O noticiário nacional destacou, nesta última semana de julho de 2024, que a ex-deputada federal Manuela D’Ávila (PCdoB-RS) venceu uma ação judicial que moveu contra a Rede Record de TV e a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), por conta da divulgação de uma notícia falsa vinculada à sua imagem e nome, no programa “Entrelinhas”, em 2022.
Imagem: reprodução/Estado de São Paulo
Imagem: reprodução/CartaCapital
Em 29 de maio de 2022, o bispo da IURD Renato Cardoso, genro de Edir Macedo e apresentador de programas religiosos na Rede Record, convidou outros pastores para discutir o apoio à campanha de Jair Bolsonaro (PL). Durante o programa, Cardoso alegou que o então candidato à Presidência da República Lula (PT) teria contratado pastores evangélicos para cuidar de sua comunicação. Afirmou, ainda, que a esquerda apoiava um projeto de lei para a “legalização do incesto”, que permitiria que pais e filhos tivessem relacionamentos sexuais legalmente. A informação falsa já circulava em grupos de WhatsApp desde 2019 e foi reiteradamente desmentida por agências de checagem.
Além de vincular a fake news à campanha do candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o programa exibia uma foto de Manuela D’Ávila, como uma das apoiadoras do projeto.
O Bispo Renato Cardoso disse no programa (minuto 00:07:39 a 00:08:06): “Com relação à família, as propostas da esquerda são caóticas e vão desde a criação de um estatuto com diretrizes tão amplas que permitem inúmeras interpretações, inclusive, segundo especialistas, se aprovado, poderia dar direito de defender arranjos familiares como trisal, que é o casamento entre três pessoas, e até relações incestuosas, entre pais e filhos ou irmãos” (A imagem de Manuela D’Ávila aparece vinculada a este texto, na minutagem 00:07:46 à 00:07:50). No acesso em 24/07/2024, o link do programa no Youtube contava com 25.022 visualizações (Transmitido ao vivo em 29 de mai. de 2022), com o seguinte texto: “Esquerda contrata pastores para saber como se aproximar dos cristãos e é aconselhada a enganá-los mudando o seu discurso para não espantá-los. Como o eleitor cristão pode evitar essa armadilha?”
Imagem: Reprodução/Youtube
Manuela D’Ávila declara no livro de sua autoria, “Sempre foi sobre nós: Relatos da violência política de gênero no Brasil”: (Editora Rosa dos Tempos, 2022), que as acusações e desinformações contra as mulheres candidatas sempre foram mais violentas do que as acusações a outros candidatos.
“ Em 2020 disputei minha oitava eleição. Já fui vereadora, deputada federal e estadual, concorri à Vice-Presidência da República numa eleição marcada por um violento esquema de produção e distribuição de desinformação. Desde 2004 sou vítima de ameaças, minha filha já foi agredida fisicamente e, meu marido, hostilizado. Nada, nada, nada se compara ao que vivi em 2020, concorrendo à Prefeitura de Porto Alegre. Líder das pesquisas, me vi vítima de um jogo sórdido, no qual um candidato laranja usava o fato de ter se relacionado comigo na juventude como elemento legitimador de qualquer tipo de mentira e violência. Afinal, qual legitimidade pode ser maior, diante de uma sociedade machista e de um sistema político misógino, do que ter tido uma relação com uma mulher?
Foi chorando, depois do último debate do primeiro turno, que decidi escrever este livro. Primeiro eu queria escrevê-lo sozinha. Depois percebi que éramos muitas que vivíamos a mesma situação. (“Sempre foi sobre nós”, p. 9)
Já em 2021, um ano depois de ter sido candidata derrotada à Prefeitura de Porto Alegre, em entrevista ao UOL, a política gaúcha comentou sobre a virulência das fake news e acusações, e afirmou que as mentiras sobre ela teriam minado sua candidatura. Por conta desta situação, Manuela D’Ávila desistiu de participar de novos processos eleitorais.
Na decisão sobre a ação que a ex-deputada moveu contra a Record/IURD, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) reconhece que ela sofreu danos morais ao ter sua imagem pública prejudicada pelo conteúdo falso propagado. Na decisão, a juíza Tamara Benetti também observou que não cabe uma suposta defesa da “liberdade de imprensa”, tampouco de “acesso à informação” – “pois o uso da imagem da autora não informa; ao contrário, desinforma.” Pela sentença, Manuela deve ser indenizada em R$ 12,7 mil por danos morais. O texto da sentença cita diversas agências de checagem para corroborar a decisão, como pode ser lido no trecho reproduzido aqui:
II.2.3 – PL nº 3.369/2015 e Fake News
É inegável que a temática aqui posta é sensível, pois já veiculada como fakenews (diversas vezes desmentida), como indicado pela autora na petição inicial e nãorefutado pela parte contrária.
Seguem links informativos acessados nesta data (15/04/2024,16:55):
A disseminação de informações falsas sobre o PL nº 3.369/2015 são recorrentes e já foram alvo de verificações da Lupa.
Em abril de 2023 , por exemplo, circulou nas redesum vídeo de um discurso do ex-deputado federal Aroldo Martins sobre o projeto. Apublicação afirmava que o projeto poderia legalizar o casamento entre pais e filhos. Oque é falso.
Já em junho de 2022,viralizou uma postagem afirmando que a proposta foi apresentada pelo PT, quando, na verdade, o autor é Orlando Silva, do PCdoB-SP.
Em agosto de 2020, um post com uma interpretação enganosa do projeto utilizava uma foto da ex-deputada Manuela D’Ávila (PCdoB-RS) e do deputado Orlando Silva. O boato foi desmentido.
Em agosto de 2019, um outro post com a foto do deputado Túlio Gadelha (então no PDT-PE, hoje, filiado à Rede-PE), ex-relator do projeto, circulou sugerindo que ele seria um “mensageiro do apocalipse” por relatar uma proposta de “Lei do Incesto”, o que é falso.
A IURD e a Rede Record já recorreram da decisão. Porém, até o momento do fechamento desta matéria não houve nota oficial, ou entrevista sobre a decisão judicial.
***
Bereia classifica como verdadeira a notícia do ganho de causa de Manuela D’Ávila contra a Rede Record/IURD por propagação de conteúdo falso caluniador, e alerta leitores e leitoras para uso político de discursos a favor da “liberdade de expressão” absoluta e “liberdade de imprensa” para divulgação de material desta natureza. Estas abordagens são enganosas pois liberdade de expressão e de imprensa não significa liberdade de mentir e caluniar.
Bereia também chama a atenção para falsas alegações de perseguição judicial à IURD, dona da Record, já identificadas em comentários sobre este caso em mídias digitais. A decisão judicial foi proferida de acordo com a legislação do país e as igrejas, assim como quaisquer outras instituições do país, devem responder por atos praticados.
Diferentes portais de notícias divulgaram a decisão judicial que determinou a devolução de doações feitas por uma fiel à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Com o auxílio da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, as fiéis contestaram na justiça as doações feitas pela primeira à Igreja. A IURD recorreu da decisão em primeira instância, mas o pedido foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Imagem: reprodução do site Mais Goiás
Imagem: reprodução do Metrópoles
Segundo as matérias, no pedido à Justiça, foi afirmado que a fiel frequentou cultos na IURD entre os anos de 1999 e 2018, e que as doações ocorreram nos dias 15 de dezembro de 2017 (R$ 7.500,00) e 14 de junho de 2018 (R$ 193.764,25 e R$ 3.035,75) totalizando R$ 204.500,00, o que corresponderia a todo o patrimônio amealhado por ela durante a sua vida. Alega-se, ainda, que as doações comprometeram parte indisponível da herança da filha e, por fim, a fiel afirmou que foi coagida a realizar as doações.
Bereia checou que o processo existe e, segundo as informações disponíveis, A Igreja Universal do Reino de Deus, depois de citada pelo Poder Judiciário, alegou ausência de coação e reafirmou a liberdade da organização religiosa. Alegou ainda que a coautora Flaurinda Valeriano frequentava suas dependências para exercício da fé e as doações foram realizadas de forma livre e espontânea.
O processo
Desta forma, como a realização das doações tem, como um de seus elementos essenciais, a declaração livre e espontânea de vontade das partes, discutiu-se no processo se houve coação moral. Também foi considerado que para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa,à sua família, ou aos seus bens.
“Coação é toda ameaça ou pressão injusta exercida sobre um indivíduo para forçá-lo, contra a sua vontade, a praticar um ato ou realizar um negócio. O que a caracteriza é o emprego da violência psicológica para viciar a vontade. Não é coação, em si, um vício da vontade, mas sim o temor que ela inspira, tornando defeituosa a manifestação de querer do agente”.
Após analisar todos os documentos anexados ao processo e ouvidas as testemunhas, o Poder Judiciário afirma que é incontroverso que a fiel realizou três doações em favor da IURD, nos valores de R$ 7.500,00, R$ 3.035,75 e R$ 193.964,25, em 14/6/2018.
Verificou-se também, segundo consta no processo, que a fiel foi vítima de coação na realização das doações à IURD, considerando as pressões psicológicas empreendidas pelos membros da organização religiosa para realização de tais ofertas na campanha denominada Fogueira Santa.
Alegações da Igreja Universal
A IURD admitiu em contestação que:
“A crença divulgada pela Igreja Universal, decodificada por Jesus, no sentido de que o fluxo de ofertar completa-se no refluxo de receber as bênçãos divinas, esclarecendo que o ato de entregar tudo a Deus não está adstrito a bens e valores, compreendendo também a entrega de sua vida a Deus”.
Desta maneira, o Poder Judiciário entendeu que, segundo as doutrinas da ré, não basta o fiel pautar suas condutas de acordo com os ensinamentos bíblicos, pois também se reforça a necessidade de entrega de bens e valores, inclusive na sua totalidade.
Segundo consta no processo, tais alegações corroboram as palavras das autoras de que os pastores divulgam a necessidade de entrega de dinheiro para o recebimento de recompensa divina e que uma das campanhas de doações promovidas pela IURD, denominada Fogueira Santa, é espécie de sacrifício material em que o fiel espera ser honrado por divindade.
O sacrifício máximo seria incentivado pelos pastores, fazendo alusão à passagem bíblica em que Abraão oferece a vida de seu filho a Deus como prova de fé. A doação então seria vista como prova de fé no ambiente da IURD e que se algum fiel estivesse em posição semelhante à da fiel, com recebimento de montante expressivo decorrente de indenização trabalhista e esperando uma suposta recompensa espiritual prometida pelos pastores, faria doação total à IURD.
Testemunhas confirmam coação de fiéis
Ainda segundo partes do processo, as testemunhas arroladas pelas autoras foram uníssonas ao afirmar a existência de coação moral dos pastores para doação de bens e valores pelos fiéis nas campanhas denominadas Fogueiras Santas, sempre com promessas de recebimento de bênçãos divinas.
A decisão judicial
No entendimento da Justiça, a fiel fez a doação total de seus bens, sem que fizesse reserva para sua subsistência ou de valor destinado à sua herdeira, e determinou a nulidade das doações, com base nos artigos 548, 549 e 1.846, do Código Civil. Nesses artigos, consta que:
“É nula a doação de todos os bens sem que tenha sido feita reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador. A doação também pode ser invalidada se o doador dispor da parte que exceder, no momento da liberalidade, o que poderia dispor em testamento. Por fim, os herdeiros necessários têm direito a metade dos bens da herança, constituindo-a legítima.”
Portanto, a Igreja Universal do Reino de Deus foi obrigada a restituir a fiel no valor total de R$ 204.500,00 (duzentos e quatro mil e quinhentos reais), incidindo correção monetária pela tabela de correção dos débitos judiciais do Tribunal de Justiça e juros de um por cento ao mês ambos a partir de cada desembolso.
Ainda no processo que condenou a IURD, outra decisão semelhante é apontada como prova das mesmas práticas de coação praticadas contra a fiel. Neste caso, outra fiel da igreja, sob coação, teria feito doação de veículo Honda Fit, num momento de instabilidade psicológica devida a graves problemas financeiros, tendo sido levada a celebrar o negócio, após 21 dias de afastamento do mundo no chamado “jejum de Daniel”. A doação foi feita em virtude do que foi classificado em processo judicial de “ameaças feitas pelo pastor”, que a visitou em sua casa e lhe telefonou repetidas vezes exortando-a a doar o veículo para que fosse queimado na “Fogueira Santa”, de modo a evitar um mal que recairia sobre ela.
***
Bereia considera o conteúdo checado como verdadeiro, pois de fato houve um processo judicial contra a Igreja Universal do Reino de Deus e após todos os trâmites legais, a igreja foi condenada ao ressarcimento a uma fiel de doação que lhe foi feita, classificada, segundo os autos, sob “coação moral”.
Confira a terceira parte do estudo “Cultos online e as fissuras do fundamentalismo religioso no Brasil”. Para ler a primeira parte, basta clicar aqui. Para ler a segunda parte, basta clicar aqui.
As possíveis fissuras do discurso fundamentalista
Entre os pentecostais alguns discursos são importantes para a construção do fundamentalismo, como a lógica do triunfalismo e da cura, que envolvem a teologia da prosperidade e a teologia do domínio. A primeira reforça o sentido individual da possibilidade cristã de felicidade e prosperidade terrena – e não mais somente no reino dos céus -, a partir da fé e de seu comprometimento com a igreja. Já a segunda aponta que, para a realização dessa felicidade, é necessário se inserir na batalha espiritual contra o Diabo, sendo este o responsável de todos os males da humanidade, e que os crentes devem resistir às suas tentações e pecados. Dessa forma, se algo de ruim acontece com o indivíduo, é atribuído algum pecado a essa pessoa, e entendido que o mal veio como fruto de desobediência a Deus. A partir dessa visão é gerada uma culpabilização do indivíduo frente às adversidades da vida. Ser evangélico se torna a única possibilidade de ação contra as forças demoníacas presentes na terra, a conversão é o único caminho para a salvação.
Com a pandemia do Covid-19, algumas bases teológicas fundamentalistas pentecostais parecem estremecer. O jovem batista Jackson Augusto acredita que “talvez muitas pessoas vão desacreditar de espiritualidades assim, esse discurso que promete coisas, que ninguém vai tocar em você, o discurso neopentecostal é além do financeiro. Para algumas experiências pode haver um enfraquecimento do discurso fundamentalista.”
O discurso do fundamentalismo religioso é ecoado na fala de um pastor pentecostal entrevistado: “Quem está confiante nesse momento? Quem confia em Deus, quem sabe que Deus está no controle de tudo. Nada acontece se não for a permissão de Deus. Então quer dizer, nós estamos em paz, eu estou em paz. Pessoas que não tem essa confiança em Deus, pessoas que não creem em Deus estão desesperadas, ‘e agora, o que vai ser da minha vida’, né?”. Em outras linhas, acaba minimizando as consequências da pandemia em relação à saúde pública e as maneiras que têm afetado a vida de milhões de trabalhadores e trabalhadoras nesse país, como se bastasse a confiança em Deus. No início da pandemia, Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), disse aos seus fiéis para não se preocuparem com o coronavírus e que isso era uma “uma tática de Satanás” – e da mídia – para causar pânico nas pessoas. A visão fundamentalista que enxerga um inimigo comum – o outro – a ser destruído por meio da fé e o papel da conversão como única forma de salvação encontram ecos na política negacionista de Bolsonaro. Para o pastor batista e professor de teologia, Kenner Terra, “não há nada mais perverso, desumano, monstruoso e anticristo do que tornar essa crise um instrumento de capitalização política. O discurso do Presidente, sempre preocupado em falar ao seu reduto eleitoral, já se mostrou desastroso e fragiliza as estratégias de combate à pandemia. Por outro lado, a relação acriticamente religiosa com o atual governo torna alguns pastores/as evangélicos/as recrutas de um projeto insano de poder.”
A visão teológica do “Deus no controle” e os líderes da Igreja como os profetas deste Deus imobiliza a ação social das igrejas ao combate às injustiças sociais e desigualdades, como relata o assembleiano Ronaldo que não teve sucesso ao implementar trabalhos sociais para além do assistencialismo na igreja: “Em relação ao coronavírus a nota é zero. A igreja não tem a filosofia de fazer esses trabalhos. Quando aparecem pessoas interessadas em fazer, como eu falei, quando vai para as esferas superiores eles não aprovam. […] As instituições religiosas têm um dono que não se chama Jesus, e sim aqueles que estão a frente desses trabalhos.”.
O poder que as lideranças das igrejas atribuem a si próprias é contraditório com as raízes do pentecostalismo que também estão ligadas à Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero. Visto que um importante ponto da Reforma é que não há mediação sacerdotal entre Deus e o ser humano, o único mediador seria Jesus. Fiéis e líderes resgataram em diversas falas a tradição protestante como forma de encontrar resistências em um momento em que pastores se colocam como a autoridade máxima da fé. Gedeon Alencar pontua que “na tradição protestante, em tese, nós anulamos todo e qualquer tipo de mediação porque a teologia de Lutero é do sacerdócio universal dos crentes, ou seja, todo crente é seu próprio sacerdote. E o culto, não tendo pastor ou tendo pastor, pode ser celebrado. O pastor Rosivaldo segue na mesma linha, ao dizer que “para nós pentecostais, desde Lutero, isso (o fechamento das igrejas) não é um problema. Porque você não precisa de sacerdote para falar com Deus, não precisa de um mediador. A Bíblia está aí, você tem ela traduzida na sua língua, então leia a Bíblia, ore a seu Deus e jejue”.
Entretanto, o uso da religião como manipulação ainda é um instrumento de controle sobre os corpos e subjetividades em alguns contextos. Por mais que os princípios da Reforma Protestante aponte caminhos para uma fé mais individualista e privada, no campo popular brasileiro a realidade é oposta. Para Ronaldo, da Assembleia de Deus Ministério Madureira, “as pessoas não foram preparadas para serem independentes. Foram preparadas para serem dependentes do ditador trazido para a igreja”. Um elemento que alguns desses líderes traziam, e ainda trazem, é a cura. Um exemplo é o vídeo publicado no Youtube em que o pastor da Igreja Mundial do Poder de Deus, Valdemiro Santiago, promete a cura do coronavírus com a compra de sementes de feijão abençoadas, pedindo o “propósito” de R$1 mil por elas. Após inúmeras críticas, a IMPD emitiu uma nota alegando que não vendiam sementes, nem prometiam a cura. No dia 11 de maio o MPF (Ministério Público Federal) solicitou que o YouTube retirasse do ar vídeos, e continua investigações em relação a “curas mágicas”.
Os esgarçamentos de tais discursos podem ser um ponto de fissura no fundamentalismo religioso. A fala de Ronaldo soa como um desabafo em relação a isso. “O coronavírus mostrou o quanto de farsa existe dentro da prática religiosa, o quanto de farsa que existe na liderança religiosa porque mostrou a hipocrisia de tudo isso. Alguns até tem programas de televisão mostrando curas, coisas impossíveis, e o coronavírus ninguém cura.” Claudio desabafa um ocorrido que aconteceu entre ele e sua companheira e o pastor da igreja:“A gente quase teve uma discussão com o pastor. Veio essa tese Bolsonarista de gripizinha, nós nos posicionamos, porque o vírus não tem partido, então você não pode ir pela cabeça de pastor, e o meu pastor não é Deus.” A jovem evangélica Alana aponta que “discursos religiosos também têm se enfraquecido. Quando eu digo que a cura vai chegar só com oração e essa cura não chega? Como dar respostas a isso? Se esses pastores têm tanto poder, por que eles não estão nas portas dos hospitais simplesmente curando as pessoas?”. Para Josélia Pereira, liderança da FLM, diz que tudo isso “mostrou que ninguém tem o poder de curar nada e nem ninguém, quem cura é Deus. ‘Nossa, fulano, ciclano, realizava tanta coisa’ e a gente tem casos dessas igrejas grandes de próprios pastores e obreiros que pegaram o vírus. Acho que as famílias, mais do que nunca, têm acordado.”
Claudio nos conta que muitos pastores estão deprimidos e traz uma importante reflexão obre como pode se fragilizar esse poder tão grande dado a essas lideranças. “Muitas vezes o pastor tem uma igreja e ali é a área de escape dele, entendeu? Ele é idolatrado, ele é o cara, ele é o pastorzão, então nesse momento que ele perde a igreja e tem que ficar com a família, ele fica meio que sem pé, né? A igreja é um escape, lá ele manda, lá ele tem um monte de gente, entre aspas, para puxar o saco, babar o ovo. Em casa, se ele não tem uma sustentação bíblica, um estudo, se não está realmente pautado na palavra, o cara se sente pior do que a gente que é membro. Ele é um Deus, né? Vaidade, se você não tiver uma base na Bíblia mesmo, aquilo que Deus fala: ‘a honra é Dele, a glória é Dele’, você se perde aí, você acha que é você. Todo mundo que foi exaltado ficou para trás. Aquele pastor que é humilde não sente muito, não”. Encontrar as fissuras nos discursos e ações dos pastores que levantaram a bandeira fundamentalista é um desafio. Aprender a construir pontes de diálogo e de aproximação que não estão prontos, dado que muitas das afirmações do campo progressista não conseguem, ainda, dialogar com os fiéis, é uma tarefa fundamental nesse momento. Para Alana, essas novas ideias não serão agregadas dizendo “o quanto alienado vocês estão por seguirem esse pensamento”. Respeitar a fé em todas as dimensões da vida das pessoas é imprescindível para não aniquilarmos o diálogo. A ciência, a fé e a luta não são antagônica. O pastor Rosivaldo expressa sua fé dizendo que acredita em milagre. “Acredito que Jesus cura, em libertação. Agora, eu também acredito na ciência. O que Deus tinha que fazer para humanidade ele já fez, que foi enviar Jesus para salvar o mundo. Agora o problema da COVID-19 é um problema evidentemente humano, não vem meter Deus nesse negócio porque não tem nada a ver. É um problema biológico, não é uma força espiritual da maldade.”
Outra questão que devemos nos colocar como tarefa é a possibilidade de disputa da leitura da Bíblia. Avaliamos que é possível o questionamento sobre o papel do pastor e aquilo que ele tem pregado nos seus discursos dentro e fora da Igreja, e nos perguntamos: a Bíblia é o canal principal de disputa das narrativas? Com o culto online e o incentivo ao culto doméstico os fiéis tem passado mais tempo com a Bíblia. A leitura bíblica feita pelos membros das igrejas, sem a interpretação direta do pastor ou instituição, pode contribuir também para as rachaduras do discurso fundamentalista da fé. A relação dos evangélicos com a Bíblia é algo forte, fruto também da Reforma Protestante com o Sola Scriptura (Somente a Escritura), uma das cinco afirmações em latim que resumem os princípios da Reforma, sendo estas: Sola Fide (somente a fé), Sola Scriptura, Solus Christus (somemte Cristo), Sola Gratia (somente a graça) e Soli Deo Gloria (somente a Deus a glória). Entretanto, não se pode cair em um idealismo, visto que a própria Welita Caetano, liderança da FLM, pontua que “nós somos carregados de preconceitos, com essa carga preconceituosa você vai ler um versículo”. E acredita que “a Bíblia abre possibilidades para você pensar tanto de forma extremamente conservadora quanto extremamente libertária, depende muita da visão que você tem, dessa carga cultural que você tem, dos livros que você já leu, a partir disso você consegue fazer uma leitura”. Quando corpos diversos leem a Bíblia, muitas interpretações surgem. O que pode fragilizar, de certa maneira, discursos de interpretação única. Para a pastora metodista e teóloga Nancy Cardoso:
“Fundamentalismo é a interrupção da interpretação. O que o fundamentalismo pede para nós é que suspendamos a interpretação. No fundamentalismo ninguém precisa interpretar. O pastor diz, o político diz, e suspende a interpretação. No máximo você descreve, mas interpretar e, a partir da interpretação, fazer interpretação política, não. Então, o fundamentalismo pede para nós o congelamento do processo hermenêutico. Que as pessoas não pensem, que as pessoas não tenham autonomia, direito de decidir (com todos os problemas que o direito de decidir tem)”.
CARDOSO, 2015, p. 125.
Josélia, da FLM, explica sua relação com a Bíblia em tempos de pandemia: “a gente lê junto (com a família). A palavra de Deus diz em Oséias 46 que o povo sofre por falta de conhecimento. A Bíblia é um livro que cada um lê de um jeito e é isso que a gente tem procurado mostrar para os nossos irmãos, que nós somos ovelhas, a gente não é gado. A gente precisa ter o conhecimento da palavra, não dá para a gente fazer isso por que tal bispo, tal apóstolo, tal pastor falou. A gente tem que fazer por que a gente tem que ir lá, examinar a escritura e ver se é aquilo. Então quando a gente faz isso junto, por mais que tem interpretação diferente, a gente consegue entender ali na Bíblia, o que a palavra quer dizer. A gente tem procurado fazer juntos ou quando tem uma dúvida a gente procura estudar o que significa aquilo, o que a Bíblia quer falar em relação àquilo. Por que a Bíblia se renova todo dia, se você ler um salmo hoje, amanhã, quando passar alguns dias que você for ler, mediando o que você está passando, você vai interpretar ele de outra forma”. A trabalhadora doméstica da Zona Norte de São Paulo, Cleonice, que como apontamos não tem tido muita paciência para esse novo formato de culto, tem se conectado com Deus lendo a Bíblia diariamente para seus quatro filhos. Ela diz que sempre leu a Bíblia, mas agora colocou a leitura com as crianças como parte de sua rotina espiritual.
Pós-pandemia
Diante deste cenário, ainda é impossível prever o que será da igreja pós-pandemia. Talvez haja essa pulverização das figuras de autoridades e discursos únicos, ou uma reinvenção do fundamentalismo para abraçar ainda mais as comunidades que sofreram pela pandemia. Talvez a fé seja questionada por conta da falta de respostas para tanto sofrimento ou, ao contrário, com o aprofundamento da crise e com a saúde mental abalada, pode haver um aumento do número de pessoas procurando nas igrejas evangélicas as respostas para suas dores. O futuro é incerto.
As apostas sobre essa nova igreja estão sendo feitas, muitos fiéis acreditam que a vontade do encontro e do abraço fará com que a igreja seja fortalecida e que valorizem mais ainda este espaço tão importante no cotidiano dos fiéis. Para Edgar Aires, membro da IBAB, “perceber a necessidade de comunhão hoje, talvez provoque mais comunhão para frente”. Também há uma crença de que novos fiéis poderão adentrar o universo das igrejas porque, de alguma forma, foram tocados pelos cultos online assistidos por alguém da família convertido. Josélia acredita que haverá uma queda brusca na participação dos fiéis das grandes igrejas, pois muitos encontram o acolhimento e cuidado em outras pessoas. Para os que voltarem, ela acredita que estarão mais conscientes.
A forma que este retorno vai se consolidar é ainda um campo em disputa. O pesquisador Gedeon Alencar aposta em uma mudança radical do papel da fé na vida das pessoas: “quem sabe a nossa sonhada e desejada secularização tome algum fôlego. Primeiro porque esse grupo da discussão da fé, do milagre, do Deus que intervém, perdeu o discurso. (…) o problema não é só o dízimo, o problema é que essas pessoas perderam o discurso, perderam a razão de ser. Quem pregava um evangelho de solidariedade, continua pregando agora e, depois que passar a pandemia, vai continuar falando de solidariedade. Mas quem falava só de milagre e cura, vai falar o que agora?”. Welita, da FLM, também aposta em uma mudança radical do papel e poder da Igreja. “Eu acho que não vai existir mais igreja, assim como todas as estruturas estão falindo, a igreja também é esse instrumento que vai falir. Eu acredito que esse evangelho é tão vivo, tão vivo, que pastor nenhum pode aprisioná-lo. Igreja nenhuma pode dizer ‘esse é o meu evangelho’, o evangelho é do mundo e evangelho para mim, de Cristo, é qualquer pessoa que estenda a mão aos necessitados. Essas igrejas como são, irão ruir”.
Contra-narrativas: o mundo plural dos evangélicos
Nesse cenário, será preciso redirecionar os olhares do movimento social para a classe trabalhadora cristã, criando pontes e diálogos, disputando e cultivando juntos a solidariedade. “Quando somos atingidos nas nossas dimensões mais vulneráveis e que colocam em cheque aquilo que vinha sedimentando o nosso pensamento, somos obrigados a pensar sobre isso e repensar nossas práticas, por isso, considero que a pandemia pode ser um campo fértil de possibilidades para que a gente se reinvente como igreja, como comunidade, no cuidado uns com os outros”, reforça a cientista social Alana Barros. Para Welita, este é um momento de ruptura com essa religião, segundo ela, tão conectada ao sistema capitalista. Ela acredita que há uma brecha para que os cristãos percebam a religião como uma ligação com o divino e com as outras pessoas. “Eu sempre digo para eles (moradores das ocupações) que isso aqui (a ocupação) é religião de verdade, isso aqui é o cristianismo de verdade, de você estender a sua mão para outro em sua necessidade real”.
Essa ruptura e nova percepção da realidade não se constrói de um dia para outro. As lideranças de diversos movimentos populares que estão na linha de frente das ações têm construído – a partir da formação política com a sua base – olhares resistentes frente à realidade e, não raramente, tendo que lidar com concepções enraizadas no fundamentalismo religioso. No entanto, as possibilidades de transformações sempre estiveram em curso, como elabora Welita. “A base com que eu trabalho é evangélica, nas ocupações são todos evangélicos. Vai se construindo uma consciência política, dialogando com a fé a partir da educação popular, a partir das dificuldades do dia a dia que eles enfrentam, mais do que outros lugares, as ocupações são construídas com base na solidariedade. Eu vejo o discurso do Bolsonaro muito forte nas ruas, mas aqui dentro a gente tem um contra-discurso que funcionou sempre”.
Com a presença de uma pluralidade maior de cultos em meio digitais, o movimento progressista evangélico, embora sempre tenha feito uso dessas ferramentas, tem ganhado mais força. Na contramão dos discursos fundamentalistas, os movimentos religiosos progressistas, incluindo comunidades locais, têm mantido um esforço comum na disseminação de informações sobre prevenção da Covid-19. Diversas campanhas nas redes sociais têm sido feitas para que as pessoas não quebrem o isolamento e exercitem a fé dentro de suas casas. Uma das hashtags de destaque foi a #FéNãoImuniza, inspirada na fala do pastor batista Ed René Kivitz durante o culto transmitido pela Igreja Batista da Água Branca. Essa campanha foi impulsionada nas redes sociais pelas feministas evangélicas Camila Mantovani e Rachel Daniel, e trazia informações importantes para conciliar a fé e a prevenção.
O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs também lançou notas e informes às igrejas na campanha de prevenção à Covid-19. Outra campanha importante ocorreu no dia 5 de abril, contrapondo o jejum convocado por Bolsonaro com o apoio de pastores pentecostais e protestantes históricos. Essa campanha foi criada pelo Usina de Valores e o Instituto Vladimir Herzog, que propunha que cristãos e cristãs progressistas dissessem o significado do jejum, retomando assim a temática que pertence à fé cristã. A hashtag #OJejumQueEscolhi, que faz referência ao texto de Isaías 58, incentivou cristãos e cristãs de diversas denominações a manifestarem sua fé e luta baseadas na justiça e igualdade. Outra iniciativa muito importante nessa conjuntura foi a do coletivo Bereia. Formado por jornalistas evangélicos, o coletivo tem apurado todas as notícias de conteúdo duvidoso relacionadas ao governo federal e às lideranças cristãs com mandato político.
Provocados pelas ações desastrosas do governo Bolsonaro frente à pandemia, 35 organizações e movimentos evangélicos e centenas de fiéis de diversas denominações cobram respostas do governo federal frente à tragédia que está em curso, por meio do Manifesto com um nome bastante incisivo: “O governante sem discernimento aumenta as opressões – Um clamor de fé pelo Brasil”. O manifesto também traz a necessidade das igrejas garantirem o isolamento, mantendo os cultos presenciais suspensos e que a igreja só abra suas portas para as ações de solidariedade. “Nosso compromisso cotidiano em ações solidárias de apoio ao atendimento de necessidades específicas de pessoas e famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade nesse contexto de grave crise. A fé, por si só, se não for acompanhada de obras, está morta”.
Ações de solidariedade: Igrejas e Movimentos Populares
As ações de solidariedade que já estavam em curso foram fortalecidas e aprofundadas nesse período de pandemia – apesar de toda a dificuldade de manutenção de um trabalho de base em tempos de necessário isolamento social – e têm se tornado também espaços possíveis de formação e de reflexão junto à classe trabalhadora. O exemplo que Alana nos traz referente ao trabalho realizado na periferia de Maceió, é muito ilustrativo das potencialidades que a solidariedade encontra de reversão de narrativas, tão enraizadas em nossa sociedade. “Temos tido mutirões de distribuição de alimentos, e no dia 17 de abril, a gente recebeu uma doação de 5 toneladas de alimentos do MST (…) atendemos em torno de 800 famílias e foi um processo muito interessante, porque a gente contou com ajuda das pessoas da própria comunidade para organizar esse mutirão (…), queríamos aproveitar essa ação de solidariedade também como processo formativo, então, uma alternativa nossa foi convidar as pessoas da vizinhança que já nos conhecem para ajudar nesse processo de organização e distribuição de doações, coisa que muita gente não tinha experienciado nessa dimensão. Tinha várias visões distorcidas sobre o MST, aí chega o MST levando alimentos para a população que precisa demais. Descobrimos um potencial político e organizativo muito grande nessas pessoas da comunidade que lideraram o processo e nos ajudaram. Terminamos esse dia com um saldo muito positivo, não só porque muitas pessoas foram alimentadas, mas porque no processo eles passaram a enxergar ‘esse pessoal do MST’, como eles dizem, de uma maneira diferente”.
Parte significativa das pessoas da comunidade que participaram desse processo organizativo do mutirão e também das que receberam os alimentos é frequentadora das igrejas evangélicas da região. Se podemos afirmar que a fé não imuniza contra o vírus, também não imuniza contra o olhar crítico sobre a realidade. Josélia trabalha há anos nas bases dos movimentos sociais de luta por moradia e tem buscado dialogar principalmente com as mulheres evangélicas nos seus espaços de formação e possibilitado a reflexão política a partir da fé. Em tempos de pandemia, para além das campanhas de solidariedade e doações de alimentos, Josélia tem tentado acalmar as famílias que estão inseguras e muitas vezes se sentindo abandonadas, levando as palavras de Deus, “mas não a palavra de Deus alienada, mas a que faz a gente entender que precisamos nos cuidar (…). A fé e a inteligência andam juntas”.
As forças progressistas estão em marcha por meio da solidariedade e da batalha das ideias, presencialmente ou não. As fissuras nos discursos fundamentalistas religiosos, evidenciados nas ações contra a pandemia, criaram possibilidades para rupturas de uma espiritualidade conservadora. Nesse contexto, tornam-se cada vez mais férteis as disputas, no campo religioso, a partir dessas fissuras com os diversos setores de nossa classe. Os evangélicos, principalmente os neopentecostais, compõem parte significativa dos moradores das periferias das cidades, alvo principal do vírus em nosso país. É necessário reforçarmos que sem o diálogo com esse setor da sociedade não avançaremos de fato para uma transformação da realidade que vivemos. Que possamos mais do que nunca nos inspirarmos:
(…)Não importa que doa: é tempo de avançar de mão dada com quem vai no mesmo rumo,mesmo que longe ainda esteja de aprender a conjugar o verbo amar.
É tempo sobretudo de deixar de ser apenas a solitária vanguarda de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro. (Dura no peito, arde a límpida verdade dos nossos erros.) Se trata de abrir o rumo.
Os que virão, serão povo, e saber serão, lutando.
Para os que virão – Thiago de Melo
Referências
CARDOSO, Nancy; TOSTES, Angelica. “Ideologia de Gênero” ou do Medo das Pequenas Diferenças & algum homoerotismo, 2018. Disponível em <https://www.academia.edu/42454842/_Ideologia_de_G%C3%AAnero_ou_do_Medo_das_Pequenas_Diferen%C3%A7as_and_algum_homoerotismo> Acesso em < 01 de jun de 2020 >
CARDOSO, Nancy. Teologia da mulher. Revista Encontros Teológicos, v. 30, n. 1, 2015. Cunha, Magali, et al. “Discurso religioso, hegemonia pentecostal e mídia no Brasil: a presença televisiva do Pastor RR Soares – um estudo de caso.” R e v i s t a C a m i n h a n d o v. 13, n . 21, p . 87 – 96, j a n – m a i 2 0 0 8 ____________. Três coisas que é preciso saber para se falar dos evangélicos no Brasil, 2020. Carta Capital: Diálogos da Fé. Disponível em < https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/tres-coisas-que-e-preciso-saber-para-se-falar-dos-evangelicos-no-brasil/ > Acesso em <29 de mai de 2020 > ________. Religião e Política: Uma visão protestante. In TOSTES, Angelica; RIBEIRO, Claudio. Religiões e Intervenção Política: Múltiplos Olhares. São Paulo: Ed. Recriar, 2020.
FERNANDES, Marco. Psicoterapia Popular do Espírito Santo: hipóteses sobre o sucesso pentecostal na periferia de metrópolis periféricas. Margem à Esquerda 29. Boitempo Editorial, 2017.
JUNG, Mo Sung. Sacrifícios e certezas num mundo de incertezas: neoliberalismo e milenarismo. In CRUZ, Eduardo R.; DA COSTA BRITO, Ênio José; TENÓRIO, Waldecy. Milenarismos e messianismos ontem e hoje. Edições Loyola, 2001.
KIFER, Camila. Jornalistas evangélicos criam site para checagem de notícias sobre lideranças cristãs, 2020, Itatiaia.Disponível em https://www.itatiaia.com.br/noticia/jornalista-evangelicos-criam-site-para-checag1
PACHECO, Ronilso. Quem são os evangélicos calvinistas que avançam silenciosamente no governo Bolsonaro, 2020, Intercept. Disponível em <https://theintercept.com/2020/02/04/evangelicos-calvinistas-bolsonaro/> Acesso em <01 de jun de 2020>
PARREIRAS, Carolina; MACEDO, Renata. Desigualdades digitais e educação: breves inquietações pandêmicas. Boletim N. 36 | Cientistas Sociais e o Coronavírus, 2020. Disponível em <http://www.anpocs.com/index.php/ciencias-sociais/destaques/2753-publicacoes/boletim-cientistas-sociais/2350-boletim-n-36 > Acesso em < 29 de mai de 2020>
VILHENA, Valéria Cristina. Uma igreja sem voz: análise de gênero da violência doméstica entre mulheres evangélicas. Fonte Editorial Ltda., 2011.
As influências do líder religioso mais poderoso do país durante a pandemia do novo Coronavírus
Na sexta-feira, 12 de junho, jornais de todo o país surpreenderam fiéis e seguidores do Bispo Edir Macedo, após a divulgação de uma nota oficial anunciando a cura do líder e fundador da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) do novo Coronavírus (Covid-19).
Segundo a nota, após o diagnóstico positivo, ele teria sido internado na segunda-feira, 08 de junho, no Hospital Moriah, em São Paulo.
Portador de doenças crônicas como diabetes e hipertensão, o bispo de 75 anos faz parte do grupo de risco, tornando-se mais suscetível a complicações.
Durante a hospitalização, o líder religioso teria sido tratado com um coquetel de medicamentos que incluía a cloroquina.
“Tomei todos os medicamentos indicados pelos médicos, entre eles a hidroxicloroquina, e estou bem“, afirmou Macedo.
De acordo com a equipe médica coordenada pelo cardiologista dr. Leandro Echenique e o urologista Dr. Ricardo Teixeira, Edir Macedo respondeu muito bem ao tratamento.
“Ele evoluiu sem intercorrências, apresentou uma ótima evolução clínica e se recuperou totalmente“, disse o cardiologista Leandro Echenique.
Edir Macedo Bezerra recebeu alta médica na sexta-feira, 12 de junho, após passar cinco dias internado.
Repercussão
A notícia de que Macedo foi contaminado pela Covid-19 começou a circular na noite de quinta- feira (11). De acordo com o portal da Revista Fórum, ao serem questionados, superiores da Record negavam a informação.
Todavia, o jornalista Erlan Bastos, do Portal Meio Norte, deu a notícia com exclusividade e adendos. Segundo o jornalista, o religioso estaria tentando manter sua internação totalmente em sigilo, usando o pseudônimo Josué, para não ser reconhecido nem exposto pela imprensa.
Com a ampla divulgação da internação e cura de Edir Macedo, vídeos e questionamentos rondam as redes sociais sobre a veracidade do caso.
Em resposta, o Bereia entrou em contato com a assessoria de comunicação do hospital solicitando uma nota sobre a internação do paciente. Segundo a assessoria, “o Hospital segue o pedido de privacidade dos pacientes. E como o Sr. Edir já teve alta, não temos como dar nenhuma informação, apenas que passou pelo Hospital e teve alta.”
Devocional é mantido durante internação
Observamos que, ao longo da semana de internação, as mensagens diárias de exposição bíblica feitas pelo bispo e transmitida através de suas redes sociais foram gravadas em um ambiente distinto do habitual. Aparentemente, o cenário atual mostrava a imagem de um biombo como plano de fundo. O que difere dos espaços anteriores com paisagens e um requintado escritório com fotos da família Macedo.
No primeiro vídeo, datado no dia 8 de Junho, supostamente o primeiro dia de sua internação, o bispo aparece em uma imagem desfocada e visivelmente desconfortável, se inclinando sobre a câmera para enviar a mensagem bíblica com o tema “aflição”, citando o Salmos 119:71:
“Foi-me bom ter sido afligido, para que aprendesse os teus estatutos “
Nos dias subsequentes, o cenário continuou o mesmo até sábado, 13 de junho. No domingo (14), em um cenário com quadros, Bispo Macedo agradeceu o carinho e revelou não ter sofrido muitas alterações durante a semana de internação, exceto “cansaço e falta de apetite”.
“Olá, meus amigos. Muito bom dia. Deus abençoe a todos vocês, como tem abençoado a mim. Eu gostaria de agradecer o carinho imenso, o amor e a atenção de todos aqueles que nos têm querido bem. Então, nós só esperamos que Deus possa recompensar a cada um de vocês, de acordo com o que Ele tem nos recompensado. Eu gostaria que você soubesse, minha amiga, meu amigo, que durante esses dias, essa semana toda, praticamente em convalescença. Quer dizer, recuperando, mas tomando os devidos cuidados, as devidas precauções, por orientações médicas. Você sabe, a gente já não é mais criança, nós temos já 75 anos, então essa idade já é um pouco delicada. Mas Deus tem nos guardado. Guardou a Ester, guardou as meninas, guardou os nossos colegas, Graças a Deus.
“O que tenho aprendido com essa situação que nós vivenciamos é que tudo coopera para o bem daqueles que amam a Deus”, disse sorrindo.
E continuou: “A gente fica irritado, a gente come menos, não quer comer nada. Eu não senti grandes ‘transformações’, só falta de apetite e um pouco de cansaço, por conta da situação do Coronavírus. Mas o que eu tenho pra dizer pra vocês é isso: Deus é grande, Graças a Deus. E uma das coisas que mais tem acentuado pra mim são os detalhes que Deus nos dá. Você não tem ideia de como, eu sempre valorizei muito, muito mesmo, o sol. Mas nunca valorizei tanto quanto nos últimos dias. O sol à pino. É como se Deus estivesse sorrindo pra mim, muito legal, mas muito legal mesmo”, disse o Bispo sorrindo e continuou “Ele me abraçando, me protegendo, Ele me dando o seu calor e me dizendo: Eu estou aí com você, Graças a Deus.”
“Então, minha amiga, meu amigo, fique firme porque o sol da justiça nunca, jamais, em tempo algum, vai enfraquecer. Ele sempre estará presente. Observe o sol. Hoje não tá um sol legal, hoje tá um tempo ruinzinho aqui em São Paulo, um ventinho frio, mas o sol vai sair, se não sair hoje, logo mais sai amanhã ou logo mais, mas ele vai se fazer presente, como se fosse Deus na nossa vida, brilhando pra gente, muito legal. Que Deus te abençoe, minha amiga, meu amigo, fique firme, você que tá passando nesse momento um tempo difícil, fique firme, porque Ele é com você, tanto quanto é comigo. A palavra dele não falha. Deus abençoe e tenha um excelente dia, no nome de Jesus”, concluiu.
Posicionamento de Edir Macedo sobre a Covid-19
Antes mesmo das autoridades e órgãos de saúde se posicionarem sobre a pandemia do novo Coronavírus, a IURD publicava em seus canais midiáticos, textos e vídeos com chamadas apocalípticas sobre o “fim dos tempos” em relação ao Coronavírus na China.
No início da pandemia,o bispo Edir Macedo publicou um vídeo em 15 de março, no qual minimizava a gravidade do novo Coronavírus e afirmava que a pandemia era uma “tática de Satanás”, uma estratégia da mídia “para apavorar as populações e nações”. Para reforçar seus argumentos, o bispo compartilhou a gravação de um vídeo do médico patologista Beny Schmidt, que diz que o vírus não é patogênico nem letal. Essas informações, no entanto, vão contra evidências científicas e dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) que, até aquele momento, apontava que 3,9% dos casos já registrados da doença resultavam em morte.
“Meu amigo e minha amiga, não se preocupe com o Coronavírus. Porque essa é a tática, ou mais uma tática, de Satanás. Satanás trabalha com o medo, o pavor. Trabalha com a dúvida. E quando as pessoas ficam apavoradas, com medo, em dúvida, as pessoas ficam fracas, débeis e suscetíveis. Qualquer ventinho que tiver é uma pneumonia para elas”, afirmava Macedo.
Após a polêmica em torno do vídeo e a exclusão feita pelo médico que o apoiou, a gravação foi retirada da plataforma,
Posicionamento da IURD sobre a Covid-19
Em 17 de março, após o polêmico vídeo envolvendo o bispo Edir Macedo, Renato Cardoso, responsável pela igreja em todo o mundo, desde 2017, genro de Edir Macedo e apresentador do programa The Love School, gravou um vídeo declarando o posicionamento da Igreja Universal sobre o novo Coronavírus.
Em um dos trechos (18’10”), Renato disse que “o pior vírus é o medo que gera o pânico e problemas maiores”.
O porta-voz da Igreja declarou a aliança entre a Igreja Universal e o governo Bolsonaro (11’20”). Posicionando-se de tal forma que, suas palavras eram similares ao discurso de ministros que estavam na linha de frente:
“Primeiramente, quero falar da Igreja como aliada do governo. A igreja como aliada das autoridades (…) vocês devem ver a Igreja como aliada da sociedade às causas do governo. Eu sei que o governo está preocupado. O Brasil e o mundo estão à beira de um colapso comercial, parcialmente por causa deste pânico que está se alastrando e o governo quer prevenir esse colapso comercial ao mesmo tempo que, quer prevenir esse colapso do vírus. Então, é um equilíbrio difícil a ser alcançado. É como uma balança. Como deter a contaminação do virus e não permitir que o país vá à falência?Não é um equilíbrio fácil. Aí que a Igreja pode ajudar. Sabe porquê? Porque o povo da Igreja ouve a voz do pastor. O povo da igreja ouve a voz do seu líder religioso. Seja o padre, seja o pastor, seja o monge, seja quem for, eles ouvem a voz dos seus líderes. Então, vocês precisam pensar se é inteligente cortar o contato dos líderes religiosos com os seus membros”.
Na época, fazendo coro com o governo e líderes neopentecostais, os principais pastores midiáticos, próximos da bancada evangélica, se opuseram ao fechamento das igrejas e negavam os riscos do Coronavírus.
Em 24 de março, o membro da família Macedo, Bispo Renato Cardoso, voltou a declarar o posicionamento da Igreja, mas agora com um tom apocalíptico.
Em nota, a Igreja Universal disse que serviços religiosos foram considerados essenciais por decreto presidencial e que está tomando medidas de “cautela sanitária”, como oferecer álcool em gel e pedir para que os fiéis sentem longe uns dos outros nos locais onde os cultos estão sendo realizados — suspensos nos Estados que os proibiram.
“Nas localidades onde está proibida a realização de cultos em templos religiosos, a Universal está aberta apenas para orações individuais e auxílio espiritual, e observando todas as cautelas sanitárias”, diz a igreja.
Quem “inventou” o Coronavírus?
Logo no início de abril, em uma de suas palestras para casais, Cardoso brincou com a esposa no púlpito do Templo de Salomão dizendo ter “descoberto quem inventou o Coronavírus“, para a surpresa e constrangimento da esposa:
“Só pode ter sido uma mulher que inventou o Coronavírus”, disse o bispo rindo.
“Só pode ter sido uma mulher, porque conseguiram cancelar o futebol, fechar os bares e manter os maridos em casa, só pode ter sido uma mulher que inventou”, disse rindo, enquanto a esposa e herdeira de Macedo, Cristiane Cardoso, ria em silêncio.
Segundo o líder, “o bom humor é a válvula de escape para os estresses que inevitavelmente vem com o relacionamento. Então, decida não se deixar levar pelas más notícias e mantenha o bom humor”.
Hospital Moriah
Braço comercial da operadora de saúde da IURD
Segundo a biografia “O reino: A história de Edir Macedo e uma radiografia da Igreja Universal”, escrita por Gilberto Nascimento, o bispo transcendeu “o cuidado com as almas, passando a se preocupar com a salvação dos corpos”. Isso porque, o empresário passou a oferecer serviços médicos hospitalares, “fazendo disso uma nova fonte de renda e economia”.
“A Universal controla a operadora de plano de saúde “Life Empresarial Saúde”. Funcionários da Record, bispos e pastores usam o convênio médico”. Segundo o livro, “o desejo de Macedo é transformar a Life numa gigante do setor”.
“No mercado desde 2002, a empresa, dirigida pela médica e fiel da Universal Eunice Harue Higuchi, possuía 31,6 mil beneficiários. A operadora pretende contar com uma rede nacional de hospitais, sendo o primeiro deles inaugurado em São Paulo, em 2015, na antiga sede da Record, em Moema, próximo do aeroporto de Congonhas”.
Seguindo a estratégia de aproximar o Hospital de elementos da Universal e símbolos do judaísmo, Macedo deu o nome do hospital de “Moriah”, em alusão a colina rochosa onde o Rei Salomão construiu o templo para Deus e Abraão ofereceu o seu filho, Isaque, como sacrifício. Além de pontuar como seus valores o atendimento humanizado com enfoque no “amor ao próximo”, utilizando do versículo bíblico como orientação de atendimento.
Um ano antes, em 2014, foi inaugurado “O Templo de Salomão, considerado o segundo maior templo da América Latina.
Os investimentos na construção do Moriah totalizaram R$105 milhões de reais. A meta é faturar R$500 milhões ao ano. Inicialmente com 52 leitos, 31 deles são eletivos, 5 salas cirúrgicas, sendo uma delas híbrida; 11 de UTI e 10 leitos no pronto atendimento, além de 6 salas para consultas eletivas. Com equipamentos de última geração, o principal foco de atuação são as cirurgias de alta complexidade nas áreas de neurologia, cardiologia e ortopedia. Além do tratamento especializado em urologia e próstata.
Com capacidade para 5.000 atendimentos e 450 cirurgias por mês, o Hospital segue os padrões internacionais de tecnologia e segurança, sendo considerado um dos mais modernos do país.
Destaca-se o projeto arquitetônico do local, revestido por uma abóbada em vidro, que lembra arranha-céus do Emirados Árabes.
O Hospital-Hotel é um dos primeiros no Brasil a oferecer serviços “conceito 5 estrelas”, exclusivo para pacientes do exterior em busca de tratamento no Brasil. Oferecido a empresários, políticos, médicos e líderes influentes de países africanos.
Em denúncia feita por um ex-pastor da Universal, o Hospital Moriah junto a outros hospitais de alta complexidade, como Albert Einstein e Sírio Libanês, teria isenção tributária caso realizasse atendimento filantrópico para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). Todavia, o Hospital teria se recusado a atender pessoas “pobres”. O pastor relembra que era cobrado o pagamento de R$ 100 reais por pastor, porém, funcionários da igreja, como obreiros e pastores não podiam utilizar os serviços prestados pelo Hospital.
De acordo com o manual de contratação, a fé e a espiritualidade é um dos principais requisitos para a admissão. Logo, a maioria dos funcionários são fiéis da Igreja Universal. Além de frequentemente realizarem no complexo hospitalar congressos internacionais, palestras e estudos sobre medicina que envolvem a fé, como o evento “Jornada de Fé e Ciência” (AMEC) que reuniu profissionais de saúde cristãos.
Professores e cientistas renomados, das mais importantes universidades brasileiras realizam procedimentos cirúrgicos, aulas e palestras no Hospital Moriah.
Ao todo, o grupo Life Empresarial Saúde também conta com uma unidade de atendimento ambulatorial com diversas especialidades e uma clínica especializada no tratamento de dores em São Paulo.
Em fevereiro deste ano, a empresa Teixeira Duarte Engenharia e Construções foi responsável pela obra de expansão do Hospital Moriah, em São Paulo, e entregou recentemente o centro cirúrgico totalmente reformado e modernizado.
Desde o início da pandemia, o hospital é considerado referência na prevenção do Coronavírus, com alas exclusivas para pacientes infectados.
Em agosto de 2009, com a suspeita de ser uma “empresa laranja” por ser associada ao Grupo Universal, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) – do Ministério Público de São Paulo – pediu à Justiça a quebra dos sigilos fiscal e bancário de todas as empresas e pessoas ligadas ao grupo Universal citadas em uma investigação da Receita estadual paulista, investigando assim, as empresas do religioso mais rico do país, incluindo a Life Empresarial Saúde.
Até o momento, a Life Empresarial Saúde soma quase 200 processos judiciais, muitos deles, oriundos de funcionários da Record TV que alegam práticas abusivas da emissora sobre a obrigatoriedade do pagamento do convênio de saúde suplementar.
“Durante o ato de homologação das demissões na sede do Sindicato dos Trabalhadores em Rádio, TV, e Publicidade da Bahia (Sinterp/BA), a coordenação tomou conhecimento de mecanismos de desprestigio e constrangimento aos funcionários, entre as quais: inabilidade do setor de Recursos Humanos; e preços abusivos do plano de saúde “Life Empresarial”que pertence ao próprio grupo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD).”
Em contato com a assessoria de comunicação do hospital, o Bereia confirmou os dados citados acima, incluindo a internação do líder espiritual:
Sim, ele esteve internado no Moriah. O nome Moriah é apenas uma menção ao Monte Moriah, em Israel. O Hospital Moriah faz parte do Grupo Life Empresarial, que faz parte da Igreja Universal, assim como a Rede Record.
A cloroquina, Edir Macedo e Jair Bolsonaro
Macedo foi tratado com um coquetel de medicamentos que incluía a cloroquina — como defende o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o novo protocolo do Ministério da Saúde — e está “completamente recuperado da doença”.
Neste contexto, a figura de um líder religioso de destaque no Brasil faria toda a diferença na divulgação do medicamento. Dono da segunda maior emissora do país, a IURD tem mais de oito milhões de fiéis em mais de 180 países.
Logo, é perceptível que os posicionamentos do bispo Edir Macedo e da IURD sobre a Covid-19 e o uso da cloroquina estão alinhados com as opiniões de Jair Bolsonaro. No início da quarentena, no dia 21 de março, Bolsonaro anunciou em uma de suas lives: “Decidimos que os laboratórios químicos e farmacêuticos do Exército devem ampliar imediatamente a produção desse medicamento [cloroquina]”.
Em 23 de março, o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFEx) começou a produzir a cloroquina em larga escala. Segundo a Revista Veja, a média da produção do laboratório do Exército era em torno de 200 e 250 mil comprimidos a cada dois anos, já que ela era voltada ao consumo interno e para combater a malária. A nova meta de produção, em meio à pandemia, é o de 1 milhão de comprimidos por semana.
Em 25 de Março, o governo federal zerou o imposto de importação da cloroquina através da resolução nº 22/2020. Em sua conta no Twitter, o presidente explicou que a medida visa facilitar o combate ao novo coronavirus (Covid-19) e que os medicamentos são para uso exclusivo em hospitais e para pacientes em estado crítico”
No dia 31 de março, ele repetiu a promessa em rede nacional, dizendo ter ordenado “a fabricação de 1 milhão de comprimidos em 12 dias, de cloroquina, pelo Exército”,
No mesmo dia, em sua conta no Facebook, o presidente anunciou que o reajuste do valor dos medicamentos seria adiado por dois meses, em razão da pandemia do novo coronavírus, após acordo com a indústria farmacêutica.
De acordo com a Revista Carta Capital “antes de demitir Luiz Henrique Mandetta, o presidente Bolsonaro conseguiu dele um protocolo de prescrição da droga para pacientes do SUS em estado grave. Em 7 de abril, a autorização se estendeu a todos os pacientes internados. Mandetta caiu dez dias depois.”
Em uma matéria realizada no dia 17 de Abril, o Hospital Moriah, usado como fonte frequente nas pautas do jornalismo da Record TV, revelou a cura do Coronavírus em pacientes que usaram a hidroxocloroquina. Mesmo sem estudos comprobatórios sobre sua eficácia, o medicamento é administrado no hospital de Edir Macedo, em pacientes com Covid-19 em “casos leves”. No dia, o Jornal da Record teve uma média de 9,9 pontos na audiência.
No mesmo dia, a agência Lupa desmentiu várias informações falsas sobre o medicamento.
No Brasil, há 53 estudos registrados na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) que analisam os efeitos da cloroquina a retrovirais, além de outras tecnologias como plasma sanguíneo e células tronco, em pacientes com Coronavírus.
Duas empresas privadas fabricam a cloroquina no Brasil: a EMS produz a versão genérica — a patente da cloroquina venceu há décadas. O grande desafio da EMS, que foi pioneira no setor de remédios genéricos no Brasil, é alcançar isoladamente a liderança no segmento que ajudou a desenvolver no País. Em uma briga de gigantes, a também brasileira Medley, comprada pelo grupo francês Sanofi-Aventis por R$ 1,5 bilhão, em abril de 2009, lidera nessa área com 32,67% de participação.
Após várias declarações do uso da cloroquina pelo presidente norte-americano, apurou-se que Trump tem uma pequena participação financeira na Sanofi, empresa francesa que é uma das maiores fabricantes do medicamento. Além disso, uma das principais acionistas da Sanofi é uma empresa administrada por Ken Fisher, grande doador do Partido Republicano.
A outra empresa brasileira é a Apsen farmacêutica, com Renato Spallicci no comando, um ferrenho aliado de Jair Bolsonaro. Segundo a revista Exame, um plano emergencial foi feito para triplicar a produção do Reuquinol, com turnos extras nos fins de semana, mesmo sem comprovação de eficácia contra o Covid-19.
Ou seja, o estímulo ao consumo da cloroquina decorre da produção em massa do produto, feita por empresas aliadas ao governo e dos militares, através dos laboratórios das Forças Armadas.
“à medida que a evidência científica de que o uso de hidroxicloroquina (HCQ), com ou sem o antibiótico azitromicina (AZ), no combate à COVID-19 em pacientes hospitalizados é, na melhor das hipóteses, inútil – quando não perigoso –, os apóstolos fervorosos da cura mágica abraçam, com gosto, uma manobra clássica do repertório das pseudociências: mudam de alegação, adotando uma que confunde com mais facilidade. No caso, a de que a combinação HCQ+AZ funciona sim, mas requer uso precoce, “bem no início dos sintomas”, antes que se faça qualquer exame diagnóstico.”
No dia 1º de junho, Jair Bolsonaro autorizou o reajuste nos preços dos medicamentos em até 5,2%. O aval foi publicado em edição extra do “Diário Oficial da União”
Segundo o jornalista Jamil Chade,”nas últimas semanas, o governo brasileiro chegou a comemorar a decisão da Casa Branca de destinar ao Brasil duas milhões de doses do remédio, enquanto o assessor de Jair Bolsonaro, Arthur Weintraub, sugeriu que “um tribunal de Nuremberg fosse estabelecido contra as pessoas que se recusarem a receitar o remédio”.
Curiosamente, no início do ano, Nelson Mussolini, presidente executivo do Sindicato da Indústria Farmacêutica do Estado de São Paulo (Sindusfarma) disse:
Nosso setor é o último a entrar na crise e o primeiro a sair dela”
Com o avanço da descoberta dos corticoides, na última semana, os Estados Unidos colocou fim aos estudos com hidroxicloroquina. De acordo com o Instituto Nacional de Saúde do país, o medicamento, elogiado por Donald Trump, não traz benefícios ao tratamento.
No Brasil, o cenário é outro, com a desistência internacional da cloroquina, a corrida agora é contra o prazo de validade, já que se acumulam caixas e mais caixas de produção do remédio. Sob a ajuda de Macedo e o pico da pandemia no país, médicos relatam que estão sendo ameaçados por não receitarem cloroquina.
A cura espiritual versus a cura pela cloroquina
A notícia da cura de Edir Macedo repercutiu na mídia nacional e internacional de modo que, em resposta ao COVID-19, o milagre seria a cloroquina.
A IURD está presente em 23 países africanos e a postura de Macedo foi questionada no artigo “E a água” escrito no jornal africano “O Pais“, ao ironizarem onde está o poder da “fogueira santa, a água que cura”.
Segundo uma pesquisa recente do instituto Datafolha, os evangélicos continuam sendo um dos grupos em que Bolsonaro tem aprovação. E, embora a maioria dos evangélicos no Brasil seja a favor das medidas preventivas, o índice dos que são contra o isolamento e acham que a população deve sair para trabalhar (de 44%) é maior entre esses religiosos do que na população em geral (37%).
Em entrevista a BBC, o sociólogo Clemir Fernandes, do Instituto de Estudos da Religião (Iser), diz que os fiéis usam notícias cientificas para acreditar na eficácia do remédio:
“Muitas das pessoas que defendem o uso da cloroquina (remédio que está sendo testado e ainda não tem eficácia comprovada) compartilham pesquisas que foram feitas com a substância, por exemplo”, diz ele. “Se fosse uma descrença total por causa da religião, isso não aconteceria. Ou seja, é problema muito mais de posicionamento político e ideológico do que a dificuldade em encaixar a ciência com a espiritualidade.”
Portanto, Bereia conclui que, em meio à uma tríade de apoiador contumaz do governo, o empresário e líder espiritual, Bispo Macedo encabeça o papel daqueles que apoiam as políticas públicas com interesses, como citado no texto “Quando líderes religiosos barganham no mercado político”, de Magali Cunha:
“Em nome do negócio político, os olhos dos religiosos se fecham às injustiças do governo e às necessidades da população enquanto os valores da tradição cristã são relativizados.“
Ainda segundo a reportagem feita pela Pública, a aliança de Edir Macedo com Bolsonaro envolve a presidência da Câmara, cargos no governo e perdão de dívidas às igrejas.
Mas o que vemos é que vai além. O poder da cura não está mais em Cristo, mas na cloroquina. Como empresário que improvisa soluções “paliativas”, o poder está na reabertura das igrejas e no consumo da fé e, por último, o Coronavírus já não é mais uma “tática satânica”, ela é apenas uma gripe que dura uma semana e já tem medicamento para curá-la.
***
Referências de checagem:
Nota – IURD – Edir Macedo vence a Covid-19 e rece alta médica em São Paulo. Disponível em: https://www.universal.org/noticias/post/bispo-edir-macedo-vence-a-covid-19-e-recebe-alta-medica-em-sao-paulo
UOL – Edir Macedo e Covid-19 https://www.tvefamosos.uol.com.br/noticias/redacao/2020/06/12/edir-macedo-covid-19.amp.htm
Instagram – Imagem do dr. responsável por Edir Macedo, Leandro Echenique