Nova comissão de Advogados Cristãos da OAB-RJ amplia influência religiosa no Judiciário

*Matéria atualizada 22/09/2025 para registro da resposta enviada pela OAB-RJ e ajuste no título

“Advocacia cristã em ação”, unindo técnica jurídica, ética e valores de fé, esta é a promessa da nova diretoria da Comissão Especial de Advogados Cristãos da OAB-RJ (CEADC) que tomou posse em 8 de agosto passado, no auditório da Escola Superior de Advocacia (ESA). O evento marcou a reativação oficial do colegiado que terá a liderança do advogado Elmo Portella. 

Para além do discurso de pluralidade, a criação da comissão é sintoma de uma disputa maior: o avanço da articulação de lideranças religiosas ultraconservadoras em instâncias jurídicas e no próprio sistema de representação da advocacia, como a Ordem dos Advogados do Brasil.

O respaldo da presidência da OAB-RJ

A solenidade contou com a presença da presidente da OAB-RJ Ana Tereza Basílio, que fez questão de destacar seu apoio à iniciativa. “Mesmo diante de críticas indevidas e manifestações incompreensíveis da mídia, a resposta da OAB-RJ foi o fortalecimento do grupo. Lotamos o auditório da ESA em plena sexta-feira. O trabalho dessa comissão representa aquilo que a sociedade brasileira mais precisa: paz, solidariedade, união e respeito a todas as manifestações religiosas. Sempre lutaremos pela liberdade religiosa”, declarou.

A vice-presidente Sylvia Drumond reforçou a mesma linha. “Quando falamos sobre a Comissão da Advocacia Cristã, reafirmamos que a OAB-RJ é uma instituição plural e apartidária. Qualquer ato que não esteja alinhado com democracia, justiça e respeito ao outro será prontamente repudiado”.

O apoio institucional não é surpresa. Em 2024, na corrida eleitoral para presidir a seccional fluminense, Ana Tereza Basílio recebeu apoio aberto de lideranças evangélicas da Assembleia de Deus Ministério de Madureira, entre elas o bispo Abner Ferreira, hoje consultor da comissão. O gesto sinalizou aproximação entre a direção da OAB-RJ e grupos religiosos que hoje figuram como parceiros da CEADC, como Bereia noticiou à época

Elmo Portella: fé e técnica

O presidente da nova comissão Elmo Portella, fundador da Associação dos Advogados Evangélicos do Brasil (AAEB), ressalta que o trabalho do grupo não compromete a laicidade do Estado. Em entrevista ao Bereia, o advogado e também presidente da Associação dos Advogados Evangélicos do Brasil (AAEB) ressaltou o caráter plural da Ordem. “A OAB-RJ é absolutamente plural, com comissões de religiões de matriz africana, de diversidade sexual e de igualdade racial. A nossa comissão se insere nesse espírito, promovendo reflexão jurídica a partir de valores cristãos, mas sem abrir mão da laicidade do Estado”, disse o presidente eleito em 2024 e reconduzido ao cargo para este novo período.

Foto: Bruno Mirandella/OAB

Segundo Portella, os principais objetivos incluem produção de pareceres, seminários sobre liberdade religiosa e formação continuada de advogados cristãos. “Nosso propósito é construir um espaço de diálogo respeitoso, técnico e comprometido com a dignidade humana”. Em seu perfil no Instagram há um postagem familiar na Igreja Batista Marapendi, além de ter passado por várias instituições Batistas ao longo de sua vida, apesar de não ter uma declaração explícita sobre sua filiação à denominação protestante. 

Diretoria e consultores: entre advocacia e púlpito

A diretoria da CEADC é composta por advogados de diferentes áreas:

  • Presidente Elmo Portella: advogado e líder da AAEB, ligado à Igreja Batista Marapendi.
  • Secretária-geral Marta Maria Dantas: advogada com atuação em defesa da mulher na OAB-Barra, de acordo com postagens em seu perfil no Instagram, é membro da Belém Church.

O corpo de consultores dá à comissão peso institucional e religioso:

  • Dom Orani Tempesta, cardeal e arcebispo Católico do Rio de Janeiro.
  • Desembargador André Fontes, do Tribunal Regional Federal-2.
  • Bispo Abner Ferreira, presidente da Assembleia de Deus em Madureira.
  • Bispo Reinaldo Suisso, presidente da Unigrejas no Rio.
  • Presbítero Cid Caldas, pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, pastor auxiliar na Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro.
  • Padre Marco Lázaro, capelão do Ministério Público-RJ.

Esta composição plural em aparência, mas fortemente confessional, revela uma comissão que funciona como ponte direta entre a advocacia fluminense e igrejas evangélicas e católicas de grande influência política.

Especialista alerta: “Fundamentalismo nega a democracia”

O professor de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais Dr. Alexandre Bahia, lembra que a questão central não é a presença da fé, mas o risco do fundamentalismo.

“Não é problema ter religião. O problema está quando isso é usado como bandeira, como se fosse a única verdade possível. O fundamentalismo é a negação da democracia, porque fecha a possibilidade de debate”, ressalta Bahia, que é Presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB-MG. 

Segundo o professor, entidades como a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) já atuam no Supremo Tribunal Federal para defender pautas conservadoras, contrárias à pluralidade. “Existe resistência dentro da OAB, mas de forma fragmentada. Enquanto o fundamentalismo aparece como movimento articulado, a defesa da diversidade ainda não se organiza como frente”, alerta.

Pesquisas científicas têm demonstrado o avanço da articulação de grupos religiosos ultraconservadores, católicos e evangélicos, no Judiciário para frear avanços em pautas sobre as quais são contrários em sua leitura religiosa dos temas. É o caso das pesquisas sobre a ANAJURE e sobre os catolicismos jurídicos

Resposta

Após a publicação desta reportagem em 20 de setembro, a OAB-RJ se posicionou sobre o texto veiculado pelo Bereia e solicitou direito de resposta. 

A OAB-RJ repudia a informação veiculada pelo site Coletivo Bereia de que “A nova comissão de advogados cristãos da OAB-RJ busca influência religiosa no Judiciário”. A OAB-RJ se relaciona com o Legislativo, o Executivo e o Judiciário de forma absolutamente republicana, voltada aos interesses da advocacia e da sociedade brasileira. As mais de 200 comissões temáticas da OAB-RJ surgiram da necessidade de lidar com temas que permeiam a sociedade e sobre os quais se debruçam o Direito e a advocacia. Como entidade caracterizada pela pluralidade, apenas em âmbito religioso, a seccional conta também com a Comissão da Advocacia do Axé e com a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa”.


Bereia ressalta, entretanto, que a reportagem apenas informa a seus leitores que há um processo de amplificação da influência religiosa cristã dentro da entidade que representa os advogados fluminenses. A eleição da nova diretoria da OABRJ, com o apoio de membros de denominações evangélicas, como a Assembleia de Deus Ministério Madureira entre outras organizações cristãs do estado, denotam a influência religiosa no órgão que, na essência, foi criado com caráter laico.

Referências

OABRJ

https://www.oabrj.org.br/noticias/direito-valores-advocacia-crista-acao – Acesso 13 set. 25

https://www.oabrj.org.br/eventos/posse-comissao-especial-advogados-cristaos  – Acesso 13 set. 25

Bereia

https://coletivobereia.com.br/candidata-a-presidencia-da-oab-rj-faz-campanha-alarmista-com-lideres-da-assembleia-de-deus-ministerio-madureira/  – Acesso 13 set. 25

Instagram

https://www.instagram.com/p/DK92TbgxZEq/  – Acesso 18 set. 25

https://www.instagram.com/elmoportella/  – Acesso 18 set. 25

CNN

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/ex-ministro-milton-ribeiro-confirma-a-pf-que-atendeu-pastores-a-pedido-de-bolsonaro/  – Acesso 18 set. 25

Escavador

https://www.escavador.com/sobre/224607025/elmo-portella  – Acesso 18 set. 25

https://www.escavador.com/sobre/12023544/rogerio-rodrigues-franca  – Acesso 18 set. 25

Religião e Poder

https://religiaoepoder.org.br/artigo/a-abertura-de-templos-religiosos – Acesso 19 set.25https://religiaoepoder.org.br/artigo/catolicismos-juridicos-neoconservadorismo-e-agenda-antidireitos – Acesso 19 set.25

Novos Projetos de Lei em municípios propõem uso da Bíblia nas escolas e negam pluralidade religiosa

Na sequência do acompanhamento sobre comprometimento do princípio do Estado laico em proposições legislativas, o Bereia apurou que dois projetos de lei municipais, em Divinópolis (MG) e Joinville (SC), que dispõem sobre a leitura da Bíblia nas escolas, foram aprovados em agosto passado. Em ambos os casos, houve propostas de parlamentares por emendas que incluíssem outros livros religiosos na leitura paradidática escolar, como O Livro dos Espíritos e O Alcorão, que foram rejeitadas. Tais projetos chamam a atenção para a negação do pluralismo religioso e para a negligência parlamentar diante das múltiplas experiências religiosas.

A Lei  nº 9.567 foi sancionada pela Prefeitura de Divinópolis, em 11 de agosto de 2025, sob justificativa de que “a Bíblia Sagrada é também um livro rico em história, cultura, filosofia, arqueologia e ensinamentos de muito valor”. O texto prevê, ainda, a preservação da liberdade religiosa nos termos da Constituição Federal, de forma que nenhum aluno poderá ser obrigado a participar das atividades relacionadas à Lei.

Reprodução/Prefeitura de Divinópolis

O vereador Matheus Henrique Dias (AVANTE/MG) foi o autor do Projeto de Lei nº 69, de 2025, que originou a lei. De acordo com o perfil do parlamentar na Câmara Municipal de Divinópolis, Dias é missionário consagrado na Comunidade Católica Missão Maria de Nazaré. 

A vereadora Kell Silva (PV) propôs primeiramente o Substitutivo I ao PL CM nº 69/2025, que buscava incluir outros livros religiosos, com o objetivo de fazer com que crianças e adolescentes tenham contato com textos diversos, estimulando a tolerância religiosa. O substitutivo foi rejeitado em 25 de junho.

Logo após, a parlamentar propôs a Emenda Modificativa nº 29 de 2025, com o mesmo objetivo do substitutivo. “Quando aprendemos sobre diversas religiões e suas tradições, desenvolvemos empatia e evitamos preconceitos, o que contribui para uma sociedade mais justa e harmoniosa. Além disso, o ensino plural incentiva o diálogo e a valorização da diversidade cultural e espiritual, preparando os estudantes para conviverem de forma mais aberta e respeitosa com as diferenças. Assim, a escola se torna um espaço onde todos podem se sentir acolhidos e respeitados, independentemente de suas crenças”, diz a justificativa da emenda.

A Emenda Modificativa foi rejeitada em plenário, em 5 de agosto. Alguns dos argumentos dos vereadores votantes abordaram que a maioria da população de Divinópolis é cristã e que, portanto, o impacto cultural de outras religiões é irrelevante no município. O autor do Projeto de Lei disse, ainda, que a emenda proposta seria uma tentativa de sabotar o projeto.

Reprodução/Câmara Municipal de Divinópolis

A vereadora de Divinópolis pelo Partido Verde Kell Silva é historiadora formada pela Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ), mestre em Cultura e Identidade pela mesma universidade e doutora em História Social da Cultura pela UFMG. Ouvida pelo Bereia, a vereadora declarou: “Eu sabia que o projeto ia passar, devido ao apelo que ele tem: quem vai ser contra a Bíblia na escola? E qualquer outro argumento que a gente usasse, poderia aumentar ainda mais o escopo dos conservadores – ultradireitistas em relação à esquerda. Por isso pensei na estratégia de abarcar outros livros religiosos como paradidáticos, justamente para quebrar o caráter doutrinador do projeto e deixá-lo mais plural”.

A vereadora acredita que não houve votos suficientes para suas propostas por pressões partidárias e pelo receio de abordar questões mais sensíveis à sociedade. “Penso a educação como uma forma de desconstrução. Justamente por sermos de maioria cristã, eu inclusive sou católica, entendo que devemos conhecer a cultura, os povos e as religiosidades do mundo para nos tornamos seres mais tolerantes, mais empáticos, mais humanos”, concluiu a educadora.

Em maio deste ano, foi promulgada a Lei Municipal  nº 11.862, em Belo Horizonte (MG), de autoria da vereadora Flávia Borja (DC – Democracia Cristã), que inspirou o Projeto de Lei de Divinópolis. Com ementas, artigos e justificativas com textos similares, outros projetos têm sido propostos em municípios pelo Brasil.

Em Joinville (SC), o Projeto de Lei Ordinária nº 147/2025, de autoria do vereador Brandel Junior (PL), foi aprovado com emenda no dia 12 de agosto e atualmente aguarda sanção ou veto da Prefeitura. O objetivo da proposta é o mesmo dos colegas de Divinópolis, instituir a leitura da Bíblia Sagrada como recurso paradidático nas escolas públicas e particulares do município. 

Reprodução/Câmara Municipal de Joinville

Em 21 de julho, a vereadora Vanessa da Rosa (PT) propôs uma Emenda Modificativa que buscava incluir outros livros religiosos na Lei proposta. Entre os livros listados, estavam O Alcorão (do Islã), a Torá(do Judaísmo) e O Livro dos Espíritos (do Espiritismo Kardecista). A emenda foi rejeitada em 23 de julho na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, com três votos contrários, sob argumentos de que mudava o teor do Projeto de Lei, e que a vereadora deveria propôr um projeto paralelo com o mesmo objetivo da emenda.

“O resultado dessa votação escancara a hipocrisia dos projetos apresentados nessa Casa, que vem sempre travestidos de boas atitudes, de boas intenções, e no fundo são recheados de preconceito e intolerância. […] Religião quem trabalha são as famílias, de acordo com sua fé e a sua crença. À escola cabe trabalhar a pluralidade das religiões”, disse Vanessa da Rosa em vídeo publicado em sua conta no Instagram.

Reprodução/Câmara Municipal de Joinville

O que dizem os especialistas

O professor de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Alexandre Bahia falou com o Bereia sobre o princípio da laicidade do Estado. “A ideia de laicidade é de que o Estado deve ser neutro com relação a religiões. Cada um pode ter a sua religião, o Estado democrático de direito garante que cada pessoa possa ter a sua religião, mas ninguém pode ser nem beneficiado, nem punido por ter ou não ter alguma religião”.

Já sobre esses projetos de lei que tramitam pelo Brasil, o professor diz que são iguais em todo o país, “É um copia e cola absolutamente igual”. Bahia acredita que ao escolher um único livro religioso para ser incluído como paradidático nas escolas, há um privilégio de uma religião em detrimento de outras. “Não importa que seja a maioria, não importa que historicamente a formação do Brasil se deu por uma maior parte de pessoas cristãs, mas isso é privilegiar uma determinada religião e, portanto, isso viola o princípio da laicidade de Estado”.

A professora e pesquisadora de Educação e Religião Andréa Silveira acredita que a finalidade destas propostas é política, não pedagógica. “Fica ainda mais claro que a intencionalidade desses projetos de lei que pretendem incluir exclusivamente a Bíblia como material paradidático nas escolas não é garantir uma aprendizagem ampla e significativa, ou mesmo o direito educacional de crianças e adolescentes. A garantia de direitos educacionais ampara-se justamente na inclusão da diversidade de formas de pensar, crer, ser, viver e estar no mundo, que se manifesta, invariavelmente, na pluralidade religiosa”.

Silveira conclui que a rejeição às emendas que propõe a inclusão de outros textos sagrados, além da Bíblia, revela intencionalidades políticas supressivas. “Isso revela que essas propostas, que querem se impor com força de lei, têm uma intencionalidade política específica, qual seja, consolidar um projeto de sociedade que tenha como centro organizador e de controle valores morais cristãos ultraconservadores, logo, um modelo de sociedade, por princípio, excludente”.

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Bereia chama a atenção, por conta de casos anteriores já checados, que tais projetos devem ser questionados no Supremo Tribunal Federal, a partir de ações do Ministério Público, e as leis municipais declaradas inconstitucionais por violarem o princípio do Estado laico. O uso desta temática como plataforma político-ideológica tem sido recorrente, em especial em períodos eleitorais e a declaração de inconstitucionalidade vem sendo usada como falsa acusação de perseguição à fé cristã. 

Foto de capa: Unplash

Pautas nada laicas e processos legislativos de baixa qualidade

Às vezes tenho a impressão de que o Brasil esta se convertendo em uma teocracia disfarçada de Estado Laico. A laicidade, principio da sociedade moderna, que longe de ser a negação do direito da liberdade de fé, reafirma a legitimidade da autonomia do Estado tornando-o garantidor da liberdade religiosa. 

Diferentemente de sociedades teocráticas, onde determinada religião tinha o poder de se impor sobre as mesmas, controlando todas as suas manifestações culturais e comportamentais, o Estado Laico é a garantia da liberdade religiosa e dos direitos dos cidadãos e cidadãs viverem entre si pautados, única e exclusivamente, por princípios racionais e universais, respeitado o princípio do bem-comum. 

No entanto, a despeito de nosso Estado se firmar neste principio, temos visto uma avalanche de legisladores que querem estabelecer, de forma vergonhosa, leis que quebram esse princípio e reafirmam a intenção de transformar o país numa republiqueta cristã fundamentalista. Estes legisladores transferem para a arena do parlamento uma agenda muitas vezes pessoal, atendendo a interesses de fé religiosa.

Dessa forma, tais legisladores comprometem o fortalecimento da Democracia e empobrecem o nível da igualdade de direitos, favorecendo determinados grupos religiosos e abrindo, para estes grupos, certos privilégios inadmissíveis. Tem se multiplicado exponencialmente iniciativas de leis, tanto na esfera municipal, quanto estadual e até no Congresso Nacional, que têm trazido a tona propostas normalmente oriundas do fundamentalismo protestante que tentam, por exemplo, criar regras que interferem diretamente em atividades pedagógicas de instituições publicas de educação. 

Entre os casos recentes temos uma propositura de lei na ALERJ que estabelece Jesus como guardião do estado do Rio de Janeiro, inclusive com a recomendação de que o Estado realize eventos anuais de promoção dessa homenagem. A referida autora da propositura pertence ao partido Republicanos, apoiado pela Igreja Universal. 

Considerando as questões de técnica legislativa, o referido projeto nem podia avançar para votação em plenário devido a sua líquida inconstitucionalidade. Inclusive com a assumida justificativa de que as pessoas cristãs constituem quase 80% da população, sustentando, por falso principio, uma ditadura da maioria, violando assim o principio da isonomia, pelo qual a lei deve servir a todas as pessoas. Outra questão é a previsão de obrigação do Estado realizar atividades de promoção e divulgação da homenagem, o que implica em uso de recursos públicos em favor de uma fé religiosa.

É evidente que esta iniciativa não está desconectada de iniciativas similares como, por exemplo, a realização de intervalos bíblicos nas escolas, ou mesmo a contratação de serviços de educação cristã que envolveriam pastores e educadores cristãos, às custas do erário público. 

A laicidade do processo pedagógico deve contemplar um currículo que explore o fenômeno da Religião como parte da evolução humana em seus aspectos históricos e culturais, sem promover qualquer crença especifica em clara ação proselitista. Inclusive respeitando a liberdade do discente em não ser obrigado a participar dessas atividades. 

A observância do principio da laicidade do Estado é de fundamental importância para se coibir abusos. Esse é um processo que, no Brasil, historicamente dominado pelo predomínio da religião católica, tem ainda hoje casas legislativas que regulam feriados religiosos. 

Outra pauta que atenta contra o principio da laicidade é a tendência de se apresentar projetos de leis referentes a pautas de costumes tão próprias dos segmentos confessionais. Temos tidos múltiplos exemplos em varias partes do Brasil, o que revela que não há preocupação com a formação dos futuros parlamentares sobre técnica legislativa. Isso evitaria muitos problemas e agilizaria a contento a prática legiferante para temas realmente relevantes para o povo brasileiro.

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Imagem de capa: Secom/Alerj

Quem tem medo da laicidade na psicologia?

A Psicologia é uma grande área de disputa para o campo religioso. Devido à sua interligação com os estudos da mente e a tradição da confissão (FOUCAULT, 1988), a área veio com uma raiz religiosa que, ao longo do tempo, os autores clássicos tentaram romper – como Freud, Skinner etc. – e que formulou, ao lado da Modernidade, uma profissão laica. Contudo, esse vínculo com a religião fez com que desde muito cedo a Psicologia caminhasse em um lugar ambíguo entre uma ala que queria que a Psicologia fosse uma técnica apropriada pelo campo religioso e outra, defendendo uma autonomia do campo (BELZEN, 2009). 

Essa disputa, que assinalei como histórica, ganha contornos muito específicos no Brasil. A entrada das disciplinas de Psicologia pelos seminários e instituições católicas ou protestantes fizeram esse contorno ser muito presente desde o início da profissão no Brasil. O catolicismo, inicialmente já interessado na área, teve um novo concorrente: os evangélicos, segmento na casa dos 9% em 1990 (dados do IBGE) que dá um salto vertiginoso para 31% da população brasileira em 2020, segundo o Datafolha.

Nesse território marcadamente afetado pela religião, a área da Psicologia se organizou e se regulamentou em 1977. Houve a criação dos Sistemas-Conselhos a partir da Lei 5766/1971, com uma organização em nível federal (Conselho Federal de Psicologia) e os conselhos regionais (Conselhos Regionais de Psicologia), divididos por áreas do país, não necessariamente estados. Cada conselho com eixos de trabalho e instâncias de debate para dois objetivos – orientar e fiscalizar a profissão. 

Nesse processo foi criado o primeiro Código de Ética do Psicólogo ainda em 1975, contudo, em função dos avanços profissionais e sociais – principalmente marcados pela Constituição Cidadã de 1988 e as Declarações Internacionais de Direitos Humanos – foi formulada a nossa última versão do código, em 2005. Nesta, tornou-se mais explícito o compromisso da área com a laicidade e a luta contra qualquer forma de violação dos direitos humanos. 

Em paralelo a esse processo, o CFP criou resoluções que, de modo diferente, já apontavam para a necessidade da laicidade, como a resolução 01/1999 – que proíbe a cura de homossexualidades e que, diversas vezes, foi objeto de grupos religiosos tentando retirar essa normativa; a 01/2000, que fala sobre a laicidade das práticas psicoterápicas; a 18/2002,  que versa sobre racismo e repudia todas as formas de discriminações raciais; a 01/2018,  que proíbe a cura de pessoas transgênero e a 08/22,  que proíbe a cura de pessoas não-monossexuais como bissexuais e pansexuais. Assim, a resolução 07/2023, criada para abarcar a temática sobre laicidade, apenas reforça aquilo que já está construído na profissão desde sua criação e no seu desenvolvimento. 

Além disso, os Sistemas-Conselhos, como citado anteriormente, trabalham com Eixos e grupos de trabalhos, dentre eles alguns específicos sobre Laicidade. Logo, a criação desta última resolução advém de um amplo debate de profissionais – muitas vezes que professam fé religiosa ou que já sofreram com as faltas éticas. Um dos grandes exemplos é um dos presidentes do Eixo de Laicidade do CRP-RJ, Héder Bello, que passou por tentativa de cura de sua sexualidade pela Rozângela Justino, que se autointitulava “psicóloga cristã”. Esta ex-psicóloga foi cassada e perdeu o seu registro profissional. Nesse processo, Bello produz, ao lado do CFP, o documento “Tentativa de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs” (2019), acumulando relatos de dezenas de outros pacientes que passaram por violações similares. Isso ocorreu anos antes da resolução 07/2023. 

Assim, a tentativa de se retirar uma norma do CFP não é uma movimentação nova e incomum na área, da mesma forma que o impulso de organizações para permanecerem usando terminologias que são antiéticas – como “Psicólogo Cristão”. Quando a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7426 surgiu de modo a barrar a Resolução 07/23, se retomou um mesmo movimento que já ocorrera no passado: “mas o psicólogo não tem “liberdade” de curar uma pessoa de sua sexualidade? E de expressar sua religião como profissional?” O uso do termo “liberdade de expressão” aparece como um opositor aos limites dados pelos Direitos Humanos. 

A resposta para as perguntas acima é “Não!” O psicólogo não tem liberdade para tudo. Por isso somos uma ciência e profissão. A laicidade é uma forma de proteger grupos minoritários de violências como as relatadas no documento “Tentativas de aniquilamento de subjetividades LGBTIs” de 2019, na fala de três mulheres lésbicas:

1: A psicóloga começou invocar alguns trechos da Bíblia, falando sobre o mito da Criação, sobre o papel da mulher, sobre as convicções. 

2: Minha mãe disse que o pastor conhecia uma psicanalista que era uma irmã, ela era da igreja, sei lá o quê, e que tratava de casos assim. (…) Ela conversou comigo que talvez fosse isso que Deus queria, sei lá o quê. Antes da sessão, a gente fez uma oração, claro. 

3: Ao buscar ajuda psicológica, a psicóloga veio interpor uma questão de religião. […] Ela começou dizendo que era uma fase, depois ela entrou muito em religião, começou a falar que Deus tinha um plano para mim e que isso eram “atormentações”, que eu não podia me deixar cair nessas atormentações. Ela passava orações para eu fazer, orações, hinos para eu ouvir, e ficava falando versos bíblicos, nada a ver. (CFP, 2019, p.102.)

Em oposição a esta ADI 7426, organizada pelo Partido Novo e o Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) – duas organizações que não são de psicólogos – o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Pedro Paulo Bicalho, decidiu mobilizar respostas que estão em processo. No caso do Rio de Janeiro, a presidente do Conselho, Céu Cavalcanti – uma mulher trans e que possui uma experiência religiosa – fez questão de realizar um evento chamado I Seminário sobre Psicologia, Religião e Espiritualidade, onde estava presente o Eixo de Laicidade do CRPRJ e a Comissão de Estudantes. O evento foi realizado no Instituto Teológico Franciscano, que apoiou firmemente a luta pela laicidade. Houve cerca de 400 pessoas presenciais e 500 online, ouvindo claramente o posicionamento e recebendo em mãos a resolução, a fim de lerem e entenderem a luta pela laicidade. A área continua em luta a fim de reafirmar seu lugar ao lado dos Direitos Humanos.

Referência:

BELZEN, Jacob A. Psicologia Cultural da Religião: Perspectivas, Desafios, Possibilidades. REVER: Revista de Estudos da Religião, v. 9, 2009.

CFP – Conselho Federal de Psicologia. Link: https://site.cfp.org.br/multimidia/projeto-memorias-da-psicologia-brasileira/. Acesso em 04 out. 2023. 

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade, vol. 1: a vontade de saber. Rio de janeiro: Graal, 1988.

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

***Foto de capa: Aaron Burden/Unsplash

Mídias continuam a desinformar sobre projetos que obrigam leitura da Bíblia nas escolas públicas

No mesmo dia em que a mídia nacional e a internacional rememoravam os atentados ocorridos em 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, o site Sul21, jornal online dedicado prioritariamente ao noticiário político, segundo definição na seção institucional da página, trouxe a seguinte manchete: “Câmara de Xangri-Lá (RS) torna obrigatória leitura da Bíblia nas escolas municipais”.

Segundo a matéria, a Casa Legislativa do município, localizado no litoral norte do Rio Grande do Sul, havia promulgado no dia 21 de agosto uma lei que torna obrigatória a leitura bíblica nas escolas públicas na cidade. O texto faz referência ao conteúdo publicado originalmente no Projeto de Lei (PL) n. 2.166, de 21 de agosto de 2020, assinado pelo presidente da Câmara, Valdir Machado Silveira (PSC), e pelo 1º secretário, Fábio Júnior Ramos (PP).

Fundamentada pelo texto do PL, a reportagem de Sul21 descreve como seria a inserção das leituras a partir da promulgação da lei. “Segundo o texto (ver ao final), promulgado pela Mesa Diretora da Câmara local, a leitura da Bíblia será de responsabilidade do professor de cada turma e deverá ser feita no início de cada turno escolar (manhã e tarde), podendo o docente autorizar ou não o debate do texto lido. A lei diz ainda que o trecho a ser lido, bem como capítulo e versículo, será escolhido de forma aleatória ou coletiva, ‘quando melhor convier à classe”. Ainda segundo o PL, a leitura única e exclusivamente do livro terá caráter de “tornar o ambiente escolar mais saudável e altruísta”. De acordo com Sul21, a obrigatoriedade teria entrado em vigor a partir da promulgação da lei.

A matéria jornalística salienta a inconstitucionalidade de legislações que tornam obrigatórias a leitura da Bíblia em escolas; elas são desaprovadas pelos juristas uma vez que vão de encontro à laicidade do Estado. A publicação exemplifica ainda o caso da cidade de Florianópolis, que, em 2015, instituiu uma lei que obrigava escolas públicas e privadas a disponibilizarem bíblias e que foi suspensa após ser considerada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

Na página da Sul21 no Facebook, o post sobre o PL em Xangri-Lá, publicado no dia 12 de setembro, gerou comentários de repúdio à iniciativa da Câmara e questionamentos quanto à laicidade de Estado. Foram 68 interações, 24 comentários e 7 compartilhamentos.

Entendendo a laicidade do Estado

Conforme esclarece o advogado Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, Estado laico é a condição de um país ou nação que adota uma posição neutra no campo religioso. Também conhecido como Estado secular, tem como princípio a imparcialidade, não apoiando ou discriminando nenhuma religião. Defende ainda a liberdade religiosa a todos os cidadãos e não permite a interferência de correntes religiosas em matérias sociopolíticas e culturais.

Um país laico é aquele que segue o caminho do laicismo, doutrina que defende que a religião não deve ter influência nos assuntos do Estado. O laicismo foi responsável pela separação entre a Igreja e o Estado e ganhou força com a Revolução Francesa.

O Brasil é oficialmente um Estado laico, pois a Constituição Federal e outras legislações preveem a liberdade de crença religiosa aos cidadãos, além de proteção e respeito às manifestações religiosas. O inciso VI do art. 5º desse dispositivo legal estabelece:

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;”

Constituição Federal de 1988

Vecchiatti reforça que a laicidade do Estado pressupõe a não intervenção da Igreja no Estado, entretanto um aspecto que contraria essa orientação é o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras. Já em países não laicos (teocráticos), a religião exerce controle político na definição das ações governativas. Ali, o sistema de governo está sujeito a uma religião oficial, como ocorre no Vaticano (Igreja Católica), Irã (República Islâmica) e Israel (Estado Judeu).

Outro conceito é o de Estado confessional, em que o Estado reconhece determinada religião como sendo a oficial. Apesar disso, não se deve confundir Estado teocrático com Estado confessional, porque no primeiro caso é a religião que define o rumo do país, ao passo que no segundo ela não é tão importante na comparação entre os dois modelos, mas ainda assim tem mais influência do que em um Estado laico, explica o advogado.

Deve-se destacar, no entanto, que um Estado laico não é o mesmo que um Estado ateu, que não permite que os cidadãos professem sua fé; ao contrário, assume igualdade entre todas as crenças e cidadãos que as professam e deve atuar garantir a liberdade de religião. Por essa razão, um PL que decide impor a leitura bíblica em escolas municipais e privilegia os cristãos em detrimento de estudantes e professores não cristãos fere o princípio de laicidade e, portanto, a Constituição. Sendo assim, projetos desta natureza se tornam inconstitucionais.

Outras localidades também já apresentaram PL semelhante ao de Xangri-Lá

O cristianismo é a religião com o maior número de adeptos no Brasil. Dados de uma pesquisa do Instituto Datafolha, que atualizam dados do Censo do IBGE (2010), mostram que 81% da população do país é cristã. O estudo, realizado nos dias 5 e 6 de dezembro de 2019 com 2.948 entrevistados em 176 municípios, revelou que 50% é de origem católica, 31% evangélica, 3% espírita, 2% autodeclarados como pertencentes ao candomblé ou outras religiões afro-brasileiras, 1% de ateus, 0,3% judaicos e ainda 10% autodeclarados como sem religião.

Os números explicam as iniciativas com foco em projetos de lei que visam promover conteúdos cristãos no ensino público. Nesse sentido, casos como o de Xangri-Lá já foram pauta de diversos debates ao redor do país. Recentemente, o Coletivo Bereia realizou checagem de matéria sobre a aprovação na Assembleia Legislativa do Maranhão (Alema) do Projeto de Lei nº 281/2019 que insere a Bíblia como livro obrigatório no acervo bibliográfico indicado pela Comissão de Remição pela Leitura. O documento acrescenta dispositivos à Lei Estadual nº 10.606/2017 que institui o Projeto “Remição pela Leitura” no âmbito das penitenciárias do Maranhão. A proposta foi apresentada pela deputada estadual Mical Damasceno (PTB) e aprovada com a totalidade dos votos dos parlamentares presentes.

A checagem do Bereia traz ainda outro exemplo, dessa vez ocorrido na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). O PL nº 390/2017 foi vetado em fevereiro deste ano por ser considerado inconstitucional sob o argumento de que legislação penal é de competência do Senado e da Câmara, e não da Alesp, como prevê a Constituição.

Em São Luís (MA), decreto sancionado pelo então prefeito Tadeu Palácio (à época no PDT), em 20 de março de 2003, tornou obrigatório que as escolas municipais do ensino fundamental adotassem a leitura da Bíblia antes do início das aulas.

Por se tratar de um projeto inconstitucional, foi proposto e vetado, assim como ocorreu em outras cidades que também desejavam incluir a leitura bíblica ao ensino municipal. Foi o caso de Nova Odessa (SP), em 2014, em que projeto de autoria do vereador Vladimir Antônio da Fonseca (SDD) – e que foi vetado pelo prefeito Benjamin Bill Vieira de Souza (PSDB) – previa a leitura de um versículo bíblico por dia para os alunos do 1º ao 5º ano .

A inconstitucionalidade da lei também foi declarada no Rio de Janeiro em 2015 sobre a Lei nº 5.998/11, que obrigava escolas públicas e privadas a terem um exemplar da Bíblia em sua biblioteca. O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio determinou que a lei feria o princípio de neutralidade das religiões.

Em dezembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou pela terceira vez o recurso da Prefeitura de Manaus (AM), que pedia para manter as determinações previstas na Lei n. 1.679/2012 que obrigava que todos os espaços públicos municipais de leitura dispusessem de um exemplar da Bíblia. O projeto de lei, de autoria do então vereador Marcel Alexandre, já havia sido derrubado pelo Tribunal de Justiça do Amazonas em julho de 2018.

Valdir Machado Silveira (PSC), autor da lei proposta recentemente pela Câmara de Xangri-Lá (RS), é pastor evangélico e cantor gospel. A justificativa para o projeto não é religiosa, conforme ele afirmou. Segundo o vereador, por meio da leitura bíblica quer “tornar o ambiente escolar mais saudável e altruísta”.

O Coletivo Bereia entrou em contato com a Câmara Municipal de Xangri-Lá para apurar a proposição do PL. De acordo com a diretora legislativa, Camila Galvão, trata-se de um projeto aprovado em 2019, mas não sancionado pelo Executivo. A proposta veio à tona novamente, por meio do Projeto de Lei nº 2166, aprovado novamente pelos vereadores, mas ainda não sancionado pela Prefeitura.

De acordo com  Ministério Público Federal (MPF), em 2019, o órgão encaminhou ao procurador-geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul representação por inconstitucionalidade do referido PL. A atuação foi do procurador Regional dos Direitos do Cidadão, Enrico Rodrigues de Freitas.

Para o MPF, é evidente a inconstitucionalidade material da norma, uma vez que o STF possui vasta jurisprudência na análise das diretrizes e limites da laicidade do Estado, bem como da liberdade religiosa do cidadão. Dessa forma, a imposição de leitura e autorização/indução de debate confessional em horário escolar regular, em período de disciplinas de matrícula obrigatória, ofende tanto a Constituição Federal quanto a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. Além disso, viola a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o Estatuto da Igualdade Racial.

Soma-se a isso o fato de que a lei municipal também sofre de inconstitucionalidade formal, pois compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, e à União, aos estados e ao Distrito Federal legislar concomitantemente sobre educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação. Não é permitido ao município editar a lei por faltar-lhe competência legislativa.

Portanto, Bereia classifica a matéria do Jornal Sul21 como imprecisa, uma vez que oferece conteúdos verdadeiros, porém sem considerar as diferentes perspectivas e não contextualizar a situação em questão. O site não explica que o PL que tornaria obrigatória a leitura bíblica em escolas de Xangri-Lá foi promulgado pela Câmara dos Vereadores, mas ainda não foi aprovado pelo Executivo.

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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução

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Referências de checagem

A Crítica, https://www.acritica.com/channels/manaus/news/stf-afirma-ser-inconstitucional-lei-que-exige-biblia-em-escolas-de-manaus. Acesso em: 15 set 2020.

BemParaná, https://www.bemparana.com.br/noticia/leitura-obrigatoria-da-biblia-em-escolas-e-vetada-no-interior-de-sp#.X2DrtWhKjIW. Acesso em: 15 set 2020.

Constituição Federal, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 13 set 2020.

ConsultorJurídico, https://www.conjur.com.br/2015-out-06/inconstitucional-lei-rio-obriga-escolas-terem-biblia. Acesso em: 15 set 2020.

Extraclasse, https://www.extraclasse.org.br/politica/2020/09/vereadores-de-xangri-la-aprovam-lei-que-obriga-leitura-da-biblia-nas-escolas-publicas/. Acesso em: 15 set 2020.

Lei Ordinária n. 4.160/2003, https://leismunicipais.com.br/a1/ma/s/sao-luis/lei-ordinaria/2003/416/4160/lei-ordinaria-n-4160-2003-torna-obrigatorio-que-as-escolas-municipais-de-ensino-fundamental-adotem-a-leitura-da-biblia-antes-das-aulas-e-da-outras-providencias?r=p. Acesso em: 15 set 2020.

Ministério Público Federal, http://www.mpf.mp.br/rs/sala-de-imprensa/noticias-rs/mpf-representa-por-inconstitucionalidade-de-lei-que-torna-obrigatoria-a-leitura-da-biblia-nas-escolas-publicas-de-xangri-la-rs. Acesso em: 17 set 2020.

Revista Jus Navigandihttps://jus.com.br/artigos/11457. Acesso em: 15 set 2020.

Sul21, https://www.sul21.com.br/cidades/2020/09/camara-de-xangri-la-rs-torna-obrigatoria-leitura-da-biblia-nas-escolas-municipais/. Acesso em: 13 set 2020.

Sul21, https://www.facebook.com/Jornal.Sul21/. Acesso em: 13 set 2020.

NOMEAÇÕES DE EVANGÉLICOS NO GOVERNO X ESTADO LAICO: AONDE VAMOS CHEGAR?

Ricardo Lopes Dias

A nomeação de Ricardo Lopes Dias, ex-missionário da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), como coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Diretoria de Proteção Territorial da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), oficializada no último dia 05 no Diário Oficial da União, gerou inúmeras críticas, até mesmo dos próprios servidores da FUNAI. Mas o governo Bolsonaro parece não estar preocupado com opiniões contrárias, inclusive de entidades que são referências quando o assunto é política indigenista, como a APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), UNIVAJA – União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, INA – Indigenistas Associados, FPMDDPI – Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, CIMI – Conselho Indigenista Missionário. Junta-se a elas o CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, que lançou nota indicando seu desacordo frente à nomeação.

 “O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), composto pela Aliança de Batistas do Brasil, Igreja Católica Apostólica Romana, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Igreja Presbiteriana Unida e Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia expressa seu desacordo à indicação do ex-missionário, Ricardo Lopes Dias, para chefiar a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai.”

CONIC, 03 de fevereiro de 2020

Além da nomeação do ex-missionário, que fere o princípio constitucional da laicidade do Estado, o presidente da FUNAI, Marcelo Xavier, fez uma manobra que durou 24 horas para efetivar Dias Lopes. Xavier solicitou uma mudança no regimento interno do órgão, alterando as medidas do cargo, que até então só poderia ser ocupado por servidores públicos efetivos da FUNAI.

INDICAÇÕES DE EVANGÉLICOS NO GOVERNO BOLSONARO

Bolsonaro recebe oração de Edir Macedo durante culto na Igreja Universal

Indicações e nomeações de evangélicos no governo Bolsonaro têm sido uma prática rotineira desde as eleições, em 2018. Após vencer nas urnas, o “Messias”, que conquistou o cargo por meio de estratégias que incluíram batismo no rio Jordão, “aceitação de Jesus” em culto, e alianças políticas com líderes religiosos como Edir Macedo, Silas Mafalaia e Marco Feliciano com a bancada evangélica no Congresso Nacional. O ex-capitão tem governado o país como um pastor autoritário, que faz de tudo para não perder seu “ministério”, nomeando figuras “terrivelmente evangélicas”, como ele mesmo afirma, para cargos de liderança.

Como o Estado é laico, “mas o governo é cristão”, segundo fala do próprio presidente, a equipe bolsonarista tem, hoje, cinco evangélicos no primeiro escalão do governo ocupando ministérios. O maior conselheiro do presidente, Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria do Governo, é batista. Os outros são: Onyx Lorenzoni, ministro-chefe da Casa Civil, luterano. Marcelo Álvaro Antônio, do Ministério do Turismo, membro da Igreja Maranata. André Luiz Mendonça, ministro da Advocacia Geral da União, pastor presbiteriano. Ele é, possivelmente, o homem “terrivelmente evangélico” que Bolsonaro indicaria para o STF. E finalmente, a pastora pentecostal, Damares Alves, ministra da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ela tem levado várias “propostas pastorais” de políticas públicas para o governo, como a de abstinência sexual como uma das diretrizes para combater a gravidez precoce, ignorando, como seu presidente, todas as críticas de médicos, educadores e cientistas que trabalham com o tema da sexualidade na adolescência.

No segundo escalão o número funcionários evangélicos é expressivo, principalmente no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Roberto Alvim durante culto na Bola de Neve

Não podemos esquecer de Roberto Alvim, exonerado em 17 de janeiro da Secretaria da Cultura depois de discurso nazista. Ele havia sido ungido um mês antes na igreja Bola de Neve como o “novo Daniel (profeta do Antigo Testamento) para o Brasil.”

QUAL O PROBLEMA DE HAVER EVANGÉLICOS NA LIDERANÇA DO GOVERNO FEDERAL?

Nenhum. A questão que se coloca no contexto religioso é o “tipo” de evangélico/a que lá está. O mínimo que se espera de um/a cristão/cristã na política é que respeite a Constituição, o que não tem se dado, de forma bem explícita, neste governo.

Jair Bolsonaro e Benedito Aguiar

Nomeações como a do ex-reitor da Universidade Mackenzie, o presbiteriano Benedito Guimarães Aguiar, para a CAPES em 24 de janeiro deste ano, e agora, Ricardo Dias Lopes para FUNAI, revelam a plena coalizão do governo com a religião, fazendo dela a bandeira que rege a desordem e o desprogresso que o Brasil vem enfrentando neste último ano. Lopes já foi missionário em aldeias indígenas e agora, por meio de manobra, o que intensifica ainda mais o equívoco de sua nomeação, é indicado para um cargo que requer a maior imparcialidade religiosa possível, pois o departamento irá coordenar os índios isolados e de recente contato da Funai, que tem como principal atribuição proteger esses povos e não expô-los a nenhum tipo de evangelização.

Para esclarecer a nomeação do ex-missionário Ricardo Dias Lopes, entrevistei um ex-servidor da FUNAI, que pediu para não se identificar devido o cenário de perseguição que se instalou na Fundação na última semana.

O entrevistado é um antropólogo que tem mais de 10 anos de experiência com questões indigenistas.

ENTREVISTA

1- Como ex-servidor da FUNAI, como o senhor vê a nomeação de Ricardo Lopes Dias para a coordenação de índios isolados?

É importante destacar a total incompatibilidade entre a atividade missionária e a coordenação da política de proteção aos povos indígenas em isolamento voluntário e povos de recente contato. Conforme o próprio declarou, o objetivo de vida dele era a criação do que ele chama de “igreja autóctone” em cada povo indígena. Com esse objetivo o missionário vai contra os standards internacionais dos direitos humanos e dos direitos específicos dos povos indígenas, que afirmam o direito à autodeterminação sobre suas vidas e seus territórios bem como afirma o direito dos povos indígenas à consulta livre, prévia e informada sobre todas as ações que possam impactá-los.

2 – O senhor acha que esta nomeação de Lopes fere a política laica para com os povos indígenas? Sendo que as políticas de proteção territorial da Funai, voltada para os índios isolados, é reconhecida como um exemplo pioneiro no mundo.

Os objetivos do missionário ferem a Constituição Federal de 1988 ao ir contra as garantias estabelecidas na Carta Magna em relação ao respeito ao direito dos povos indígenas, sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições (artigo 231 da CF de 1988). No caso dos povos indígenas em isolamento voluntário, o anseio de Ricardo Lopes é ainda mais grave, porque, ao defender a ação missionária nas terras indígenas ele vai contra os princípios e a política de respeitar e garantir que esses povos vivam de forma autônoma dentro do seu território, protegidos pelas ações desenvolvidas pelas frentes de proteção etno-ambientais da FUNAI, que desenvolvem um trabalho exemplar em defesa da autodeterminação e autonomia dos povos em isolamento voluntário. O Estado brasileiro ao longo do último século passou por várias políticas em relação aos indígenas não contactados até compreender que a melhor forma de respeitar a autonomia e os modos de vida desses povos é garantindo que eles tenham autonomia em realizar o contato ou não.

3-A relatora da ONU para o direito dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, criticou a decisão do governo brasileiro de nomear um evangélico para o cargo na FUNAI. Ela afirmou que “é uma decisão perigosa e que pode ter o potencial de gerar um genocídio para a população de indígenas isolados” . O senhor concorda com essa afirmação?

O trabalho missionário, independente do discurso, da intensão alegada, é uma violência contra esses povos ao tentar impor uma religião específica a eles. É necessário destacar que a ação missionária é invasiva e traz riscos muito sér[ios para os indígenas, inclusive do ponto de vista da saúde, tendo em vista possíveis contágios e vírus decorrentes do contato. Isso ocorreu dezenas de vezes no Brasil, com genocídios provocados por contatos desastrosos e, muitas vezes, criminosos. Importante afirmar que essas populações em isolamento voluntário não estão alheias à realidade a sua volta. Eles optam pelo isolamento muitas vezes por terem passado por experiências traumáticas em relação ao contato com a sociedade nacional. Contato que muitas vezes causou centenas e centenas de morte de Indígenas. É uma opção que deve ser fortemente respeitada.

4 – O estado brasileiro tem a responsabilidade de garantir a proteção integral dos povos indígenas. O senhor acha que este governo tem essa pauta como prioritária?

Fica muito claro nas entrevistas do Ricardo Lopes que ele não está assumindo o cargo para trabalhar na política de proteção e promoção dos direitos indígenas e sim na defesa de uma agenda que a muito tempo eles buscam impor a esses povos. Trata-se de algo totalmente invasivo e vai contra os princípios da liberdade religiosa na medida em que esses missionários promovem proselitismo religioso. Acredito que essa nomeação é um retrocesso de décadas em relação à laicidade do Estado brasileiro e da política indigenista. Cabe lembrar que faz bastante tempo que as organizações de missionários cristãs buscam acessar esses territórios e sempre se ressentiram do trabalho realizado pela Funai na proteção etno-ambiental dos territórios indígenas.

A Missão Novas Tribos, da qual esse senhor participa, tem uma longa história com os povos em isolamento e de recente contato, com inúmeros casos de desrespeito e violência contra os povos indígenas. Uma outra questão a considerar é a total falta de experiência desse senhor em relação à política indigenista. A Funai tem um corpo de funcionários concursados e com longa experiência de trabalho com os povos indígenas. A política hoje é de perseguição a esses funcionários e a colocação de pessoas sem experiência e vivência indigenistas. Pessoas que estão entrando na Funai com uma agenda totalmente contrária aos princípios norteadores da ação indigenista do Estado brasileiro.

5 – Para o senhor, em que princípios a Funai deveria se pautar para escolher o coordenador ou coordenadora para o departamento de índios isolados?

Um pressuposto da vaga de Coordenador-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato era ser servidor da FUNAI. Por isso o cargo foi mudado para permitir a nomeação desse senhor. Foi retirada a exigência e transformou em cargo de livre nomeação. Foi uma manobra capitaneada pelo Delegado da Polícia Federal que está a frente da Funai ultimamente. Ele mesmo não tinha nenhuma experiência de trabalho com povos indígenas e foi colocado justamente para garantir a agenda do governo Bolsonaro de desconstrução dos direitos dos povos indígenas.

Assim, não é possível pensar essa nomeação de forma isolada. Faz parte de uma agenda que busca a flexibilização dos direitos indígenas, de forma a interromper os processos de reconhecimento territorial em curso e possibilitar a exploração econômica dos territórios indígenas. A integração defendida pelo Governo Bolsonaro nada mais é do que a tentativa de acessar os recursos naturais e ambientais das terras indígenas e explorar de forma predatória sem respeitar os direitos dos povos indígenas em relação à autodeterminação, autonomia, direito de consulta e de usufruto exclusivo dos territórios. Temos um sério risco de um genocídio dos povos indígenas no Brasil. Algo que já foi vivenciado muitas vezes pelos povos indígenas, como registrado. É desconsiderar toda a história da política indigenista no Brasil. A FUNAI registra, hoje, 107 grupos de povos indígenas em isolamento voluntário.

Já vimos a ampliação das ações de invasão dos territórios indígenas por frentes de exploração econômica que hoje avaliam que estão com a carta branca do Governo Bolsonaro para explorarem ilegalmente os territórios tradicionais dos povos indígenas. Não podemos ver essa nomeação de forma isolada. É a colocação de pessoas estratégicas na Funai para fazer o desmonte por dentro, paralisando políticas, perseguindo servidores, rompendo o diálogo com o movimento indígena, perseguindo lideranças, sufocando as coordenações regionais da FUNAI. Então, por mais que esse senhor fale da defesa dos indígenas, não pode negar o fato de que ele faz parte de um grupo que ocupa hoje a FUNAI para acabar com a política de proteção e promoção dos direitos indígenas. Acompanha essa invasão da FUNAI um amplo esforço de mudança normativa para permitir a exploração econômica dos territórios indígenas, como ocorreu essa semana no projeto de lei de mineração e exploração hídrica em terras indígenas sem respeitar o direito de autodeterminação e o direito à consulta livre, prévia e informada. Há pressão para descontrair as políticas de cidadania.

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O chamado crítico do CONIC precisa ser assumido por todos que defendem o Estado laico como princípio constitucional fundamental para  o Estado Democrático de Direito: “A concepção evangelizadora que acompanha uma política pública deve ser isenta de toda e qualquer lógica religiosa. Povos indígenas têm um patrimônio cultural e espiritual próprios. É dever do Estado protegê-los e garantir a sua preservação”.

Foto de destaque: Ateliê Canudos

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