Brasil Paralelo usa falácia de censura para reagir à suspensão vídeo negacionista sobre caso Maria da Penha

Passou a circular nas redes neste agosto de 2025, notícia de que o Ministério Público do Estado do Ceará (MP-CE)  anunciou, em 15 de julho, a determinação da suspensão de todos os episódios da produtora Brasil Paralelo (BP) que tratam do caso Maria da Penha. O parecer é que são “uma campanha de ódio promovida nas redes sociais contra a farmacêutica!”.

A decisão da Justiça diz respeito à terceira temporada do projeto “Investigação Paralela”, publicado pela BP em 10 de julho de 2023,  com o episódio nomeado “O Caso Maria da Penha”; A sinopse afirma:”o documentário vai te surpreender com uma das possíveis maiores reviravoltas do país”´. 

“Investigação Paralela” é uma série do BP que tem como objetivo produzir documentários sobre casos populares e expor, o que a produtora anuncia ser, a veracidade dos fatos. No entanto, no episódio lançado em 10 de julho há uma série de inconsistências. Bereia checou o caso, uma vez que as produções da BP circulam amplamente em ambientes digitais religiosos.

O caso Maria da Penha

Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima, em 1983, de dupla tentativa de feminicídio por parte do então marido Marco Antonio Heredia Viveiros. Primeiro, ele deu um tiro nas costas da mulher enquanto ela dormia. Como resultado dessa agressão, Maria da Penha, hoje com 80 anos, farmacêutica bioquímica de Fortaleza (CE)  ficou paraplégica, além de outras complicações físicas e traumas psicológicos.

Após meses de tratamento e diversas cirurgias, Maria da Penha voltou para casa, onde foi posta em cativeiro pelo marido. Viveiros declarou à polícia que tudo não havia passado de uma tentativa de assalto, versão que foi posteriormente desmentida pela perícia. Passados 15 dias, o homem fez nova tentativa de assassinato ao tentar eletrocutá-la durante o banho. Receosa de sair de casa e perder a guarda das filhas pela possível alegação de abandono de lar, Maria da Penha ingressou na Justiça para se afastar legalmente de casa e garantir seus direitos, sendo amparada pela família e por amigos.

Concluídas as investigações, constatou-se que os atentados à vida de Maria da Penha haviam sido planejados e executados por Marco Antônio Viveiros. No entanto, o primeiro julgamento só aconteceu em 1991, oito anos depois dos crimes. Ele foi condenado a 15 anos de prisão, mas pôde recorrer em liberdade. Após muitos recursos, somente em 1996 aconteceu um novo julgamento, que resultou na redução da pena do ex-marido de Maria da Penha, a dez anos e seis meses de reclusão. Porém, por meio de alegações de irregularidades, a defesa conseguiu a anulação do julgamento.

Na busca incessante por reparação, o Centro para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) denunciaram, em 1998, o caso de Maria da Penha para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA).

Mesmo diante de um litígio internacional, o qual trazia uma questão grave de violação de direitos humanos e deveres protegidos por documentos que o próprio Estado assinou, as instituições brasileiras permaneciam omissas e não se pronunciaram em nenhum momento durante o processo. Em 2001, após receber quatro ofícios da CIDH/OEA (1998 a 2001) − silenciado diante das denúncias −, o Estado foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras. 

A Lei Maria da Penha foi resultado da ação de um Consórcio de ONGs Feministas, em 2002, motivado pelo que Maria da Penha passou, diante da falta de medidas legais e ações efetivas, como acesso à justiça, proteção e garantia de direitos humanos a mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. em 2002. O consórcio atuou pela elaboração de uma lei, o que, após muitos debates com o Legislativo, o Executivo e a sociedade, resultou em Projetos de Lei na Câmara e no Senado Federal e foi aprovado por unanimidade em ambas as Casas.

Uma das recomendações da CIDH foi reparar Maria da Penha tanto material quanto simbolicamente. O Estado do Ceará pagou a ela uma indenização e o governo federal, por meio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, nomeou Lei 11.340/2006 com o nome Lei Maria da Penha, como reconhecimento da luta contra as violações dos direitos humanos das mulheres. 

Maria da Penha no episódio da Brasil Paralelo

O episódio da Brasil Paralelo, publicado em 2023, oferece roteiro de desqualificação da memória de Maria da Penha e da relevância dela nas políticas de enfrentamento da violência contra mulheres. O conteúdo é baseado na tese de defesa do ex-marido e agressor condenado Marco Antonio Heredias Viveiros e dá voz a ele. 

O documentário de 84 minutos recupera um documento que foi usado pela defesa de Viveiros no processo de 25 anos atrás. Foi alegado, à época,  que houve uma troca de laudos periciais durante o processo para que o agressor fosse condenado. Na produção em vídeo é apresentado um suposto laudo de   posse do ex-marido de Maria da Penha, que, sem motivo determinado, não  foi anexado ao processo judicial. 

Na investigação decorrente de denúncia contra a veiculação do documentário, o MP-CE afirma que o referido laudo é resultante de um crime de falsificação de documento público, com irregularidades claras, como baixa qualidade na imagem, diferenças nas assinaturas e até mesmo erros de datilografia. 

Comparação do laudo verdadeiro com o laudo apresentado por Marco Antonio.

Na operação do último 15 de agosto, o MP-CE cumpriu um mandado de busca e apreensão na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, contra um dos suspeitos do envolvimento nas campanhas de ódio promovida nas redes sociais contra a farmacêutica Maria da Penha. Além disso, a 9ª Vara Criminal de Fortaleza determinou a suspensão de todos os episódios do documentário por 90 dias.

Na ação foram apreendidos aparelhos eletrônicos e documentos que seguirão para análise no MP do Ceará. Segundo o órgão, a medida visa aprofundar a investigação de crimes cibernéticos e perseguição virtual praticados nas redes sociais contra Maria da Penha desde o início da investigação, no primeiro semestre de 2024.

Reação da produtora

Em nota à imprensa, a liderança da  Brasil Paralelo alega ser alvo de censura pelo MP-CE, “Trata-se de um ato grave, que fere frontalmente a liberdade de imprensa e o direito constitucional à livre expressão do pensamento. Estamos diante da censura prévia de um conteúdo jornalístico, algo inaceitável em qualquer democracia séria”. 

Como veículo é vinculado e serve a pautas da direita extremista, a reação da Brasil Paralelo tem ampla repercussão nas redes deste grupo político e de apoiadores.

Captura feita do X do perfil “Chequei Ancap”, projeto autodeclarado como contra a censura.

O episódio não foi a última vez que a BP direcionou ataques à integridade de Maria da Penha. Em agosto de 2023, a produtora publicou um artigo com a divulgação de conteúdo que contesta a memória do caso e dá crédito à versão oposta do ex-marido agressor. 

Título do artigo  produzido pela redação da Brasil Paralelo em 2023

É importante mencionar a participação do diretor-presidente do Instituto de Defesa do Direito do Homem (IDDH) Alexandre Paiva no documentário suspenso pelo MP-CE. Paiva cumpre uma medida protetiva, requerida há quase seis anos, por meio da Lei Maria da Penha, pela ex-esposa, que inclui as duas filhas do ex-casal. Desde então, o diretor do IDDH faz uso de seus perfis em redes sociais para propagar discursos contra a principal lei antifeminicídio do país.

Em sua biografia em perfil de mídia social, Paiva afirma estar “alertando sobre o mal uso da Lei Maria da Penha”.

Reprodução do perfil de Alexandre Paiva no Instagram

Alexandre Paiva é um dos principais personagens do documentário produzido pelo Brasil Paralelo, tendo a primeira aparição nos primeiros minutos, com fala em defesa de Viveiros.  

Sobre a Brasil Paralelo

A Brasil Paralelo é uma empresa brasileira, fundada em 2016, que produz conteúdo audiovisual sobre política, história, filosofia e outras áreas do conhecimento afins, sob um viés conservador e alinhado às pautas da extrema direita politica que se intensificou no período.

Na pesquisa de Mestrado em História, pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná,  Mayara Aparecida Machado expõe o objetivo do conteúdo publicado pela Brasil Paralelo. o estudo mostra que a produtora busca apresentar versões paralelas e negacionistas de questões sociais importantes historicamente desenvolvidas entre pesquisadores e jornalistas brasileiros, os quais a organização acusa de serem “esquerdistas”. Além disso, a BP defende explicitamente valores políticos da direita, do ultraconservadorismo moral e do Cristianismo fundamentalista. 

Mayara Machado mostra que o escritor e ativista da direita Olavo de Carvalho é a principal referência da BP, que é 8articulada por pessoas e entidades representativas desse grupo político, como o Instituto Millenium, o Instituto de Estudos Empresariais, o Fórum da Liberdade, o Instituto Liberal, o Instituto Borborema e o Instituto Von Mises Brasil. Os materiais da BP, de acordo com a pesquisa de Machado, são voltados à produção e à disseminação de conteúdos sobre o que seus articuladores consideram ser a “verdadeira” história do país. 

Entre os vários processos judiciais na qual a BP é citada, a produtora foi denunciada na Comissão Parlamentar Mista de  Inquérito sobre a Covid-19 (2021) por conta de conteúdo falso disseminado sobre o tema. Seus articuladores apresentaram queixa ao Supremo Tribunal Federal o que levou à suspensão das investigações naquele momento.

Referências:

https://unrollnow.com/status/1959340207612072118  Acesso em 28 ago 2025

https://apublica.org/2025/07/brasil-paralelo-usou-laudo-falso-para-atacar-maria-da-penha/ Acesso em 28 ago 2025

https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/agu-processa-portal-por-desinformacao-sobre-caso-maria-da-penha/copy_of_ACPmariadapenha.pdf Acesso em 28 ago 2025

https://www.institutomariadapenha.org.br/quem-e-maria-da-penha.html Acesso em 28 ago 2025

https://www.tjdft.jus.br/informacoes/cidadania/nucleo-judiciario-da-mulher/o-nucleo-judiciario-da-mulher/quem-e-maria-da-penha Acesso em 28 ago 2025
https://www.nexojornal.com.br/brasil-paralelo-extrema-direita-ascensao-pesquisa Acesso em 29 ago 2025

Foto de capa: José Cruz/Agência Brasil

AGU entra com ação contra Brasil Paralelo por desinformação sobre caso Maria da Penha

A Advocacia-Geral da União (AGU) moveu uma Ação Civil Pública contra a empresa Brasil Paralelo por disseminar conteúdo desinformativo a respeito do emblemático caso Maria da Penha, que deu origem à principal lei de combate à violência doméstica no país. A ação, protocolada em 28 de março passado, exige uma indenização de R$ 500 mil por danos morais coletivos e determina a veiculação de material informativo correto sobre o caso.

O vídeo em questão, produzido e distribuído pela empresa de comunicação alinhada à extrema direita, apresenta uma versão distorcida dos fatos para privilegiar argumentos do agressor e ex-marido de Maria da Penha, Marco Antonio Heredia Viveros. O material disseminado pela Brasil Paralelo não menciona que essas alegações já haviam sido rejeitadas pela Justiça. 

O conteúdo da produtora sugere que o processo judicial não considerou devidamente a versão do acusado. Segundo a AGU, este tipo de abordagem mina a credibilidade não apenas da decisão judicial, mas também da Lei Maria da Penha e das políticas públicas de proteção às mulheres.

A publicação do vídeo desencadeou uma onda de ataques misóginos nas redes sociais, além de impulsionar buscas por frases como “Maria da Penha mentiu”. A AGU alerta que esse tipo de narrativa estimula a violência de gênero e desencoraja vítimas a buscarem ajuda.

Em nota oficial, o Ministério das Mulheres reforça que a Justiça brasileira condenou Marco Viveros por tentativa de feminicídio e que o Brasil foi responsabilizado internacionalmente pela demora na decisão sobre o caso pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA). A AGU exige que a Brasil Paralelo publique uma retificação, destacando esses fatos em todas as plataformas onde o vídeo foi veiculado.

O caso de Maria da Penha mudou a legislação brasileira. Em 1983, ela sofreu uma tentativa de feminicídio quando seu então marido atirou nela, deixando-a paraplégica. O agressor alegou que o crime foi resultado de um “assalto”, mas a Justiça rejeitou a versão e o condenou. A lentidão do processo, no entanto, fez com que o caso fosse denunciado à CIDH, que em 2001 responsabilizou o Estado brasileiro por negligência. 

As recomendações da CIDH levaram à instituição da Lei Maria da Penha (2006), marco no combate à violência doméstica. A ação da AGU reforça que desinformação sobre o caso ameaça direitos conquistados e que o Estado tem o dever de garantir a integridade das políticas públicas voltadas às mulheres.

O Brasil Paralelo acumula diversos problemas na Justiça relacionados à disseminação de desinformação. Durante a pandemia de covid-19, a produtora foi investigada pela CPI da Covid no Senado Federal, embora tenha sido poupada no relatório final. Houve ação judicial da empresa com decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que limitou o acesso e posteriormente ordenou a destruição dos documentos obtidos por meio da quebra dos sigilos da empresa.

No contexto eleitoral de 2022, várias publicações da Brasil Paralelo contendo informações falsas ou distorcidas foram removidas ou desmonetizadas por determinação do Tribunal Superior Eleitoral. Em 2023, o ministro do órgão Alexandre de Moraes chegou a intimar os donos da produtora para depor à Polícia Federal a fim de esclarecer o impulsionamento de conteúdo contra o Projeto de Lei 2630/2020, que propõe regulamentar a operação das plataformas de mídias no país.

Referências:

AGU

https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/agu-processa-portal-por-desinformacao-sobre-caso-maria-da-penha Acesso 31 mar 25

Carta Capital

https://www.cartacapital.com.br/politica/antidoto-contra-a-desinformacao/ Acesso 31 mar 25

Poder 360

https://www.poder360.com.br/congresso/cpi-da-covid-pede-quebra-de-sigilo-da-jovem-pan-e-de-sites-bolsonaristas/ Acesso 31 mar 25

Foto de capa: divulgação

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