita. Ele nunca pode perder, nem deixará que um filho seu ou filha sua se perderão. Assim, apesar do Covid-19 podemos viver uma discreta alegria na celebração familiar. Que o Natal nos dê um pouco de felicidade e nos mantenha na esperança do triunfo da vida sobre o Covid-19.

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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução