O risco de rompimento de uma adutora provocou a interdição do terreiro de Umbanda liderado pela yalorixá Luíza Moreira, conhecida como Vovó Luíza, de Camboriú (SC), e também da casa onde ela vivia com o filho Antonio Maicon da Silva no mesmo lugar, em agosto de 2024. O local conhecido como “Tenda de Umbanda Vovó Caxambi”, no bairro Tabuleiro, foi interditado pela Defesa Civil por conta dos riscos aos moradores e frequentadores.
Em busca de reparação, pelo menos para um local adequado para as atividades do terreiro, o filho da religiosa abriu, em 2024, uma petição cível contra a Empresa Municipal de Água e Saneamento de Balneário Camboriú (Emasa). Com a repercussão nas mídias digitais em torno de suspeitas de intolerância religiosa, Bereia checou o caso.
O processo judicial
Atualmente, a yalorixá e o filho estão em uma casa com aluguel social pela Prefeitura de Camboriú. Porém, propriedade fica localizada em um espaço que impede a realização de algumas das atividades religiosas, como o uso do atabaque, instrumento de percussão.
Casa de Luíza Moreira inundada pela adutora. Reprodução/Notícias Agora RPR
Em 26 de agosto de 2025, uma sentença judicial determinou a demolição da Tenda de Umbanda para a realização de obras necessárias no local pela Emasa. Em compensação, foi também deliberado que o Município de Camboriú assegure à mãe de santo e seu filho uma moradia definitiva que possibilite também as atividades religiosas. O cumprimento da sentença pode se dar por meio de doação de imóvel ou da manutenção do aluguel social.
Enquanto o cumprimento da decisão judicial não é efetuado, Luíza Moreira e seu filho permanecem vivendo no local alugado pela Prefeitura. De acordo com depoimento concedido ao Bereia, eles não acreditam que estão sofrendo intolerância religiosa, mas lamentam que a mudança tenha limitado as atividades de culto que eram realizadas no antigo terreiro.
Bereia também ouviu o secretário da Proteção e Defesa Civil de Camboriú (SC) Robson dos Santos, para entender quais são os argumentos técnicos sobre o caso. De acordo com o secretário, a propriedade foi interditada, em 2024, pela Defesa Civil, porque estava localizada em cima de uma adutora da Empresa Municipal de Água e Saneamento de Balneário Camboriú (Emasa). “Ela (Luiza Moreira) só foi retirada dali do local via processo judicial, ninguém chegou e desmanchou a casa dela, isso foi tudo pedido na Justiça. E nesse meio termo, ficou um tempo parada, a Prefeitura a colocou em uma outra casa, está pagando aluguel social dela, tudo certinho”.
Santos conta ainda que, após a remoção, a Emasa foi até o local e assumiu toda a situação. “A empresa fez o desmanche da casa e limpou o terreno. Ela não poderia mais ficar ali, porque a adutora já estava com vazamento, inundando a casa dela, então era perigoso deixá-la ali. Podia romper a qualquer momento, por isso, foi retirada dali, com urgência e a propriedade foi interditada pela defesa civil”, afirma o secretário e pontua que, agora que o terreno já está limpo e o serviço que a Emasa precisava fazer, já está executando.
“O que pega é que não é a casa da gente. Não é o nosso solo sagrado que foi preparado por ela, que é com terra batida, com cinza de fogão, com areia de praia”, conta Antônio Maicon, filho de Vovó Luíza.
Ele diz, ainda, que o terreno onde moravam e onde funcionava o terreiro de umbanda foi doado para eles por uma ex-prefeita da cidade, não ocupado irregularmente. No entanto, recentemente descobriram que, apesar de estarem estabelecidos há mais de 13 anos no local, não há uma documentação oficial que coloque o terreno no nome deles.
No último mês, a “Tenda de Umbanda da Vovó Caxambi” foi demolida. Por conta dos riscos com o rompimento da adutora, Antônio Maicon relata entender não ser seguro retornar para o local no momento e que ficariam satisfeitos com um novo lugar fixo que permita a realização das atividades religiosas.
“A gente não tá pedindo nada, a gente só quer o que é nosso, continuar com as nossas atividades religiosas. O evangélico tem o lugar dele pra devoção. O católico tem o lugar dele pra devoção. E nós, povos de terreiro, de matriz africana, preta, negra, a gente também tem o nosso”, diz Antônio Maicon em entrevista ao Notícias Agora RPR.
Segundo o secretário municipal Robson Santos, pode ser que, em um futuro breve, eles possam voltar. “Se não me engano, eles até já finalizaram o serviço. Agora, se vai ser reconstruída outra casa no mesmo local, isso vai ter um processo judicial e precisa ser visto como será solicitado. Não tem como eu garantir quem vai pagar a nova casa, ou se D. Luiza será realocada em alguma outra casa. Ìsso quem vai determinar é a Justiça. O Ministério Público vai ter que passar para a gente, para entendermos o que que vai ser feito”, ressalta.
Quem é a Vovó Luíza?
Luíza Moreira é mãe de santo há décadas e tem idade aproximada de 111 anos, devido à incerteza de registro civil. Neta de um escravo liberto, ainda criança ouviu da avó que por ter nascido em uma sexta-feira santa tinha um dom e por isso era chamada para curar as feridas de outras pessoas, apesar de não gostar. Anos depois, “fez as pazes” com a tarefa de curar.
Por volta de 1940, Luíza teve o primeiro contato com a Umbanda. Por anos, comandou a “Tenda de Umbanda Vovó Caxambi”, uma casa da religião baseada na caridade, que não cobrava pela assistência e tinha o objetivo de ajudar as pessoas a se desenvolver espiritualmente. Por mais de 13 anos, o terreiro ficou localizado na Rua Manoel Inácio Linhares, onde ficou até 2024, quando a casa foi interditada.
Foto: Reprodução/Instagram
O que dizem os religiosos
Bereia ouviu a avaliação do babalawô Ivanir dos Santos, interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) sobre este caso. Ele atua há anos na linha de frente contra o racismo religioso e na defesa da liberdade de crença, consolidando-se como uma das principais vozes nesse enfrentamento no Brasil. Ivanir dos Santos não presenciou diretamente o episódio que ocorreu com a Vovó Luíza, mas recebeu o relato por meio de outras pessoas e resolveu denunciar.
“O poder público, tanto municipal, como estadual, tem destinado terrenos e imóveis públicos para as igrejas. Por que não destinar um espaço público para os religiosos de matriz africana? Se o Estado é laico, tem que tratar todo mundo de forma igual”, refletiu o babalawô.
Babalawô Ivanir dos Santos durante a 16ª Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Ele ainda falou sobre o crescimento da intolerância religiosa no país. “As políticas públicas de combate à intolerância religiosa, ou seja, de diversidade religiosa, não têm alcançado ainda o tecido social brasileiro como deveriam. Mostra que as autoridades públicas precisam fazer um esforço muito maior no campo da educação, e também no campo do diálogo e consequentemente na área criminal também”.
“Terra prometida, terra conquistada” é o título do documentário dos estudantes de jornalismo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Yago Godoy, Kaio Magalhães e Laura Berg, vencedores do 16º Prêmio Jovem Jornalista 2024, concedido pelo Instituto Vladimir Herzog. Conteúdos disponibilizados pelo Coletivo Bereia forneceram insumos relevantes para pesquisa, roteirização e produção do documentário.
O vídeo aborda uma nova forma de dominação que envolve tráfico, fé, intolerância religiosa e disputa por território, e traz depoimentos de figuras importantes do mundo da religião, como o teólogo Ronilso Pacheco, o babalaô Ivanir dos Santos e a professora Christina Vital, além de pastores e pesquisadores.
Godoy enviou mensagem de agradecimento ao Bereia com destaque para a qualidade das informações obtidas por meio dos conteúdos trabalhados pelo coletivo. “Algumas das análises publicadas [pelo coletivo] serviram como uma base fundamental para questões que discutimos na produção – como o uso do termo ‘narcopentecostalismo’, por exemplo”.
Para a editora-geral do Bereia Magali Cunha, o coletivo também desempenha um papel educacional. As checagens feitas, os conteúdos que dissemina e as pesquisas que realiza para subsidiar o enfrentamento da desinformação constituem um conjunto essencial de saberes.
“É muito gratificante quando tomamos conhecimento de que nossos esforços e nossas investigações resultam em produções relevantes e necessárias como a do documentário ‘Terra prometida, terra conquistada’”, comentou ela.
A íntegra do documentário está disponível no YouTube.
* Matéria atualizada em 10/02/2022 às 11:54, 16:12 e 23:15; e em 18/02/2022 às 16:24
Bereia recebeu em seu número de WhatsApp solicitação de verificação de um vídeo que trata da manifestação ocorrida na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Curitiba, liderada pelo vereador Renato Freitas (PT-PR). No vídeo, o deputado estadual e membro da Igreja Cristã Maranata Capitão Assumção (Patriotas-ES), chama o parlamentar de “bandido”, afirmando que a manifestação foi uma “invasão” na qual “centenas de petistas e comunistas forçaram a entrada, durante a missa”. Algumas cenas dos manifestantes dentro da igreja são mostradas enquanto se ouve ao fundo Renato Freitas discursando.
Imagem: reprodução do aplicativo Kwai
Em seguida o deputado do Espírito Santo afirma que o ato deveria ser considerado “crime contra o sentimento religioso, artigo 208 do código penal”, que trataria sobre “escarnecer de alguém publicamente por motivo de crença religiosa e impedir ou perturbar cerimônia; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto”. Finaliza dizendo que isso seria uma “amostra do que o candidato do PT vai fazer com nossos cultos no Brasil”, evocando uma suposta perseguição religiosa.
No dia 5 de fevereiro um protesto contra o assassinato do imigrante congolês Moïse Kagambe começou a ocorrer do lado de fora da igreja durante uma missa, na trilha de um grande número de manifestações que ocorreram em todo o Brasil e fora dele. O local foi escolhido, segundo o vereador Renato Freitas afirmou em seu perfil no Twitter, porque a igreja “foi construída em 1737, durante o regime de escravidão, por pessoas pretas e para pessoas pretas, a quem era negado o direito de entrar em outros lugares”.
Neste link é possível assistir a gravação de toda a missa. Perto do final, o pároco Luiz Haas reclama do barulho de fora da igreja e diz não ser contra a realização de protestos, desde que não atrapalhem a celebração. Os manifestantes entram após a missa ter acabado e com os fieis já tendo saído, estando o templo vazio. Não houve interrupção da cerimônia religiosa. O vereador discursa, os manifestantes gritam palavras de ordem e se retiram pacificamente. O padre permaneceu durante o tempo todo com o grupo e em entrevista afirmou que os manifestantes “não quebraram nada, não sujaram nada, que isso fique bem claro”.
Como repercutiu
O caso ganhou muita repercussão nas mídias sociais, com informações e posicionamentos tanto de pessoas comuns quanto de lideranças religiosas e políticas.
Em tuíte divulgado nesta terça-feira, 8 de fevereiro, a vereadora de São Paulo Sonaira Fernandes (Republicanos), ex-estagiária de Eduardo Bolsonaro na Polícia Federal, divulgou a apresentação de uma notícia-crime contra o vereador de Curitiba Renato Freitas (PT). Nas postagens que seguem a vereadora afirma que adotará as medidas jurídicas cabíveis e, caso necessário, sairá às ruas para combater o que ela chama de “hordas demoníacas”. Apesar de acusar Freitas de atuar, baseada em um fato fora da sua jurisdição, a vereadora de São Paulo age contra o vereador de Curitiba sob a justificativa de que a manifestação contra “uma igreja cristã deve ser entendido como um ataque à toda a Igreja de Cristo”. no esforço de universalizar o ato cometido no bairro de São Francisco.
Imagens: reprodução do Twitter
Também no Twitter, o assessor para Assuntos Internacionais da Presidência da República Filipe Martins associou a presença de uma bandeira do Partido Comunista Brasileiro (PCB) à perseguição religiosa aos cristãos, afirmando que “o ataque ao Cristianismo é regra e não exceção na conduta comunista”, afirmando ser uma “ideologia que assassinou” cristãos e que o faria até os dias atuais.
Martins também retuitou uma postagem antiga do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), associando uma declaração de apoio ao vereador Renato Freitas, após uma abordagem policial abusiva à uma suposta aprovação ao ato liderado por Freitas dentro da Igreja do Rosário, dessa forma, retirando-a de contexto. O assessor, um dos poucos seguidores do ativista político, inspirador do bolsonarismo, recentemente falecido, Olavo de Carvalho, que restaram no governo Bolsonaro, está sendo investigado pela Polícia Federal no inquérito sobre as “milícias digitais”
Imagens: reprodução do Twitter
Uma postagem falsa de Twitter atribuída ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com a defesa da manifestação também foi compartilhada nas redes.
Em nota, o diretório do PT no Paraná afirmou que “Em relação ao ato público que ocorreu em Curitiba, a Comissão Executiva Estadual do PT do Paraná lamenta o episódio e esclarece que não participou nem da organização nem da decisão de adentrar o templo religioso. Há, por parte da imprensa tendenciosa, a manipulação de fatos para prejudicar o Partido dos Trabalhadores, pois os vídeos evidenciam que no momento em que os manifestantes estiveram no interior da paróquia, a missa já havia terminado e o templo estava vazio.”
O Setorial Inter-religioso do PT soltou nota pública sobre o ocorrido afirmando que “Entendemos que a escolha da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, para manifestação foi justa e legítima, por ser esta igreja construída, no século XVII, como um lugar de veneração, de celebração da fé católica pelos escravizados que eram impedidos de frequentar outras Igrejas juntamente com os brancos.(…) Repudiamos aqueles, sobretudo a imprensa tendenciosa, que manipulam os fatos para prejudicar o Partido dos Trabalhadores e Trabalhadoras e ampliar o discurso do ódio e da intolerância. O PT é defensor histórico da liberdade religiosa, da liberdade de crenças e cultos, bem como respeita os templos, igrejas, terreiros, e demais espaços religiosos representativo do sagrado de todos os segmentos religiosos. Ressaltamos que estes espaços são invioláveis”.
A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) também se manifestou por meio de nota de repúdio: “A ANAJURE repudia, ainda, a conduta do vereador Renato Freitas, que, no papel de representante popular, deveria pautar suas ações com base nos ditames constitucionais, mas assim não procedeu. (…) A conduta de Freitas não observa o compromisso assumido como um representante do povo, no sentido de preservar a democracia e a harmonia no tecido social”.
O que diz o vereador
No Twitter o vereador Renato Freitas afirmou que “Vídeos sem contexto e informações falsas estão sendo divulgadas a respeito de ato contra o racismo, a xenofobia e pela valorização da vida, do qual participamos no sábado. A manifestação foi realizada em memória e por justiça para Moïse Kabagambe e Durval Teófilo Filho, dois homens negros brutalmente assassinados nos últimos dias. Ressaltamos que não houve invasão à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São Benedito, pois ela se encontrava aberta e a missa já havia terminado, como facilmente se constata nas imagens, já que o lugar estava vazio”.
ATUALIZAÇÃO: durante sessão da Câmara Municipal de Curitiba o vereador pediu desculpas aos que se sentiram ofendidos pelo protesto. ““Algumas pessoas se sentiram profundamente ofendidas [pela manifestação contra o racismo ter adentrado à igreja] e a elas eu peço perdão, pois não foi, de fato, a intenção de magoar ou ofender o credo de ninguém, até porque eu mesmo sou cristão”, disse Freitas.
O que diz a Igreja Católica
Em nota repercutida pela Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), a Arquidiocese de Curitiba repudiou a ação, declarada como “profanação injuriosa”. Segundo a nota, como a manifestação transcorria durante a missa os manifestantes foram solicitados a não tumultuarem a liturgia religiosa quando houve, conforme a Arquidiocese, “comportamentos invasivos, desrespeitosos e grotescos” e manifestações de agressividades e ofensas da parte dos manifestantes.
A igreja finaliza a nota afirmando que “não se quer “politizar”, “partidarizar” ou exacerbar as reações”, lembrando que esses tipos de confronto não são pacificadores. A declaração foi assinada pelo arcebispo Metropolitano de Curitiba D. José Antonio Peruzzo, que se envolveu em 2020 num embate com a CNBB, episódio em que o arcebispo saiu em defesa do padre Reginaldo Manzotti para obtenção de licença para operadoras de telecomunicações.
Avaliações
Em declaração ao Bereia, o padre Superior dos Padres Jesuítas em Curitiba (ordem à qual a Igreja do Rosário está ligada), afirmou:“Sobre o ocorrido, sabemos que foi um fato lamentável, mas estamos serenos. Não queremos endossar a espiral de raiva e, sim, promover a paz. Por orientação de Dom Peruzzo, rezaremos pela paz e reconciliação nas missas deste final de semana.”
O Coordenador Nacional do Setorial Inter-religioso do PT, Gutierres Barbosa, disse ao Bereia que “estão transformando um momento, politizando-o, para tentar dizer que o PT é um partido contra as religiões. Isso não procede. Tem um conjunto de fake news, uma série de tentativas de pegar um vídeo, ora balançando a câmera de um lado para outro, para dar a ideia de que há um tumulto. Contudo, quando assistimos outros vídeos de forma frontal, vemos que há um diálogo entre o padre e os manifestantes e não tinha missa. Então tem uma série de informações mentirosas sendo veiculadas. Estão tentando transformar o fato de que existia uma movimentação dentro da igreja, que também entendemos que deveria ser melhor conversada, para não ficar nenhuma dúvida sobre a legitimidade do movimento, que é em favor de duas pessoas negras que foram mortas, e não podemos esquecer isso como centralidade. Mas, ao mesmo tempo, respeitar os espaços de fé. Não queremos colocar lenha na fogueira, para colocar o vereador contra a igreja, a igreja contra o vereador, contra o PT, como é a tentativa de setores da mídia e da parte das fake news. É momento de cautela, queremos um ambiente de paz. Respeitamos muito a liberdade religiosa”.
Sobre o enquadramento penal do caso
O professor do Ibmec-BH Alexandre Bahia, falou ao Bereia a respeito do enquadramento do protesto no artigo 208 do Código Penal, que trata de ofensa religiosa. “Em tese, numa análise muito superficial, seria possível enquadrar. O caso poderia estar em uma dessas duas possibilidades do artigo: impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso, ou vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso. Porém,tudo depende de como a coisa de fato aconteceu. Teria-se que provar se uma das duas coisas aconteceu e demonstrar o ‘dolo’ (intenção)”.
No entanto, Bereia apurou que o próprio padre local não interpretou a atividade dessa forma, uma vez que o protesto ocorreu após a celebração religiosa, e pelo fato de ele ter declarado que não houve qualquer prejuízo ao templo e seus pertences, e também não registrou queixa.
O que Bereia avalia
Bereia conclui que o vídeo em que o deputado estadual Capitão Assumção relata os fatos ocorridos na igreja em Curitiba é enganoso. O vídeo se baseia em conteúdos de substância verdadeira, mas a apresentação interpretativa deles é desenvolvida para confundir. As imagens não correspondem ao que foi gravado na íntegra, disponível nas redes digitais. Além disso, o político oferece teores distorcidos que instigam julgamentos negativos de uma pessoa (o vereador Renato Freitas), de um grupo (o Partido dos Trabalhadores e outros de esquerda) e de movimentos sociais (o movimento negro), além de recorrer ao sensacionalismo, com terrorismo verbal, para conquistar audiência. Este material representa desinformação e necessita de correções, substância e contextualização. Bereia apurou que o protesto começou fora da igreja e, de fato, os manifestantes entraram no templo. Porém, a entrada dos manifestantes não foi forçada, e tampouco interrompeu celebração religiosa, como confirmado pelas imagens recuperadas em mídias digitais e pela declaração pública do próprio pároco local.
Pela desproporção entre o ocorrido e a repercussão, com pesquisa sobre a interpretação e a condução política e midiática do caso, percebe-se que o episódio serviu de motivação para fortalecer a mentira que circula há alguns anos em ambientes religiosos sobre a existência de uma suposta perseguição a cristãos no Brasil (“cristofobia’), que ganhou força na campanha eleitoral de 2020.
Conforme avaliação da antropóloga, professora da UNICAMP Brenda Carranza, “numa primeira leitura, a opção simbólica [pelo local do protesto] foi uma evocação histórica acertada pelo peso político e religioso que possa ter. Porém, durante o protesto vieram à tona acusações à Igreja Católica sobre os resquícios de racismo religioso que a acompanham, revelando a longa convivência do cristianismo com a escravidão, uma das diversas dimensões que o termo encerra”.
“Tanto o aspecto simbólico quanto os conteúdos (racismo religioso, racismo estrutural, violência, perda de humanidade) do protesto são válidos e legítimos, mas, talvez a performance na ocupação da igreja não tenha tido o impacto desejado. Isso porque, protestos em espaços sagrados têm sua própria lógica e a eficácia política advêm do uso da linguagem religiosa (por exemplo vigílias frente à igreja, silêncios prolongados, velas e cruzes, procissões etc.)”, avalia a antropóloga.
Carranza ainda explica que “há um outro elemento interessante nessas reações contra o manifesto na Igreja de São Benedito: invocar a perseguição aos cristãos como objetivo do ato político. Em países como na Índia, Coreia do Norte, Afeganistão, Argélia, entre outros, onde os cristãos são minorias, frequentemente se verifica hostilidade e perseguição a eles”.
A professora, porém afirma categoricamente: “Não é o caso do Brasil, que é histórica, demográfica e culturalmente cristão, contudo, há um imaginário de perseguição religiosa que as elites pastorais e influencers religiosos vem cultivando nos últimos anos sob o mote de “cristofobia”. Entretanto, as acusações de uma perseguição “cristofóbica”, na verdade, esconde a justificativa de uma ofensiva contra grupos considerados inimigos da religião cristã”.
Brenda Carranza analisa com detalhes este caso, em artigo exclusivo para o Bereia. Sobre as mentiras em torno da “cristofobia”, a antropóloga que estuda o tema das religiões, já havia produzido artigo, também para o Bereia, que pode ser acessado aqui.
Nota de repúdio da Associação Nacional de Juristas Evangélicos. https://anajure.org.br/wp-content/uploads/2022/02/07-02-2022-anajure-nota-invasao-igreja-curitiba.pdf [Acesso 18 Fev 2022]