Voltou a circular em grupos de WhatsApp de lideranças evangélicas uma antiga mentira sobre a suposta queima de igrejas na Índia. O monitoramento do Bereia identificou a circulação neste início de abril e analisou a mensagem, que já havia sido desmentida anteriormente, em 2020 e 2023. A origem desta desinformação remonta a, pelo menos, 2010, tendo sido desmentida ao longo dos anos por diversos veículos.
Em outras versões, o texto é acompanhado de vídeos falsos, gravados na Síria, em 2013. Segundo o UOL Confere, nesta versão as imagens mostram integrantes da inteligência militar do regime de Bashar al-Assad, e os corpos exibidos não pertencem a missionários indianos ou cristãos no Iraque, mas a vítimas do regime sírio.
Bereiaalerta: diante da recorrente disseminação de mentiras que têm cristãos como alvo, é fundamental adotar uma postura crítica ao receber mensagens alarmantes. É recomendável verificar a procedência das informações antes de compartilhá-las. Algumas dicas essenciais:
Não acredite automaticamente em mensagens sem autoria: Informações sem indicação de fonte ou baseadas apenas em testemunhos anônimos têm maior chance de serem falsas.
Verifique se a origem da notícia, as fontes, são confiáveis: Notícias verídicas costumam ser divulgadas por veículos de comunicação credenciados e por órgãos oficiais. Muitas publicações falsas nem indicam a fonte.
Desconfie de tom sensacionalista: Textos que apelam para o medo e a urgência sem apresentar provas concretas devem ser analisados com cautela.
Não atenda pedidos de compartilhamento antes de checar a veracidade do conteúdo: uma das estratégias de propagadores de falsidades para alcançar muitas pessoas é pedir que quem recebe compartilhe a publicação.
Pesquise antes de compartilhar: Uma busca rápida em portais de notícias e plataformas de checagem pode evitar a propagação de desinformação.
O site evangélico Gospel Mais publicou no dia 22 de setembro matéria sobre a decisão do ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal que, em razão da pandemia de Covid-19, determinou que missões religiosas não podem entrar em terras onde estão povos indígenas isolados. Reafirmando os termos de uma decisão já tomada por ele mesmo no ano passado e ratificada pelo plenário da Corte, que impedia a entrada de terceiros em áreas com indígenas isolados e ainda determinava a instalação de barreiras sanitárias para evitar o ingresso de pessoas estranhas nestes locais. A publicação, no entanto, distorceu a informação, fazendo o leitor acreditar que a decisão foi motivada por perseguição religiosa às missões evangélicas.
Imagem: reprodução do site Gospel Mais
Além do Gospel Mais, o Pleno News também repercutiu a decisão de Barroso, com a mesma abordagem, acrescentando o fato de que foi o Partido dos Trabalhadores (PT) quem entrou com a ação no tribunal.
Imagem: reprodução do site Pleno News
O conteúdo foi, ainda, amplamente compartilhado em mídias sociais de lideranças e fiéis de igrejas, contribuindo com a propagação da desinformação.
De acordo com o site Conjur, a decisão de Barroso foi definida com base no direito dos indígenas à vida e à saúde. Em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Partido dos Trabalhadores (PT) pediram que o STF declarasse inconstitucional o parágrafo 1º do artigo 13 da Lei 14.021/2020, que dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da covid-19 nos territórios indígenas.
O artigo 13 da lei veda o ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados, salvo pessoas autorizadas pelo órgão indigenista federal, na hipótese de epidemia ou de calamidade que coloque em risco a integridade física dos indígenas isolados.Porém, seu parágrafo 1º autoriza a permanência de missões de cunho religioso que já estejam nas comunidades indígenas, após avaliação da equipe de saúde e aval do médico responsável.
Ao decidir, o ministro avaliou que a cautelar tem “estrita relação com o risco de contágio e, nesse sentido, parece se relacionar mais imediatamente com o ingresso de novas missões religiosas”, e não com aquelas que já estão nos locais.
Imagem: reprodução do parágrafo 1º do artigo 13 da Lei 14.021/2020
Barroso reafirmou a decisão de 2020 e não acatou o pedido do PT de proibir totalmente o ingresso de missões, apenas de novos religiosos, o que contraria o título da matéria do site Pleno News.
Uma questão de saúde
Para a pastora Jandira Keppi, que atua pelo Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN) da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no estado de Roraima, essa decisão liminar vai ao encontro da decisão do plenário do STF tomada há mais de um ano no âmbito da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) N. 709, que proíbe, nesse tempo de pandemia, a entrada de missões religiosas ou outras instituições nas áreas dos povos indígenas em situação de isolamento voluntário conhecidos como povos isolados ou de contato recente. São mais de 115 povos que têm essa opção pelo isolamento.
“Sabemos que desde a Constituição Federal de 1988 a política da FUNAI é acertadamente de não contato com esses povos. Muitas Frentes de Proteção Etnoambiental foram criadas pela FUNAI para exercerem essa política do não contato, cuja função é também proibir a entrada de pessoas estranhas nesses territórios. Antes de 1988 a política oficial era de Frentes de Atração, para atrair e forçar esses povos ao contato. Para a grande maioria desses povos isso significou o contato com doenças como gripe, sarampo, varíola com as quais eles não tinham anticorpos, resultando em inúmeras mortes”, ressalta a missionária que, além de pastora, é assessora de projetos da Fundação Luterana de Diaconia/FLD/COMIN.
Para Jandira Keppi, a decisão do ministro Barroso é acertada e impede o ingresso de quaisquer instituições, religiosas ou não, nesses territórios de povos tão vulneráveis do ponto de vista epidemiológico. “Trata-se de uma decisão visando proteger a vida e a saúde desses povos nessa pandemia. Aliás, essa proteção judicial deveria ocorrer também fora dos tempos dessa pandemia provocada pelo COVID 19”, corrobora.
A pastora luterana atua na região central de Rondônia, com vários povos indígenas, especialmente com o povo Karo Arara, da Terra Indígena Igarapé Lourdes, município de Ji-Paraná em Rondônia. Para ela, não é possível compreender uma decisão judicial que visa proteger povos indígenas em situação de isolamento ou de pouco contato de uma pandemia tão avassaladora como perseguição religiosa. “Cada vez mais os territórios desses povos estão sendo invadidos o que pode resultar na extinção de muitos deles. Aqui, em Rondônia, por exemplo, existem povos com um único sobrevivente, outro com dois. Muitos territórios estão invadidos, outros alagados por construção de hidrelétricas. Se não houver proteção às suas vidas e aos seus territórios, fatalmente serão extintos. Os povos indígenas necessitam de apoios para defesa de seus direitos que a cada dia estão sendo mais violados. Diariamente escutamos suas vozes, inclusive pelos meios de comunicação, denunciando essas violações e conclamando a sociedade não indígena a apoiá-los. Esse deve ser o papel das instituições, religiosas ou não, que atuam com povos indígenas”.
A questão religiosa
A pastora não está sozinha nessa colocação. A integrante da coordenação executiva da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) Angela Kaxuyana com mais de 33 anos de história, também defende a decisão de Barroso. Ela apresenta um olhar de quem está do outro lado desse debate, um olhar de quem é indígena e que já passou pelo processo de aculturação.
“Eu, particularmente, já passei por esse processo de presença de missionários, tanto evangélicos quanto católicos, e de várias outras vertentes dentro do território indígena. Eu não penso que é uma ação, uma atividade essencial prioritária que os povos indígenas necessitam de fato. Até porque, os indígenas já tem suas próprias crenças, suas próprias religiões. Então parte de um princípio de que as missões, as religiões, continuam sendo impostas e colocadas como única verdade diante de várias culturas e religiões que os povos indígenas sempre mantiveram”, relata Angela Kaxuyana que pertence ao povo Kahyana, da terra indígena Katxuyana Tunayana, no estado do Pará, na fronteira do Brasil com o Suriname.
Para a líder indígena, perseguição é o que acontece de fato com o seu povo. “É de bom senso que um ministro de fato enxergue tanta violência, tanta perseguição. Na verdade, ao contrário do que se fala (pela bancada evangélica), a perseguição é feita para com os povos indígenas, por parte dessas missões, principalmente aquelas que sempre impuseram as suas religiões como únicas, que se sobrepõem às outras, como a religião dos próprios indígenas”, ressalta.
Perguntada pelo Bereia se a liberdade religiosa dos povos indígenas não inclui tomar conhecimento das opções religiosas que existem, Angela Kaxuyana foi taxativa. “O fato de levar as religiões externas e impor (sua verdade) não configura liberdade, de forma alguma. Ninguém fica livre de escolher se quer essa religião ou não, porque as missões chegam impondo, chegam colocando medo, porque é isso, imposição do medo. É fazer com que os povos indígenas se sintam diminuídos diante de uma imposição religiosa posta como verdade. A liberdade religiosa dos povos indígenas é mantê-los livres praticando o que eles sempre praticaram dentro dos territórios da forma que sempre viveram, praticando diversas culturas, diversas religiões, e não, necessariamente, essa que está sendo defendida como única verdade, como única salvação da vida deles”, rebate.
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Bereia classifica como enganosa a afirmação que a decisão do ministro Luís Roberto Barroso é uma proibição do exercício da fé evangélica ou de missões religiosas evangélicas em terras indígenas. Na realidade, trata-se de uma medida que visa à segurança sanitária dos povos indígenas isolados, que deve ser cumprida por qualquer pessoa, inclusive, o próprio Estado. Como Bereia tem alertado, a insinuação de uma suposta perseguição religiosa representa uma estratégia em torno da ideologia em defesa da liberdade de religião, propagada por grupos fundamentalistas religiosos-políticos e adotada pela base de apoio religiosa do presidente. Além disso reforça a oposição às ações da Corte, outra postura destes mesmos grupos.
Circulam pelas mídias sociais inúmeras postagens sobre a situação dos cristãos no Afeganistão, com a chegada ao poder do grupo extremista Talibã. Muitas delas com conteúdo falso ou enganoso, por isso, Bereia reuniu algumas dessas mensagens, com a devida checagem. Bereia ouviu também especialistas no tema para esclarecer a real situação dos cristãos no país asiático e os reflexos das ações do Talibã no Brasil e no mundo.
Desde maio deste ano, quando o governo dos Estados Unidos anunciou a retirada das últimas tropas que estavam no Afeganistão, o Talibã iniciou uma série de ataques a diversas cidades do país, culminando com a conquista da capital, Cabul, tomada pelo grupo no dia 15 de agosto.
O que é o Talibã?
Talibã significa “estudantes” em pashto, uma das línguas faladas no Afeganistão e surgiu com um grupo de estudantes fundamentalistas islâmicos formado no fim da invasão soviética do Afeganistão, entre 1979 e 1989. São considerados fundamentalistas por que defendem uma rígida interpretação do livro sagrado do Islã, o Alcorão, para governar o país. O grupo governou o Afeganistão de 1996 até a invasão dos Estados Unidos, em 2001. “O grupo interpreta a religião de um jeito peculiar. Vê os outros ramos do Islã como deturpados e abertos ao ocidente, então, acreditam ser os portadores do ‘verdadeiro Islamismo’”, explica o professor de Geografia Daniel Simões.
A secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) Pastora Romi Bencke, falou com o Bereia sobre o tema. Segundo ela, o Afeganistão joga luz na relação entre religião, poder e economia. “Assim como o cristianismo, o Islã não é uma religião violenta. Ao contrário, é uma religião que pode contribuir muito para o fortalecimento de valores emancipatórios. Há países de maioria muçulmana que não são teocráticos. O que está colocado ali e que deve acender uma luz também para nós, é que os valores e princípios fundamentalistas, presentes em todas as religiões, foram acionados em função de interesses de grandes potências. No caso do Afeganistão, foi no contexto da Guerra Fria em que duas potências disputaram aquele território. De um lado a União Soviético e do outro os EUA”, ressalta Bencke.
A pastora faz um paralelo do interesse americano no Brasil e como foi no Afeganistão. “Precisamos acompanhar com muita atenção os interesses norte-americanos na região, suas inúmeras tentativas de ampliar suas bases militares em nosso país, que faz fronteira com dez países, sendo que a maioria destes países é muito rico em recursos naturais. A base militar de Alcântara é um exemplo bem concreto do que significam as bases militares americanas em um país. Três empresas que operam lá são americanas e uma é canadense. Isso significa para nós, brasileiros e brasileiras, perda de soberania. O Afeganistão, embora distante geográfica e culturalmente, nos alerta para isso: as potências estrangeiras exploram países periféricos e, quando não há mais interesse, saem e fazem o falso discurso que temos que decidir sobre nós mesmos”, alerta.
Banho de sangue cristão?
Reprodução do vídeo que circula nas mídias sociais
Um vídeo com uma mulher sendo executada na rua, diante de um grupo de homens armados, com a legenda “Eles já iniciaram os julgamentos públicos” está circulando nas mídias sociais, associando a execução à ação do Talibã na retomada ao poder no Afeganistão e ao fato de ser a mulher supostamente uma cristã com o aplicativo da Bíblia instalado em seu celular. No entanto, o vídeo é de 2015 e foi gravado na Siria. De acordo com o site da ONG Instituto de Pesquisa de Mídia do Oriente Médio (Middle East Media Research Institutea), as imagens registram o assassinato de uma mulher que teria sido acusada, pela organização islâmica radical Al-Qaeda, de prostituição .
Reprodução do site da ONG Instituto de Pesquisa de Mídia do Oriente Médio
Além deste vídeo, uma mensagem afirmando que 229 missionários cristãos seriam assassinados também circula nas mídias sociais. De acordo com o texto, uma missionária de nome Judith Carmona foi quem enviou a mensagem. No entanto, de acordo com o site de checagem “Aos Fatos”, não há registros de que, após retomar ao poder no Afeganistão, o Talibã tenha sentenciado à morte 229 missionários cristãos que atuavam no país. “Este texto, na realidade, surgiu na internet em 2009 a partir da distorção de fatos sobre um sequestro de 23 sul-coreanos pelo grupo extremista em 2007. Cerca de uma década depois, em 2017, a peça de desinformação voltou a circular com menção a 229 capturados. É esta a versão que voltou à tona nas redes sociais como se fosse recente”. O site ressalta também que este boato circula em outros países e, inclusive, já foi objeto de checagem de inúmeras agências de fact-checking internacionais.
De fato, a postagem traz todas as características de uma notícia falsa: não tem fonte (quem produziu a informação?), não tem data (hoje, amanhã – quando?), não identifica as pessoas envolvidas (quem é Judith Carmona? missionária? ligada a qual instituição?), e tem vários erros de português.
Reprodução da mensagem falsa em um perfil no Facebook
Reprodução do site de checagem “Aos Fatos”.
Há também uma variação deste post com um vídeo que mostra, supostamente, os 229 missionários sendo executados. O vídeo, na verdade, é antigo e foi gravado na Síria em 2014, na ocasião em que grupos rebeldes extremistas islâmicos tomaram o hospital Al-Kindi, em Aleppo. As imagens mostram a execução de soldados sírios que defendiam o local. De acordo com a agência de checagem Lupa, a página da Organização para a Democracia e Liberdade na Síria também cita a gravação, em post de 28 de março de 2014.
Reprodução de mensagem do WhatsApp com conteúdo falso
Reprodução da página da Agência Lupa com o conteúdo verificado
De acordo com outra mensagem compartilhada, inúmeras vezes desde o dia 15 de agosto, um casal de missionários dentistas que atua na Albânia e na Bósnia e recebeu uma outra missionária enfermeira que acabara de chegar do Afeganistão, pede oração pelos cristãos que lá continuaram. Bereia fragmentou a mensagem com o intuito de checar cada informação contida no texto reproduzido na imagem abaixo.
Reprodução de imagem de mensagem de WhatsApp com conteúdo falso
De acordo com o site O Fuxico Gospel, esse casal faz parte do quadro missionário da Igreja Cristã da Aliança, liderada pelo Pr. Renato Vargens. Bereia entrou em contato com a igreja que, em nota assinada pelo pastor Renato, esclarece que essa informação é falsa. “Está rolando um boato em que a Igreja Cristã da Aliança de Niterói, igreja que sou pastor, possui dois missionários em Cabul, e que eu estou solicitando ajuda e oração para essas pessoas. Isso não procede. Nossa igreja não possui missionários no Afeganistão, e nem estamos pedindo ajuda para pessoas que vivem lá”, diz a nota.
Reprodução do site Fuxico Gospel
Reprodução do site Fuxico Gospel
Reprodução da mensagem enviada pela Igreja Cristã da Aliança para o Bereia no WhatsApp
Reprodução da suposta carta exigindo lista de mulheres solteiras e viúvas
China apoia novo governo Talibã?
A última frase do post verificado pelo Bereia diz que “O governo da China está apoiando abertamente o Talibã”. A afirmativa é enganosa. O governo chinês, de fato, tem se aproximado do grupo extremista que agora lidera o país, mas ainda não o reconhece como governo constituído do Afeganistão. De acordo com o El País, o ministro das Relações Exteriores chinês, Wang Yi, recebeu um grupo de representantes do Talibã de forma oficial, mesmo antes da ascensão ao poder do grupo extremista, com a tomada de Cabul, em 15 de agosto. O G1 também relata o apelo do ministro chinês para que o mundo pare de pressionar o Afeganistão, no entanto, até o fechamento da matéria, o governo chinês ainda não havia reconhecido o Talibã oficialmente como novo governo.
Com o intuito de rotular o grupo extremista islâmico aos movimentos de esquerda, muitas dessas mensagens que circulam em grupos evangélicos usam o apoio da China ao Talibã , que é governada pelo Partido Comunista, para justificar esse rótulo.
Segundo a Dra. Francirosy Campos Barbosa Ferreira, antropóloga, professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo, em entrevista ao Bereia, o Talibã não tem esse tipo de ideologia, esquerda ou direita. “O Talibã faz parte de um grupo étnico chamado pashtun, não tem nada a ver com esquerda ou direita, influência dos EUA, da Rússia, da China, é uma análise que eu levo mais como brincadeira do que como uma análise séria”, afirma a pesquisadora que tem tentado desmistificar a relação do Islã com o terrorismo. “Esse é o exercício que tenho feito há mais de uma semana, tentando separar o que é terrorismo do que é Islã. A religião não pode ser refém daqueles que se dizem praticantes da religião”, ressalta.
Esse é o exercício que o Sheikh Jihad Hammadeh também tem feito. Para o presidente do Conselho de Ética da União Nacional das Entidades Islâmicas do Brasil (UNI), também ouvido pelo Bereia, as atitudes erradas do talibã não se encaixam nem na direita, nem na esquerda, mas no extremismo. Hammadeh acredita que o preconceito contra os povos muçulmanos tende a aumentar com a ascensão do Talibã. “O que pode afetar o Brasil é a questão social, aumentar o preconceito contra os muçulmanos, contra os estrangeiros, a xenofobia, isso pode acontecer porque as informações que vêm através de uma parte da mídia são todas negativas e associa a religião a atos extremistas, de um grupo que já esteve no poder no Afeganistão e agora retornou, porém ninguém sabe como vai proceder”, pondera o Sheikh que nasceu na Síria e é naturalizado brasileiro. Há 35 anos, ele dá palestras e cursos para difundir a cultura islâmica no Brasil. “Devemos mostrar a realidade da religião islâmica e o que ela realmente prega, principalmente quanto a questão dos direitos humanos, dos direitos da mulher, os direitos que a religião já garante há 14 séculos. Não há nada melhor do que o conhecimento para dissipar a ignorância, as fake news, o preconceito a discriminação”, ressalta.
Brasil extremista?
O Afeganistão e outras nações teocráticas cujo regime político é baseado na religião, de certo modo, servem de alerta para o Brasil que, nos últimos anos, tem um cenário político que mistura políticas de Estado com princípios cristãos. É o que acredita a Dra. Andréa Silveira de Souza, doutora em Ciência da Religião e professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, em entrevista ao Bereia. “Quando emergem fatos lamentáveis, porém não impensáveis, como o ocorrido com o Afeganistão nos últimos dias, é importante refletirmos sobre os processos, sobre tudo o que atravessa a conjuntura, de modo a compreendermos assim, a complexidade das relações entre Estado e Igrejas, entre religião e política. Salvaguardadas as devidas proporções e todas as diferenças culturais, históricas e políticas, a atual conjuntura afegã pode ser sim um instrumento de alerta para o que tem se desenrolado no Brasil nas últimas décadas”, alerta a professora que é pesquisadora na área de religião e política, fundamentalismo religioso, religião e educação e ensino religioso. “Os fundamentalismos no Brasil têm avançado a olhos vistos, com o apoio de uma parcela da sociedade e ao total desconhecimento de outra parcela que despreza as consequências que essa ação ostensiva pode ter para a democracia brasileira. A imposição de uma única perspectiva religiosa no poder, como tem se desenvolvida atualmente no Brasil, além de ferir os próprios princípios da laicidade, ainda que flexível, que marca o nosso país, representa a perda progressiva de direitos fundamentais, a garantia de um regime democrático e uma sociedade que preza pela justiça social”, conclui.
No dia 7 de junho foi divulgado pela imprensa que um ofício da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas foi encaminhado à Procuradoria-Geral da República. O ofício retrata que missionários da igreja Assembleia de Deus estariam propagando desinformação junto aos povos indígenas a respeito da vacinação contra a Covid-19. Segundo a reportagem da Folha de S. Paulo,
Outra questão levantada é a dificuldade de vacinar a população indígena. Um ofício encaminhado à PGR (Procuradoria-Geral da República) revelou a influência negativa que missionários estavam exercendo sobre comunidades indígenas, infundindo temor por meio da propagação de fake news sobre a vacinação contra a Covid 19. A campanha de desinformação seria difundida via áudios e vídeos pelo celular, pelo sistema de radiofonia entre as aldeias e por cultos presenciais. No estado do Maranhão a maior influência seria da igreja Assembleia de Deus.
Trecho da reportagem da Folha de S. Paulo
O Jornal do Almoço, da rede RBS, emitiu no dia 9 de fevereiro uma reportagem sobre a baixa movimentação dos indígenas em busca por vacinação, evidenciando a dificuldade com os povos da Reserva do Guarita, em Tenente Portela, e também na cidade de Redentora. Segundo o jornal, cerca de 1000 indígenas deveriam ser vacinados, mas nem metade compareceu. De acordo com a Secretária de Saúde, essa ausência ocorreu devido a influências religiosas e líderes das próprias comunidades indígenas, que fez com que muitos optassem por não tomarem a vacina.
Print da página da Globoplay
Bereia entrou em contato com Sandro Luckmann, coordenador da COMIN (Conselho de Missão entre Povos Indígenas, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana) que denota como verdadeira a interferência e a propagação de fake news sobre a eficácia e importância da vacina entre os povos indígenas, causada por missionários fundamentalistas. Segundo Luckmann, foi necessário intensificar as campanhas de vacinação para combater a desinformação. A Amazônia é um exemplo onde há a forte presença dessa desinformação disseminada por missionários. É explícita a rejeição de algumas lideranças religiosas em relação à vacina. “Referente ao estado de Rondônia foram diversos relatos em que presente esse tipo de situação, e também no sul do Amazonas onde foi necessário intensificar campanhas de informação, intensificar relatos em que a vacina é eficaz e ela ajuda no enfrentamento da covid”, disse Luckmann.
Em fevereiro o The Intercept Brasil apontou que uma universidade privada do Paraná, que passou a receber verba do ProUni após ser credenciada pelo Ministério da Educação na gestão Abraham Weintraub, formava missionários para atuar junto aos povos indígenas.
A carta de repúdio foi distribuída às instituições, lideranças políticas e organizações que trabalham com povos indígenas. Nela o Coordenador Kaingang do Estado do Rio Grande do Sul reivindica medidas cabíveis às autoridades responsáveis, para que essa população não vire cobaia do governo brasileiro.
Print da carta
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Bereia classifica as notícias como verdadeiras. De fato, ocorreram interferências na vacinação de povos indígenas da região do Amazonas e Rondônia, causadas por influências religiosas, principalmente líderes negacionistas evangélicos, que por meio de vídeos no Whatsapp com disseminação de desinformação, intervinham de maneira incorreta nas campanhas sanitárias. O conteúdo que circula nas aldeias apresenta ideias fraudulentas, enganosas e equivocadas diante das orientações oficiais de enfrentamento da pandemia.