Os avanços da ultradireita religiosa e as ameaças à democracia na América Latina e no Caribe foram o foco dos debates do Seminário Internacional Creio e Defendo, realizado na cidade do Rio de Janeiro. O evento reuniu organizações da sociedade civil, ativistas e lideranças religiosas de diversos países do continente latino-americano e do Caribe. Organizado pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic) e pela Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, com apoio da organização sueca Diakonia e da Embaixada da Suécia, o seminário, que já reuniu participantes no Paraguai e na Colômbia, teve a terceira edição no Brasil.
O evento contou com mesas de debate sobre a conjuntura do avanço da extrema direita na região, antifeminismo, masculinismo cristão e impactos das transformações culturais impulsionadas por grupos conservadores. Participaram representantes de entidades como Oxfam Brasil, Rede de Mulheres Negras, Movimento Negro Evangélico, Sementes da Democracia, Instituto de Estudos da Religião (ISER) e o Coletivo Bereia, entre outras.
Fotos: Divulgação
Além dos dois dias de painéis e trabalhos em grupo, o seminário foi precedido por um laboratório sobre narrativas que reuniu comunicadores de diferentes países para discutir estratégias de produção de conteúdo que fortaleçam lutas sociais e culturais na América Latina e no Caribe.
Durante os debates, participantes ressaltaram a necessidade de romper estereótipos e ampliar o diálogo público. “Importante dizer aqui que não é verdade que todas as pessoas cristãs são contra os direitos humanos e as pessoas militantes dos movimentos sociais não são crentes”, destacou a militante pela igualdade de gênero no Paraguai Clyde Souto. Já o integrante movimento Sentinelas pela Dignificação do Estado Juan Terte chamou atenção para a urgência de popularizar a defesa da separação entre religião e política. “Promover a laicidade para proteger o Estado. Apesar de discutirmos muito na academia, ainda não tornamos o assunto da laicidade popular”, afirmou.
O Bereia participou do encontro com a fala da pesquisadora e editora-geral Magali Cunha, que analisou o papel dos fundamentalismos religiosos no Brasil e sua articulação com extremismos no mundo digital. “Foi desenvolvido um pânico moral em torno da ‘defesa da família’ e dos filhos das famílias, como núcleos da sociedade que estariam em risco, por conta da agenda de igualdade de direitos sexuais. Mensagens alarmistas apresentam esta agenda como de destruição e de ameaça à sociedade com base na noção de que, se a família e as crianças estão em risco, toda a sociedade está em risco. Para isso, movimentos fundamentalistas articulam amplo recurso às mídias em todos os formatos, tradicionais e digitais, com farto uso de desinformação, em especial de fake news, para alimentação do pânico moral”, afirmou.
Magali Cunha durante evento Creio e Defendo. Foto: Divulgação
Outro ponto de destaque foi a apresentação do relatório da Oxfam América Latina e Caribe, feito pela especialista em Políticas Públicas Denia Arteaga García, que apontou a forte contraofensiva de grupos antidireitos de gênero, articulados entre elites econômicas, setores políticos conservadores e fundamentalismos religiosos. Segundo García, a região, marcada por extrema desigualdade social, enfrenta a disseminação de narrativas simplificadas que instrumentalizam a chamada “ideologia de gênero” como inimigo comum. Essas redes, afirmou, sustentam-se no uso massivo da desinformação e de discursos de ódio para criminalizar movimentos feministas, LGBTIQ+ e de direitos humanos, o que representa hoje um dos maiores desafios à democracia e à justiça social no continente.
Os avanços da ultradireita religiosa e as ameças a democracia nas Américas e Europa. Foto: Luis Henrique Vieira/Bereia
A terceira edição do Seminário Creio e Defendo terminou com a divulgação da Carta do Rio de Janeiro, documento final que reafirma a defesa dos direitos humanos, da democracia e da diversidade de espiritualidades e existências. O texto denuncia a instrumentalização política das religiões e os retrocessos impostos a mulheres, povos originários, população negra e LGBTQIAP+, além de expressar solidariedade ao povo palestino, ameaçado de existência.
No documento, os participantes assumem o compromisso de articular alianças regionais e fortalecer processos democráticos, a laicidade do Estado e a justiça social em diferentes dimensões. “Convocamos a reacender nossa esperança enquanto coletivo e organizar nossas resistências locais e regionais para realizar ações concretas em prol dos direitos humanos na América Latina e Caribe”, afirma a carta.
Nós, pessoas de distintas crenças e organizações da sociedade civil de diferentes países da América Latina e Caribe, reunidas na cidade do Rio de Janeiro no Terceiro Seminário Internacional Creio e Defendo, afirmamos a defesa radical dos direitos humanos, da democracia e das concepções plurais e vivas da fé, das espiritualidades e das existências.
Diante dos avanços da extrema-direita em nossa região e no mundo, nos posicionamos contra a instrumentalização política das religiões, as ameaças à democracia e os retrocessos de direitos das populações de mulheres, originárias, negras, LGBTQIAP+. E nos solidarizamos com o povo palestino e demais povos que vivem o sofrimento histórico de governos autoritários.
Portanto, assumimos o compromisso de consolidar nossa aliança e formar estratégias para fortalecer os processos democráticos, a laicidade do Estado, a mudanca cultural para a liberdade e a justiça social, econômica, de gênero, étnico-racial e ambiental.
Como resposta a esses desafios, convocamos a reacender nossa esperança enquanto coletivo e organizar nossas resistências locais e regionais para realizar ações concretas em prol dos direitos humanos na América Latina e Caribe.
Inspiradas em que “cambia el modo de pensar, cambia todo en este mundo” celebramos nossos caminhos de luta e afirmamos as diversidades e a fé na alegria para seguirmos unidas, vigilantes e sensíveis rumo a um futuro e que todas as pessoas vivam com respeito e dignidade.
Vigílias pela Terra, uma mobilização inter-religiosa promovida pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), em parceria com comunidades e organizações da sociedade civil, entre elas o Bereia, teve lugar no último sábado, 30 de agosto, no Largo da Candelária, no centro do Rio de Janeiro., recebeu o evento. A iniciativa tem como objetivo fortalecer ações no enfrentamento à crise climática a partir da união de diferentes tradições de fé, movimentos sociais, coletivos e artistas.
A programação começou às 15h e contou com apresentações do Jongo da Serrinha, Kaê Guajajara, Xangai, Coral Guarani da Aldeia de Mata Bonita, Ana Bispo, Bela Ciavatta, Doralyce, Hugo Ojuara, Edgar Duvivier, Olivia Byington, entre outros nomes.
As Vigílias pela Terra marcam os 33 anos da primeira Vigília Inter-religiosa “Um Novo Dia para a Terra”, realizada durante a ECO-92, no Aterro do Flamengo, que reuniu cerca de 30 mil pessoas, incluindo lideranças como Dalai Lama, Dom Helder Câmara e Mãe Beata de Iemanjá.
A mobilização também foi espaço de encontros pessoais e coletivos. A evangélica Joyce Santos de Oliveira, membro da Primeira Igreja Batista de Duque de Caxias (RJ) e integrante do movimento “Nós na Criação”, destacou a riqueza do diálogo inter-religioso. “Eu estou gostando muito. Acho que é uma oportunidade única de ter contato com outras expressões de fé. Sou cristã-evangélica e aqui estou tendo contato com pessoas de outras religiões. Outras experiências religiosas, diferentes da minha, também estão com esse objetivo de lutar por justiça climática, lutar pela causa ambiental, e isso é muito importante”.
A doutoranda em teologia pela PUC-Rio e ativista climática católica Suzana Regina Moreira falou sobre o convite para participar com uma apresentação lúdica em pernas de pau no evento, ela integra a comunidade “Pernalta” do Rio de Janeiro. “Pensar em justiça climática em toda a sua perspectiva integral tem que apelar pelo lúdico. Para manter a força da luta, a gente tem que saber brincar também e criar energia diante de tanta complexidade. Foi lindo trazer colegas de diferentes coletivos de circo e ver a diversidade de pessoas brincando e se encantando. Isso ajuda a recuperar a fé na esperança, que é o que está nos faltando”, afirma a teóloga.
Imagem: Suzana Moreira durante Vigília pela Terra Rio de Janeiro. Foto: Luis Henrique Vieira/Bereia
Suzana Moreira contou ainda que sua dedicação ao tema começou há cerca de dez anos, inspirada pela Encíclica Laudato Sí, do Papa Francisco. “Transformou totalmente minha vida. Eu comecei a me dedicar à mobilização pela justiça climática muito através do movimento Laudato Si, do qual faço parte”.
Para pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil Lusmarina Campos Garcia, que também é doutora em Direito pela UFRJ e pesquisadora na mesma instituição, o evento também é um resgate histórico. “Esse evento é fundamental porque faz memória ao que realizamos em 1992, quando ajudei a organizar. Mostra que a complexidade religiosa, quando se junta, pode fazer diferença. É um testemunho de que juntos conseguimos cuidar da Terra”, ressalta.
Imagem: pastora Lusmarina com a jornalista Viviane Castanheira. Foto: Luis Henrique Vieira/Bereia
A pastora criticou a lógica de exploração que, segundo ela, distorce o próprio sentido da criação divina. “O que vemos é resultado de uma mentalidade exploratória, que se aprofunda com o sistema neoliberal. Isso é uma distorção hermenêutica da palavra de Deus. Quando não entendemos que a criação é nossa casa comum e lugar do nosso cuidado, negamos a própria criação de Deus”.
Caminho até a COP 30
O diretor adjunto do ISER, Clemir Fernandes, afirma que a vigília cumpriu com êxito seu objetivo. “E foi além, ao reunir tantas diferentes representações como católicas, evangélicas, espíritas, umbanda e candomblé, indígenas, budistas, islâmicas, judaicas, wicca, xamânicas, santo daime e mais, além de artistas diversos, todos comprometidos com a defesa ambiental na luta por justiça climática. Um público também plural, inclusive etário, desde crianças até idosos, e tudo num clima muito saudável, de fé e esperança”.
No próximo sábado, 6 de setembro, a cidade de Manaus (, AM), será a anfitriã das Vigílias pela Terra, seguida por Natal, RN (13/09), Recife, PE (11/10) e Belém, PA (13/11). O evento já passou por outras regiões do Brasil. Em abril, aconteceu na abertura do Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília (DF) e depois seguiu para Porto Alegre, RS.
Neste 2025, o Brasil receberá delegações governamentais de todo o mundo, organizações nacionais e internacionais, mídias corporativas e alternativas, redes de comunicação, ativistas e estudiosos que têm a defesa do meio ambiente no centro de suas ocupações e preocupações. Entre os dias 10 e 21 de novembro, a cidade amazônica de Belém do Pará será sede da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP 30), a maior conferência global sobre mudanças climáticas já realizada no Brasil.
O que é a COP 30?
A 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (Conferência das Partes/COP, refere ao termo em inglês Conferece of Parties), é considerado um dos principais eventos sobre o tema no mundo. Um encontro global anual, realizado desde 1995, (Berlim, Alemanha) no qual líderes mundiais, cientistas, organizações não governamentais e representantes da sociedade civil discutem ações para combater as mudanças do clima.
O encontro, organizado anualmente pela ONU, reúne representantes de quase 200 países signatários do tratado climático internacional para negociar ações de combate ao aquecimento global. A origem da COP está na assinatura da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, durante a Cúpula da Terra (ECO-92), no Rio de Janeiro, em 1992.
O número “30” se refere justamente à edição do evento, que já percorreu diferentes cidades do mundo ao longo das últimas três décadas. A escolha de Belém é considerada simbólica por colocar a Amazônia — região estratégica para o equilíbrio climático do planeta — no centro das discussões globais.
Neste momento em que o Brasil chama a atenção do mundo, no protagonismo de várias pautas políticas e econômicas, e nesta etapa da vida na Terra em que a crise climática está cada vez mais aguda, com a vida em todas as dimensões sob ameaça, a realização da COP no país ganha forte relevância. Esta é a compreensão das lideranças governamentais brasileiras, entre elas, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima Marina Silva. A ministra, que é evangélica, nascida em um seringal na Amazônia (Acre), alfabetizada na adolescência aprendeu com a vida a defender o meio ambiente e se tornou uma das personalidades mais relevantes no mundo nesta pauta.
Em entrevista ao programa Bom Dia, Ministra, da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), Marina Silva destacou a relevância da COP 30 para o país. “Nós estamos num momento crucial, que é o momento da implementação de tudo que foi decidido, debatido ao longo desses 33 anos. Nós já estamos vivendo sob os efeitos da mudança do clima, com eventos climáticos extremos no mundo inteiro. Só em função das ondas de calor, mais de 170 mil pessoas morrem por ano no mundo inteiro. Só para se ter uma ideia, quando você acrescenta secas, furacões, tufões, enchentes torrenciais, esse número é avassalador, então é uma COP muito desafiadora e num contexto complexo”, declarou a ministra.
Marina Silva ainda afirmou na entrevista que o Brasil vai liderar a COP 30 pelo exemplo. “O Brasil tem insistido muito desde 2003, quando eu fui ministra pela primeira vez, que é a decisão de liderar pelo exemplo. Hoje, a gente precisa mais do que falar, fazer”, explicou a ministra.
Buscando o fazer mais do que falar, entre as centenas de participantes dos tantos espaço de discussão e manifestação da COP 30 estarão também vozes religiosas. É fato que os impactos da crise climática são sentidos por toda a sociedade e as tradições religiosas são marcadas por teologias e práticas que dão lugar de destaque ao meio ambiente, como Criação Divina. Porém, o engajamento das tradições religiosas com a pauta ambiental ainda é marcado por aproximações, envolvimentos, indiferenças e afastamentos.
Bereia levantou as movimentações que mobilizam grupos religiosos em torno da realização da COP 30 e recuperou a memória da participação deles em eventos que antecederam esta conferência.
Vigílias pela Terra: mobilização inter-religiosa rumo à COP 30
Um exemplo concreto das articulações religiosas em torno da COP 30 é a iniciativa do projeto Fé no Clima, do Instituto de Estudos da Religião (ISER), que tem promovido as “Vigílias pela Terra” em várias capitais brasileiras ao longo de 2025. Inspirada na primeira vigília inter-religiosa realizada na ECO-92, também organizada pelo ISER, a mobilização reúne tradições religiosas diversas em defesa do planeta.
No sábado, 30 de agosto, o Largo da Candelária, no centro do Rio de Janeiro, recebe a edição carioca da vigília, com apresentações artísticas de Jongo da Serrinha, Kaê Guajajara, Xangai, Coral Guarani da Aldeia de Mata Bonita, Olivia Byington e muitos outros.
Para o diretor-adjunto do ISER Clemir Fernandes, a mobilização traz um diferencial ético e espiritual. “Mais de três décadas depois, as religiões e tradições espirituais podem aportar um despertamento ético fundamental para que tomadores de decisão sejam ousados e eficazes no cumprimento de metas para enfrentar a crise climática.”
A coordenadora de Meio Ambiente e Religião do ISER Isabel Pereira, reforça a dimensão pedagógica. “Apesar das limitações das negociações oficiais da COP, temos a oportunidade de fazer o tema chegar a mais pessoas. A mobilização popular pode ser transformadora, especialmente quando conecta os territórios e as agendas locais.”
A pastora evangélica Priscilla Ribeiro também reforça o papel de cristãos evangélicos nesse processo. Para ela, a participação é essencial para “fomentar uma cultura de pensamento crítico sobre justiça climática e ambiental”.
“Como discípulos e discípulas de Jesus, nossa missão é criar pontes para que seja possível agir em cooperação não só por políticas públicas, mas também por uma nova mentalidade, não predatória, mas propositiva, de uma convivência harmônica e respeitosa entre todos os seres da criação de Deus”, afirma Ribeiro.
Entre as lideranças presentes no evento, a ambientalista e representante dos budistas na Vigília Maíra Fernandes de Melo acredita que a ideia de trazer todas as religiões juntas para cuidar da “nossa mãe comum” faz muito sentido.
“Quando você junta a energia coletiva de tanta gente em torno de um mesmo propósito, a força que isso tem é muito maior do que cada um mobilizado no seu próprio canto. Esse encontro é fundamental, primeiro porque as religiões têm um alcance e um poder muito grandes, em termos de influência.Em termos budistas, a gente pode chamar de um despertar coletivo”, declara Fernandes.
A Ìyálorixá Mônica de Ọba irá representar os candomblecistas no evento promovido pelo ISER no Rio e entende a importância em participar desta ação. “Como liderança religiosa, representante das comunidades tradicionais de Terreiro, entendo que representa uma ótima oportunidade de visibilização, inclusão e igualmente de nossa religião fazer parte de um evento com esta temática em favor do compromisso com a pauta ambiental e climática”.
Nós na Criação
Em Recife (PE), a Vigília pela Terra contará com a participação do fundador do movimento “Nós Na Criação” o pastor da Igreja Batista do Coqueiral Josias Vieira Kaeté. De acordo ele, que também compõe a equipe de parceiros do ISER que organiza o evento na capital pernambucana, a vigília vai trabalhar uma mescla entre falas de espiritualidades diversas e manifestações artísticas. “Em Recife, a gente tem uma peculiaridade muito interessante, a nossa arte brota do chão. Ela brota da vida da pessoa comum, nossos mestres e mestras são pessoas pobres que sofrem as consequências de uma crise climática que chega primeiro neles. É com esse espírito, que daremos os braços entre os diferentes para celebrar a vida e promover uma vigília, que vai marcar com voz profética aquilo que precisa ser marcado”, declara.
As Vigílias pela Terra acontecem em cinco regiões do Brasil. A mobilização teve início em abril deste ano, no ato de abertura do Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, e seguiu para Porto Alegre. O evento também será realizado em Manaus, em 6 de setembro; Natal, em 13 de setembro; Recife, em 11 de outubro. A culminância deste percurso será uma vigília de múltiplas tradições espirituais e sociais, em novembro, durante a COP 30, em Belém, que ocorrerá no âmbito do “Tapiri Ecumênico e Inter-religioso COP 30”.
Um momento decisivo: As novas vigílias pela Terra
À medida que o Brasil se prepara para receber a COP 30, cresce o debate sobre o papel das religiões na luta climática. Para além das diferenças teológicas, o que está em jogo é a capacidade de mobilizar milhões de pessoas em torno de um valor comum: o cuidado com a vida na Terra.
Nas posturas e nos documentos de católicos e evangélicos, nas ações das tradições de Terreiro, na espiritualidade budista, nas vozes das nações e povos indígenas e de outras comunidades, a mensagem parece convergir: sem espiritualidade, a luta ambiental corre o risco de ser apenas técnica; sem ação prática, a espiritualidade corre o risco de ser apenas discurso. A lição da ECO-92 continua presente: a pela fé e pelo “espírito de 1992” (invisível, coletivo e real) novos avanços e ações globais se tornam visíveis.
O Bereia está entre os parceiros do ISER na realização da Vigília pela Terra, Rio de Janeiro, no sábado, 30 de agosto, a partir das 15h, no Largo da Candelária, no Centro da Cidade. O evento é um importante meio de informação sobre os desafios da COP 30 e de enfrentamento da desinformação sobre a crise climática.
A intolerância religiosa é um problema estrutural que afeta profundamente a sociedade brasileira e aponta para desigualdades históricas e sociais. De janeiro a junho de 2024, o Brasil registrou um aumento alarmante nos casos de intolerância religiosa. O Disque 100, canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos, contabilizou 1.227 ocorrências no primeiro semestre, um salto de mais de 80% em comparação ao mesmo período de 2023, quando foram registradas 681 denúncias. Esse número já representa quase o total de registros de todo o ano passado (1.482), com a média preocupante de quase sete casos por dia.
As denúncias refletem um padrão recorrente de vítimas: a maioria é composta por mulheres e pessoas negras. Dos casos registrados no primeiro semestre de 2024:
60,5% das vítimas eram mulheres;
32,4% eram homens;
0,24% eram intersexo;
6,84% não informaram ou não declararam o gênero.
As raízes do problema
A origem do problema está diretamente ligada ao período colonial e ao processo de colonização europeia, particularmente no contexto das Américas e do Brasil, de acordo com a análise da pesquisadora do ISER Carolina Rocha. Durante esse período, as populações africanas escravizadas e suas práticas culturais e religiosas foram hierarquizadas e inferiorizadas em relação aos valores europeus, predominantemente cristãos.
No verbete “Racismo Religioso”, a pesquisadora explica que a Igreja Católica Apostólica Romana desempenhou um papel crucial nesse processo, ao demonizar e criminalizar as práticas religiosas de matriz africana, associando-as à bruxaria e à idolatria. Esse enquadramento religioso e cultural serviu para justificar a exploração econômica, a violência e a desumanização das pessoas negras.
Contudo, o termo “racismo religioso” ainda é objeto de construção e debate acadêmico. Pesquisadores como Carolina Rocha destacam que, embora a expressão seja frequentemente usada para descrever o preconceito e a violência direcionados contra adeptos de religiões de matriz africana, é preciso um esforço maior na produção de conhecimento sobre este conceito.
O fato é que mesmo com a formalização da liberdade religiosa na Constituição de 1891, as religiões afro-brasileiras continuam enfrentando perseguição e preconceito, muitas vezes intensificados por discursos de ódio promovidos por setores religiosos hegemônicos no país.
Outros grupos religiosos também sofrem com a intolerância
Embora as religiões de matriz africana sejam as mais afetadas, outros grupos também sofrem. Islâmicos, especialmente mulheres muçulmanas, frequentemente enfrentam agressões físicas e verbais. Judeus e sinagogas são alvos de atos de vandalismo e discursos antissemitas. Cristãos evangélicos, por sua vez, lidam com generalizações que os desqualificam como “alienados”, “ignorantes”, e os associam exclusivamente a práticas ultraconservadoras e charlatanismo, desconsiderando a diversidade interna do segmento e sua contribuição histórica para ações sociais e a defesa dos direitos humanos. Católicos também sofrem com a profanação de templos e imagens sagradas, muitas vezes usados como símbolos de resistência política e cultural.
Nos últimos anos, a intolerância religiosa tem sido intensificada pela instrumentalização política da religião, especialmente por movimentos de extrema-direita. Líderes religiosos de diferentes tradições se aliaram a pautas antidemocráticas, usando a retórica da “liberdade religiosa” para promover exclusivismo e atacar minorias. Este cenário, descrito pela pesquisadora e editora-geral do Bereia Magali Cunha aqui e aqui, representa uma ameaça à pluralidade religiosa e à convivência democrática.
Caminhos para a transformação
O aumento das denúncias é um alerta e, ao mesmo tempo, uma oportunidade para mudanças. Políticas públicas voltadas à educação religiosa e ao respeito à diversidade cultural são essenciais para enfrentar a intolerância.
Datas do calendário cívico ajudam a reforçar o compromisso com a pluralidade, a diversidade e o respeito à liberdade de crença. Em 21 de janeiro, por exemplo, o país chama atenção para o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, oficializado pela Lei n.º 11.635, de 2007, em memória à Mãe Gilda, uma liderança religiosa do Candomblé que foi vítima de perseguição e intolerância religiosa até falecer em decorrência de um infarto, em 2000.
16ª Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, Copacabana. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Outra importante iniciativa é a Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, realizada anualmente no terceiro domingo de setembro na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Este evento, organizado pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP) e pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), reúne praticantes de diferentes crenças e defensores da diversidade para denunciar casos de intolerância e racismo religioso. Esta ação é realizada em outras cidades do Brasil.
Medidas práticas incluem a criação e o fortalecimento de órgãos especializados, como a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI), no Rio de Janeiro, e canais de denúncia, como o Disque 100. Iniciativas como o Observatório Mãe Beata de Iemanjá e a Comissão Parlamentar de Inquérito Contra a Intolerância Religiosa da Alerj também mostram como políticas públicas voltadas ao monitoramento e denúncias contribuem para o enfrentamento do problema.
Além disso, é fundamental que o ambiente digital também seja monitorado para combater a disseminação de discursos de ódio e desinformação religiosa. Os dados do Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH) mostram que as denúncias de crimes de intolerância religiosa online triplicaram em seis anos, passando de 1,4 mil em 2017 para 4,2 mil em 2022. Embora o relatório com os dados consolidados de 2023 ainda não tenha sido divulgado, as tendências dos últimos anos reforçam a relevância das redes sociais digitais como palco de propagação de discursos de ódio.
Por fim, outro ponto significativo é a implementação de campanhas educativas para promover o respeito à liberdade de crença, sobretudo em escolas e espaços religiosos, onde a conscientização pode moldar novas gerações mais tolerantes.
Personagens surgidos na cena gospel acabaram por trazer visibilidade para um novo fenômeno traduzido em estratégia política. A chamada “Teologia Coach”, que seria herdeira da antiga “Teologia da Prosperidade”, com eficiência máxima diante de uma sociedade consumista e cada vez mais midiatizada. Um de seus expoentes mais famosos é o candidato a prefeito de São Paulo Pablo Marçal (PRTB).
Em artigo para o site Meio, a pesquisadora e diretora-executiva do Instituto de Estudos da Religião discorre sobre o conceito e as manifestações da “Teologia Coach”, abordando seu contexto, suas práticas e como reverberam no cenário brasileiro. Confira o texto completo (para assinantes) aqui.
** Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.
O início oficial do período de propaganda eleitoral para Prefeituras e Câmaras de Vereadores, em todo o país, ocorreu em 16 de agosto. Durante as sete semanas deste período de campanha por votos, Bereia vaiacompanhar a forma como as religiões e temas religiosos são propagados, para verificar se há uso de desinformação. Em 2020 e 2022, Bereia identificou farta utilização de conteúdo falso, enganoso e impreciso como estratégia de campanha de candidatos e seus apoiadores para convencer eleitores ou para destruir a imagem de opositores e de partidos.
Aumento de candidaturas religiosas
Segundo pesquisas realizadas pelo Instituto de Pesquisa e Reputação de Imagem (IPRI), da FSB Holding, as candidaturas com Identidades Religiosas aumentaram 225% nas últimas sete eleições municipais. Os dados foram coletados a partir de um levantamento com dados disponíveis no portal do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao qual Bereia também recorreu. A análise realizada pelo IPRI aponta que o número de candidaturas com identidade religiosas saltou de 2.215 em 2000 para 7.206 em 2024.
Em entrevista para a plataforma Agência Brasil, o sócio-diretor do IRPI Marcelo Tokarski afirma que o aumento apresentado nos últimos 24 anos demonstra também um crescimento do apelo da religião na política. Sobre o tema, a Agência Brasil também ouviu a coordenadora da área de Religião e Política do Instituto de Estudos da Religião (ISER) Lívia Reis, que indica existirem candidatos não religiosos que passam a se declarar como cristãos de modo genérico para comunicar um conjunto de valores ou pedir por voto em instituições religiosas.
“Se, por um lado, as candidaturas oficiais apoiadas por igrejas evangélicas continuam tendo bons resultados nas urnas, nem sempre elas mobilizam nome religioso nas urnas. Por outro lado, candidatos que não são religiosos passaram a se identificar como cristãos – assim, de modo genérico –, para comunicar ao eleitorado o conjunto de valores com os quais ele se identifica ou então para pedir voto em igrejas de pequeno e médio portes, que não têm suas candidaturas oficiais. Também é importante lembrar que, nas eleições municipais, as dinâmicas locais nos territórios são muito valorizadas e, muitas vezes, precisam ser combinadas com uma identidade religiosa para que aquela candidatura seja vencedora no pleito”, Lívia Reis disse à Agência Brasil.
O avanço do segmento evangélico no cenário político brasileiro tem raízes históricas, intensificada após a redemocratização e a Constituição de 1988, como aponta o estudo da pesquisadora da Religião e editora-geral do Bereia Magali Cunha. Outro fato significativo é o sucesso da campanha de religiosos nas eleições. A pesquisa do IPRI indica que candidaturas que mobilizam a religiosidade tendem a ser mais bem-sucedidas nas urnas, e ocupam, em média, mais de 51% das cadeiras nas Câmaras Municipais nas eleições de 2020.
Candidaturas com identidade religiosa nas capitais do Brasil
O levantamento do Bereia sobre as candidaturas com identidade confessional para as Prefeituras das 26 capitais brasileiras, em 2024, levou em conta os dados fornecidos pelo TSE. Foi contabilizado um total de 192 candidatos e candidatas, de 28 partidos. Para verificar quais deles têm identidade confessional, foi utilizada a base de dados do Instituto de Estudos da Religião (ISER) sobre as eleições de 2020 e 2022, para obter dados de candidaturas à reeleição e outras reapresentadas. Para as novas candidaturas, a equipe Bereia seguiu a metodologia do ISER de tomar por base as mídias sociais dos candidatos para conhecer como se autoidentificam e como expõem, ou não, uma confessionalidade, além da consulta a outros registros públicos.
Os dados levantados pelo Bereia mostram que 84 candidatos/as a prefeitos/as de capitais do país expõem publicamente sua confissão religiosa: 46 são católicos, 21 se identificam como cristãos de forma não determinada, 16 são evangélicos e um é espírita.
Este grupo que pleiteia as Prefeituras das capitais está dividido em 19 partidos: a maioria é da direita, com 41 candidatos, sendo 14 do PL, oito do União Brasil e 29 de outros nove partidos; são 21 candidatos com identidade confessional em cinco partidos ao centro. Já a esquerda tem 19 candidatos entre PT, PDT, PSB e PSOL.
Entre estas candidaturas, 13 tentam a reeleição e dois são vereadores que almejam Prefeituras. Há 15 deputados federais que se licenciaram para concorrer, dois senadores e 17 deputados estaduais.
Destaca-se o dado de que 25% dos candidatos às Prefeituras das capitais se identificam como cristãos de forma não determinada. As pesquisas do ISER mostram que a exposição de uma identidade cristã não determinada tem sido uma prática expressiva em campanhas eleitorais desde 2020.
Porém, 38% deste grupo de cristãos não determinados têm algum tipo de vínculo com uma igreja (dois católicos e cinco evangélicos) e até mesmo com uma outra religião. Como já citado na análise de Lívia Reis, estes candidatos optam por comunicar certos valores cristãos às suas bases eleitorais.
Um exemplo destacado neste grupo é o do candidato na cidade de São Paulo Pablo Marçal (PRTB). Em entrevista ao canal Antagonista, Marçal diz ser cristão, mas não se considera evangélico nem católico. Para ele o Cristianismo é um estilo de vida (lifestyle), não uma religião. Porém, mesmo negando um vínculo confessional, o acionamento de símbolos e discursos evangélicos e a aproximação do influenciador com pastores do segmento é bastante visibilizado.
Ex-coach, o influenciador digital atraiu uma legião de seguidores ao falar sobre fé, pensamento positivo e prosperidade financeira, marcas relevantes do discurso da Teologia da Prosperidade, bem conhecido entre os evangélicos brasileiros. Isto proporcionou que ele participasse de conferências e cultos ao lado dos pastores midiáticos Claudio Duarte, Josué Valandro Junior e André Valadão.
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Em uma palestra voltada para pastores, Pablo Marçal cita a frase “Um monte de gente vai te criticar em nome de Jesus, manda esse povo se f*”, arrancando risos do público.
Durante a pandemia, o candidato paulistano participou de live com o também pastor midiático Caio Fábio, que é reconhecido no cenário do evangelicalismo brasileiro como progressista. Sobre a live, o pastor se diz crítico do ex-coach e explicou que se tratou de um pedido feito por amigos próximos e que não o conhecia previamente.
Além da identidade religiosa e do vínculo confessional, também foi verificado pelo Bereia se os candidatos já foram checados por terem propagado desinformação.
Dos 84 candidatos às Prefeituras das 26 capitais, quatro já foram checados pelo Bereia por propagarem desinformação. São eles, Cristina Graeml (PMB, Curitiba/PR, cristã não determinada), Assumção (PL, Vitória/ES, evangélico da Igreja Maranata), Pablo Marçal (PRTB, São Paulo/SP, cristão não determinado) e Eduardo Girão (Novo, Fortaleza/CE, cristão com vínculo espírita kardecista). Girão, que é senador da República (Novo-CE), teve várias verificações do Bereia, com destaque para a atuação dele com falsidades na CPMI da Covid e contra a política de vacinação, também na divulgação de conteúdos falsos sobre o Q-Anon e de informações falsas sobre o aborto legal.
Imagem: reprodução/site Bereia
Entre os 84 candidatos/as às Prefeituras das capitais com confissão religiosa identificada pelo Bereia, alguns também se destacam por menções negativas no noticiário, seja por checagens de mentiras divulgadas, seja por discurso de ódio ou por corrupção. É o caso do deputado federal licenciado para concorrer à Prefeitura de Cuiabá Abílio Brunini (PL-MT), conhecido como “Rei das Fake News”.
Imagem: reprodução/Diário de Cuiabá
Evangélico e neto de pastor das Assembleias de Deus, Abílio Brunini ganhou notoriedade durante a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Atos Golpistas, em 2023, de onde teve, por várias vezes, a saída ordenada pela presidência da Comissão por conta de atitudes indecorosas. Eleito vereador de Cuiabá, pelo PSC, em 2016, ele teve o mandato cassado por quebra de decoro parlamentar, e naquele mesmo ano concorreu à Prefeitura da cidade, saindo derrotado no segundo turno.
A campanha de Abílio Brunini já foi multada na primeira semana do período eleitoral de 2024, por propagação de mentiras contra o candidato concorrente.
Imagem: reprodução/Diário de Cuiabá
Outro destaque no quesito desinformação é Janad Valcari (PL, Palmas/TO, evangélica de vinculação não identificada), com caso recente reportado pela plataforma Conjur. O veículo aponta que a candidata, licenciada como deputada estadual para concorrer à Prefeitura de Palmas (TO), moveu um processo para a retirada do site Diário do Centro do Mundo (DCM) do ar, que publicou reportagem que expunha ganhos milionários da deputada em contratos com Prefeituras para shows musicais. A juíza Edssandra Barbosa da Silva Lourenço, da 4ª Vara Cível da Comarca de Palmas, determinou o cumprimento do processo e o site foi suspenso. A medida foi criticada por juristas, lideranças políticas e jornalistas como censura prévia e um grave atentado à liberdade de imprensa e ao direito à informação.
Bereia seguirá no acompanhamento destas candidaturas com identidade religiosa confessional e de outras que acionarem temas religiosos como estratégia. Leitores e leitoras podem contribuir com o envio de materiais para checagem por meio dos canais de contato indicados no site Bereia.
A partir deste compromisso, foi lançada pelo Bereia em parceria com a CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço, o CEBI – Centro de Estudos Bíblicos e o CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs a campanha “Bote fé no Voto! Votar é um direito!” , com o objetivo de combater a desinformação nos meios e mídias religiosos durante as eleições municipais de 2024. A campanha ocorre ao longo de sete semanas e apresentará reflexões e dicas para ajudar os eleitores a fazer valer seu voto de forma consciente.
A campanha eleitoral começou oficialmente em 16 de agosto. Os programas de televisão e rádio, além das publicações nas mídias sociais, devem respeitar as regras estabelecidas pela legislação eleitoral. Porém, no ciberespaço, aparentemente sem regulação e controle, a campanha eleitoral começou há algum tempo, ou melhor, não parou e esta edição está ativa desde 2018.
No campo virtual não existem regras. Quanto mais alarmante e absurdo, melhor. O objetivo é gerar pânico e com isso, compartilhamentos. No que diz respeito às religiões, nestas eleições nacionais de 2022, os temas da cristofobia (perseguição aos cristãos no Brasil), além de temas como intolerância religiosa e racismo religioso, parecem estar no centro da disputa por votos e para criticar adversários.
Para além de indivíduos religiosos, o discurso cristão é uma linguagem familiar a quase todos os brasileiros, compreendido pela ampla maioria. Isto porque, existe uma referência histórica e cultural desde a colonização portuguesa, que trouxe com ela o Cristianismo católico, e cria um senso de identidade, ainda que grande parte da população não frequente uma igreja. Desta maneira, o discurso religioso com ênfase cristã é utilizado como arma política para além dos muros das igrejas.
A controvérsia do Estado laico
Num Estado laico como o Brasil, lideranças políticas não devem se comportar como fiéis de uma crença particular, e muito menos atacar qualquer religião. No entanto, não é isto que se observa neste conturbado processo eleitoral. Em tempos de mídias sociais, a desinformação com a circulação de conteúdo falso e enganoso, especialmente, as chamadas fake news, se tornaram armas mais poderosas do que as antigas artilharias militares.
De acordo com a antropóloga, pesquisadora e coordenadora de Religião e Política do ISER Lívia Reis,“de forma abrangente, podemos dizer que um Estado é laico quando há uma separação oficial entre Estado e religião. Isso significa que não existe uma religião oficial de Estado, que nenhuma religião pode ser beneficiada em detrimento de outras e que a interferência religiosa não é permitida em decisões estatais. Assim, ao invés de divulgar, perseguir ou hostilizar religiões, um Estado laico deve garantir que todas as religiões sejam valorizadas e tenham o direito de existir igualmente.
Entretanto, Bereia tem monitorado discursos e publicações em mídias sociais de personagens políticos importantes como a primeira dama Michelle Bolsonaro e o deputado pastor Marco Feliciano, além de um grande número de políticos e “influenciadores” digitais cristãos e observa o quanto pregam a intolerância religiosa, reverberando discursos de ódio e disseminando pânico com falsas notícias.
O caso da intolerância contra religiões de matriz africana
O vídeo foi publicado originalmente pela vereadora autodenominada cristã, de igreja não identificada, Sonaira Fernandes (Republicanos-SP). Na legenda da publicação, a vereadora escreveu: “Lula entregou sua alma para vencer essa eleição. Não lutamos contra a carne nem o sangue, mas contra os principados e potestades das trevas. O cristão tem que ter a coragem de falar de política hoje para não ser proibido de falar de Jesus amanhã.”
Imagem: reprodução do Instagram
Na mesma direção da referência negativa de Sonaira Fernandes, dias antes da postagem no Instagram, no domingo, 7 de agosto, a primeira-dama e o presidente participaram de culto na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte, ao lado do pastor André Valadão e outras lideranças religiosas. Michelle Bolsonaro, ao se referir sobre os palácios de governo em Brasília, afirmou, ao lado do presidente em lágrimas, que:
“Por muitos anos, por muito tempo, aquele lugar foi um lugar consagrado a demônios. Cozinha consagrada a demônios, Planalto consagrado a demônios e hoje consagrado ao Senhor Jesus.” (a partir do 00:06:00 min do vídeo).
Bereia avalia que o caso da postagem de Sonaira Fernandes, compartilhada por Michelle Bolsonaro, ao lado da afirmação feita pela primeira dama na Igreja Batista em Belo Horizonte, não é um simples caso de desinformação sobre uma determinada expressão religiosa. Como pesquisadores cujos estudos Bereia tem acesso afirmam, é um caso de desinformação baseada em intolerância religiosa utilizada como campanha política.
O antropólogo e Conselheiro do ISER Marcelo Camurça, observa que “diante da aproximação das eleições presidenciais de 2022, com a perda crescente de popularidade de Bolsonaro, e o avanço de sua ação tóxica de afrontar as instituições democráticas da república, a estratégia (que começa a se esboçar nos “gabinetes do ódio” e redes de expansão de fake news) de intolerância religiosa como forma de atingir adversários políticos pode recrudescer. Projetos políticos que articulam o pluralismo cultural, religioso, étnico começam a ser rotulados como provindos de religiões do “mal” e por isso ditos “anti-evangélicos”. Não é por outra que Bolsonaro e seus partidários vêm levantando o argumento de uma inexistente “cristofobia” para justificar, como nos exemplos acima, uma confrontação política na forma de “guerra espiritual”.
A desinformação produzida pela vereadora Sonaira Fernandes, compartilhada por Michele Bolsonaro, foi reproduzida por outras personagens do mundo político, como o deputado federal Pastor Marco Feliciano (PL-SP) e continua circulando amplamente mesmo depois de denúncias às plataformas de mídias sociais.
Perseguição às igrejas no Brasil: a mentira que tem mais de 30 anos
Supostas notícias relacionando o Partido dos Trabalhadores, o ex-presidente Lula e a “esquerda” com o a perseguição e o fechamento de igrejas têm sido compartilhadas diariamente com diversas mídias digitais religiosas.
Esta desinformação é antiga e foi disseminada já nas primeiras eleições diretas para a Presidência da República depois da ditadura militar, em 1989. Naquela ocasião, circulava entre fiéis a orientação de não votar em candidatos da esquerda, especialmente no candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, porque, no poder, fecharia as igrejas e perseguiria cristãos. Esta campanha foi amplificada quando boa parte do segmento pentecostal decidiu apoiar o candidato Fernando Collor de Mello (PRN). Esta afirmação foi repetida em todos os pleitos em que Lula se candidatou depois de 1989.
Tais “notícias” nunca apresentam as fontes para as informações apresentadas, têm autoria desconhecida e com teor alarmante, pedem o compartilhamento urgente da mensagem. Há ainda casos da criação de postagens com autoria falsa, como é o caso desta postagem atribuída falsamente ao ex-presidente Lula, com a afirmação de que em um futuro governo a igreja teria seus benefícios cortados entre outras “punições”.
Imagem: reprodução do UOL
Além do compartilhamento nos grupos de mensagens e nas redes sociais digitais, estes conteúdos são legitimados por autoridades públicas, como o já citado pastor deputado Marco Feliciano (PL-SP), destacado propagador de desinformação.
“Conversamos sobre o risco de perseguição, que pode culminar no fechamento de igrejas. Tenho que alertar meu rebanho de que há um lobo nos rondando, que quer tragar nossas ovelhas através da enganação e da sutileza. A esmagadora maioria das igrejas está anunciando a seus fiéis: ‘tomemos cuidado’”disse Feliciano, que é pastor da Assembleia de Deus Ministério Catedral do Avivamento.
Lei da liberdade religiosa sancionada em 2003 pelo então presidente Lula
Imagem: reprodução do YouTube
Na primeira fila da cerimônia de sanção da lei da liberdade religiosa em 2003, dentre várias autoridades, destacamos o pastor e então senador, Magno Malta.
Imagem: reprodução do YouTube
Em 2022, agora em campanha para voltar ao Senado, Magno Malta publica ataques ao Partido dos Trabalhadores, relacionando seus líderes a uma suposta cristofobia. Na imagem publicada pelo agora candidato Magno Malta, ele utiliza a foto do ex-chefe de gabinete de Lula e ex-ministro de Dilma Rousseff, Gilberto Carvalho. Entre aspas, coloca uma frase jamais dita por Gilberto Carvalho.
“Olá meus companheiros pastores. Durante muito tempo eu disse que Deus escreve certo por linhas tortas. Eu não sei se é coincidência ou não, mas essa é a última lei que eu sanciono este ano. Ah e eu não sei se coincidência ou não é exatamente uma lei que
torna livre a liberdade religiosa no país. Por quê que eu digo coincidência porque durante muitos e muitos anos eu encontrava com pastores pelo Brasil a fora que perguntavam para mim: Lula é verdade que se você ganhar as eleições, você vai fechar as igrejas evangélicas? E no primeiro ano do meu governo e a última lei do ano de 2003 é exatamente para dizer que aqueles que me difamaram, agora vão ter que pedir desculpas não a mim, mas a Deus e a sua própria consciência. Eu dizia sempre que tem três coisas que demonstram que um país vive em democracia: uma é liberdade política, outra é liberdade religiosa e a liberdade sindical. Eu penso que nós estamos vivendo esses momentos de liberdade no Brasil.”
Porém,em tempos de pós-verdade, os fatos não importam. Como disse o então presidente Lula na cerimônia da lei de liberdade religiosa, na campanha de 2002 ele já era questionado a respeito do fechamento de igrejas, caso eleito. Vinte anos depois, as mesmas acusações são repaginadas em tempos de mídias digitais. Magno Malta estava na cerimônia que sancionou a lei de liberdade religiosa, um marco para as igrejas evangélicas do Brasil, e hoje, promove ataques e acusações aos mesmos que sancionar a lei. Um dos maiores porta-vozes das acusações infundadas contra o agora candidato Lula, é pastor deputado Marco Feliciano:
Imagens: reprodução do Twitter
Como enfrentar estas mentiras
A intolerância contra as expressões religiosas e culturais de indígenas e negros remonta à escravização e à exploração destes povos desde o período colonial. Séculos depois, e ainda sem a devida superação desta questão dramática, o artigo do antropólogo Marcelo Camurça, “Intolerância religiosa e a instrumentalização da religião pelo autoritarismo” chama atenção para uma “nova modalidade de intolerância que se coloca ao dispor da estratégia política de correntes de extrema direita para seus projetos de poder”. O artigo apresenta dois casos recentes de intolerância religiosa praticada por políticos.
O presbiteriano e vereador do PTB de Belo Horizonte Ciro Pereira, que fez uma postagem em sua rede social onde dizia: “engana-se quem pensa que não existe uma guerra espiritual acontecendo. Lula busca as forças ocultas africanas, foi ungido e benzido por várias entidades”. E concluía dizendo: “ a guerra começou e eu luto pela minha família e pelo futuro de minha pátria”.
Em seguida, a deputada estadual pelo Partido Social Cristão de Pernambuco Clarissa Tercio, da Assembleia de Deus, postou uma foto de Lula ladeado por suas ialorixás paramentadas com suas roupas religiosas, todos de máscara anti-covid, com a seguinte legenda: “Lula recebe benção de Zé Pelintra para vencer a eleição de 2022”, seguido de um comentário da vereadora: “Já o meu presidente Jair Messias Bolsonaro vai ao culto receber a benção do Deus todo poderoso”.
Marcelo Camurça encerra e afirma que: “uma ignominiosa e inaceitável “demonização” das religiões afro-brasileiras é estendida a Lula pela ameaça que sua candidatura significa para os planos continuístas de Bolsonaro; como se a agenda do ex-presidente com lideranças do Candomblé e Umbanda fosse prova já dada de que ambos estariam urdindo “feitiços” maléficos contra a nação”.
As publicações e declarações de figuras políticas e religiosas que atacam as religiões de matriz africana, são o retrato de um país que está longe de respeitar os princípios da Constituição de 1988.
Um Estado laico é um Estado onde todos estão livres para praticar sua religião. Um credo não se sobrepõe a outra e nenhuma religião deve ser perseguida ou atacada. Entretanto, o que se vê hoje é a utilização do discurso religioso com fins políticos e como arma eleitoral.
O deputado Marco Feliciano projeta suas próprias convicções políticas nos adversários, numa tática de inversão de posições. Ao pregar intolerância contra religiões de matriz africana e criticar posições de personagens e grupos progressistas, por exemplo, ele faz crer que os alvos do ataque são os intolerantes e perseguidores. Os fatos não importam. O objetivo é gerar pânico entre fiéis e disseminar o maior número de notícias falsas e alarmantes.
Um vídeo que mostra traficantes interrompendo um culto em uma igreja evangélica no Rio de Janeiro para pedirem uma oração antes de saírem para um confronto armado, viralizou em mídias sociais na terça, 5 de julho, e se transformou em notícia até mesmo de grande mídia local.
Imagem: reprodução do Instagram
Imagem: reprodução do jornal O DIA
Alguns perfis e a matéria do jornal O Dia basearam-se em informação da página carioca de mídias sociais “Alerta Informes Rio”. Em publicação, a página dizia que “a filmagem, segundo fontes da polícia, ocorreu na quinta-feira, dia 30 [de junho], na comunidade INPS, na Ilha do Governador, Zona Norte do Rio. O Portal Procurados também confirmou a informação”.
Imagem: reprodução do Instagram
Imagem: reprodução do Instagram
Após o alto alcance do vídeo e dos inúmeros comentários sobre a relação entre igrejas e o tráfico de drogas, vários deles de cunho preconceituoso e depreciativo de igrejas evangélicas em geral, lideranças de uma pequena igreja evangélica no Morro do Borel (bairro da Tijuca, no Rio) tornaram público o teor da publicação: era uma encenação.
Uma peça de teatro religiosa
Como é muito comum em igrejas evangélicas, peças são encenadas em cultos para oferecer uma mensagem, um ensino, relacionados à dinâmica da vida, da própria igreja. É muito comum temas como processos de conversão, a volta de Jesus e o Juízo Final, histórias da “igreja perseguida pelo mundo”, por exemplo. Da mesma forma, para comemorar o Dia do Pastor, em 12 de junho, integrantes do Ministério Tempo de Avivar apresentaram uma peça teatral em que dois traficantes (personagem presente no cotidiano de uma comunidade periférica) pediam oração para atuarem em um confronto violento, mas ao final se convertiam ao Evangelho.
A história foi esclarecida pela pastora presidente do Ministério, Isa Cruz, em depoimento ao repórter Igor Melo, do UOL Notícias. Ela disse que o pastor que aparece nas imagens é seu marido, Alan Mendes, também presidente da igreja. A pastora contou ao repórter que não faz muito uso de mídias sociais, mas acabou tomando conhecimento da repercussão do caso. “A todo momento me mandam o vídeo.” Ela explicou que a congregação não se preocupou com a divulgação das imagens: “Ficamos tranquilos, porque realmente foi uma peça e acho que não foi [divulgado] o vídeo todo”.
O pastor Alan Mendes explicou ao UOL Notícias que a arma exibida no vídeo era de paintball. A pastora admitiu que em sua igreja já houve casos de traficantes que se converteram e largaram o crime e a peça estaria refletindo esta realidade. “A nossa igreja é aberta. Nós não impedimos ninguém de entrar na igreja para receber a palavra de Deus. Temos alguns convertidos que antes foram ex-prostitutas, ex-traficantes. Quando [a pessoa] entra na igreja, na presença de Deus, sua vida é mudada”, disse Isa Cruz à reportagem.
Já o jornal O Globo, publicou o esclarecimento dado pela pessoa que publicou o vídeo. Trata-se do mestre de obras, que é influenciador digital, Rondinele dos Santos, conhecido como Nelinho do Borel. Ele relatou a mesma história contada ao UOL pela pastora Isa Cruz e seu marido pastor Alan Mendes. Com mais de 50 mil seguidores, Nelinho do Borel afirma que postou o vídeo no TikTok com a intenção de mostrar como a igreja atua dentro das comunidades.
Apesar da boa intenção, o influenciador digital teve problemas com a publicação. “A igreja está lá para orar por todo mundo, independente do que a pessoa faz. Eu não achei que iriam apagar meu vídeo. Na primeira vez que publiquei, ele teve 12 milhões de visualizações. Deletaram meu vídeo e eu postei de novo, achando que tinha dado algum erro. Na terceira vez, bloquearam minha conta”, contou Nelinho do Borel à repórter Kathlen Barbosa, de O Globo. Segundo ele, na legenda do vídeo constava a informação de que se tratava de uma peça de teatro, porém desconfia que a plataforma tenha apagado o conteúdo por conta de denúncias de outros usuários.
Nelinho do Borel confirmou o que disse o pastor Alan Mendes, que a encenação usou armas de paintball, e que os personagens que aparecem no vídeo são todos membros da igreja.
A vida como ela é
O conteúdo que fez o vídeo viralizar é enganoso, pois não é um fato ocorrido, mas sim uma encenação. Entretanto, elementos contidos na narrativa que deu forma à representação dos membros da igreja, no Dia do Pastor, são uma realidade presente no cotidiano de muitas igrejas em favelas de grandes cidades do Brasil.
É uma realidade que tem se tornado muito evidente pelo noticiário e acaba sendo julgada e, boa parte das vezes, condenada por pessoas que vivem em bairros das cidades do Brasil e que desconhecem o cotidiano destas comunidades. Por isso, o trabalho de pesquisadoras como a professora da Universidade Federal Fluminense e do Instituto de Estudos da Religião Christina Vital é muito relevante. Ela é autora do livro “Oração de Traficante: uma etnografia (Rio de Janeiro: Garamond, 2015), resultado de pesquisa de campo, como antropóloga, nas favelas de Acari e Santa Marta, no Rio.
Há os casos de traficantes que participam das igrejas e se convertem, e mudam de vida, como relata a pastora Isa Cruz, e há os que não mudam, acomodam as duas identidades, a do tráfico e a religiosa. Por isso a professora Christina Vital afirma que “não se trata de pensarmos esta relação, esta aproximação entre criminosos e redes e códigos evangélicos a partir da ótica da conversão, de uma transformação da vida do indivíduo, mas de uma composição específica que envolve expectativas de transformação, apelos morais, conexão com narrativas locais e uso de uma religião como ícone de dominação. Assim, a religião seria mais uma forma de demonstrar poder”.
A professora ressalta que a intensificação da relação entre igrejas evangélicas e dirigentes do tráfico é mais um sintoma do crescimento evangélico que vem ocorrendo como um todo no Brasil, especialmente nas periferias. Esta presença evangélica se dá pela escuta, pela aproximação e pelas relações de confiança que se estabelecem no que pode ser lido como um vazio nas relações com outras instituições e organizações, como o próprio Estado. “Não acho correto dizermos que a Igreja cresce onde o Estado não está presente. O Estado está presente nessas localidades, mas de modo precário, reforçando sentimentos de desconfiança, elemento corrosivo da vida social”, afirma Christina Vital.
A pesquisadora reconhece a questão da intolerância religiosa que se agrava com esta nova realidade:
“Há um contexto sociopolítico muito desfavorável à presença de religiosos de matriz africana. Isso nas favelas se tornou mais intenso porque é um local com uma densidade demográfica muito grande, onde esses rituais têm um tipo de sonoridade em que é impossível realizar as celebrações em segredo. Esses vários terreiros que existiam nas favelas foram para a Zona Norte ou para a Baixada Fluminense. Uma mãe de santo falou que esse êxodo se dá em parte pela intolerância religiosa e em parte pelo aumento da violência nas favelas, o que pôde ser percebido no trabalho de campo em Acari desde a década de 1990. O crescimento do tráfico e o superarmamento do tráfico traziam uma condição muito instável para os moradores e para os filhos de santo que iam à favela.
Ainda na década de 1990 houve a “gratificação faroeste”, em que vimos a violência crescer no estado e na cidade do Rio de Janeiro. Resumindo, há duas ocorrências. O movimento da intolerância religiosa praticada por moradores e a questão que diz respeito à violência estrutural, que se apresenta deste modo em razão do crescimento do tráfico e que dificulta a ida dos filhos de santo para a favela”.
O tráfico e as igrejas
Sobre o caso específico da gravação da encenação pelo Ministério Tempo de Avivar, Bereia ouviu a mestre em Ciências da Religião, do Instituto de Estudos da Religião (ISER), Viviane Costa, que é pastora pentecostal, da Igreja Assembleia de Deus. Ela explica que em favelas em que há a presença de traficantes que se identificam como evangélicos (e faz sentido o caso do Morro do Borel, pois está neste contexto), há igrejas que acabam participando da dinâmica em torno desta realidade, o que não quer dizer que tenham associação com o tráfico.
“Quando um traficante pede para o pastor fazer uma oração, porque ele vai para um enfrentamento, para um confronto, ou para se defender ou para lutar por um novo território, ou eles “convidam” o pastor para ir até a boca de fumo ou eles vão até a igreja e pedem oração, ou ainda um pastor passando pela rua é chamado e ora por eles. Isto é diferente daquela outra oração que o pastor faz como um apelo à conversão, por exemplo. A primeira seria uma oração voltada para uma dinâmica de guerra do tráfico, o que faz parte deste contexto representado na peça”, explica Viviane Costa.
A pastora e pesquisadora ressalta que
“De qualquer forma, esta participação do pastor em oração representada na peça não representaria uma necessária associação dele com o tráfico de drogas, até porque se ele está dentro de um território dominando pelo movimento, ele não tem muita liberdade para dizer ‘não quero orar por você. Há aqueles, sim, que se envolvem com o movimento, fazem parte dele, recebem dinheiro, verba desviada, tem festas patrocinadas pelo movimento, mas há pastores nestes locais que só tem aproximação com o pessoal do tráfico quando é para fazer oração, para cumprir algum compromisso mais ministerial. Nestes casos eles mantêm um distanciamento, uma blindagem. A professora Christina Vital chama isto de blindagem moral. Eles têm a prática do bom testemunho porque, ao não se envolverem, eles continuam a manter a postura e a autoridade de um pastor sério, homem de Deus, reconhecido pela comunidade e pelo tráfico de drogas também”.
Retificação nas mídias
No mesmo dia em que publicou ser verdadeiro o vídeo com a oração, a página Alerta Rio Informa no Instagram apagou a postagem e publicou uma nova em que afirma ser o caso uma história “Fake”. Nela, o grupo reproduz trechos publicados pelo projeto de fact-checking Fato ou Fake, do Portal G1, sobre o caso, sem dar o devido crédito.
Imagem: reprodução do Instagram
O jornal O Dia também publicou matéria que informa que o vídeo é uma peça de teatro.
Imagem: reprodução do jornal O Dia
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Bereia classifica as postagens e matérias que divulgaram um vídeo com traficantes recebendo oração antes de um confronto violento como enganosas. O vídeo é verdadeiro, mas é a gravação de uma encenação, uma peça de teatro comum em igrejas evangélicas para a transmissão de uma mensagem. Bereia alerta leitores e leitoras para conteúdos desta natureza que em nada contribuem para a reflexão sobre a complexa dinâmica da presença evangélica no Brasil e acabam por alimentar preconceito e intolerância.
O pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia publicou em seu perfil no Twitter um vídeo sobre a notícia de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o Ministério Público da Bahia e um pastor de Ipiaú, cidade do sul do estado. Durante um culto, transmitido também pelo YouTube, esse pastor havia utilizado o termo pejorativo “homossexualismo”. O religioso ainda orientou que os fiéis não consumissem produtos de duas grandes empresas que haviam feito campanhas publicitárias no Dia do Orgulho Gay. O ato foi denunciado como homofobia e o TAC foi proposto. Nele, o pastor comprometeu-se a se retratar durante o culto e não utilizar mais o termo “homossexualismo”.
A partir do fato, o pastor Malafaia pontuou no vídeo que teria começado uma perseguição religiosa contra evangélicos e sustenta que a decisão do MP da Bahia fere o artigo 5o. da Constituição Federal, sendo uma afronta aos direitos individuais. Ele afirma que dessa forma pastores poderão ser presos pelo que falam dentro de suas igrejas. Malafaia também afirmou que a interpretação de que o termo “homossexualismo” é relacionado a doença seria “o absurdo dos absurdos”.
Imagem: reprodução do Twitter
“Homossexualidade”, e não “homossexualismo”: quando e por que houve essa mudança
Em 1886, o psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing publicou a obra Psychopathia Sexualis. O Tratado de Krafft-Ebing constitui, naquele período, um texto unificador dos conhecimentos até então elaborados de maneira esparsa e assistemática no campo médico-psiquiátrico a respeito da sexualidade humana.
O termo “homossexual” não foi utilizado até meados do século 19. As práticas homoeróticas sempre existiram, mas os sujeitos não eram rotulados como tais. O termo só foi utilizado em 1869, por Karl Maria Kertbeny, argumentando contra o código que criminalizava a homossexualidade. Já em 1886, Richard von Kraft-Ebing utilizou o termo “homossexual” para descrever o que ele considerava ser um desvio, uma doença.
A Organização Mundial de Saúde incluiu o “homossexualismo” na classificação internacional de doenças de 1977 (CID) como uma doença mental, mas, na revisão da lista de doenças, em 1990, a orientação sexual foi retirada. Desde então, o termo “homossexualismo” – com ISMO no final – passou a ser considerado pejorativo, já que o sufixo, que também tem outros significados, ficou marcado por remeter à classificação como doença. Já o termo “homossexualidade” refere-se à atração física e emocional por uma pessoa do mesmo sexo, uma orientação sexual. Estudos mais avançados fazem uso do termo “homoafetividade”, levando em conta a relação humana que está para além do ato sexual.
Entretanto, apesar desta resolução internacional, cada país e cultura trata a questão da homossexualidade de maneira diferente. O Brasil, por exemplo, por meio do Conselho Federal de Psicologia, deixou de considerar a opção sexual como doença ainda em 1985, antes mesmo da resolução da OMS. Por outro lado, a China tomou a atitude apenas em 2001.
O artigo 5o. da Constituição e a prisão de pastores
Silas Malafaia cita que a postura do Ministério Público seria uma afronta ao artigo 5o. da Constituição. No vídeo, ele se refere a dois incisos (parágrafos) específicos:
“O artigo 5o. é cláusula pétrea, ninguém pode mudar. Vamos ao inciso VI: inviolável, vou repetir, inviolável a liberdade de consciência e de crença, [sendo assegurado] o livre exercício dos cultos religiosos [e garantida, na forma da lei], a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Lugar do culto é inviolável”. E em seguida: “Inciso VIII: ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa [ou de] convicção filosófica ou política”.
O pesquisador em Religião e Política João Luiz Moura, que é coordenador de projetos no Instituto Vladimir Herzog e pesquisador visitante no Instituto de Estudos da Religião (ISER), explicou ao Bereia que Malafaia cita os incisos corretamente, mas ignora o caput do artigo 5o., ou seja, o enunciado principal, que orienta os incisos:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”
“Claro que todos são livres para fazer o que querem, conquanto que isso não atinja exatamente a liberdade de todos e todas. Nesse caso concreto que a estamos discutindo aqui não é que o pastor está deixando de exercer a sua liberdade ao proferir um discurso religioso em torno de qualquer tema que seja. É que o pastor está violando a liberdade de alguém ser o que é, nesse caso de alguém exercer a sua sexualidade”, explica João. “Então aqui nesse caso, e no Direito, o que prevalece é justamente o direito do indivíduo de exercer sua liberdade, nesse caso sexual. O pastor não está deixando de exercer sua liberdade de crença religiosa”.
João Luiz Moura também sublinha que Malafaia faz um “jogo de linguagem” sobre pastores que poderiam ser presos. “Na verdade, qualquer pessoa pode ser presa se cometer discriminação sexual e racial, se violentar, agredir ou incitar ódio em questões de raça ou sexo”. O pesquisador ainda ressalta que o conteúdo do TAC entre o pastor e o Ministério Público não foi colocado a público. E que se o pastor não concordasse, ele poderia recorrer na Justiça, e o caso seria levado para instâncias superiores.
Perseguição de evangélicos não ocorre no Brasil
Sobre a perseguição alegada pelo pastor Malafaia, é mais um eco da suposta “cristofobia” existente no país, mencionada inclusive pelo presidente Jair Bolsonaro em discurso na Organização das Nações Unidas. A “cristofobia” tem sido usada para se referir a episódios de preconceito e discriminação contra evangélicos, embora não exista no país um sistema estruturado de perseguição violenta contra esse setor religioso.
Podemos considerar que dentro contexto político e religioso do Brasil, onde grande parte dos evangélicos ainda apoia o Presidente da República e setores conservadores da sociedade, religiosos ou não, são constantemente mobilizados pelos discursos do presidente e de seus apoiadores, em temas como “Ideologia de Gênero”, defesa da família ou perigo comunista, o termo cristofobia é mais um utilizado dentro da retórica conservadora para mobilizar seus apoiadores.
Desta maneira, o uso do termo cristofobia por alguns setores evangélicos e políticos do Brasil seja uma maneira de “tentar equiparar” a perseguição e a discriminação violenta sofrida por LGBTs, negros e outras minorias.
João Luiz Moura complementa: “Nós não vemos um monte de pastores sendo presos em todo o Brasil porque falam contra questões sexuais. Pelo contrário, dominicalmente pode-se ir à grande maioria das igrejas brasileiras e ver um pastor falando ‘teologicamente’, ‘biblicamente’ sobre questões sexuais e inclusive contra a comunidade LGBTQIA+ e não sendo denunciado nem condenado. Isso aconteceu de maneira isolada nessa cidade da Bahia e o pastor Malafaia toma isso como seu exemplo absoluto a fim de construir uma linguagem, uma narrativa, uma performance, de um fantasma que é a perseguição e a cristofobia no Brasil”.
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Bereia conclui que as informações divulgadas por Silas Malafaia no vídeo em sua conta do Twitter são falsas. Não há evidências de perseguição religiosa aos evangélicos no Brasil e ao citar os incisos do artigo 5o., o pastor ignora o caput do artigo. Além disso, o termo “homossexualismo” é associado a doença, ao contrário do que diz o pastor, conforme a mudança de abordagemda Organização Mundial de Saúde, a fim de evitar discriminação contra as pessoas e suas orientações sexuais diversas. Pode-se concluir que a alegação de perseguição faz parte de estratégia para produzir pânico moral e mobilizar os evangélicos no alinhamento político com pautas da extrema-direita, incluindo o governo federal.
Circulam em grupos de WhatsApp evangélicos fotos e notas que colocam em dúvida a participação do Bispo Presidente da Assembleia de Deus – Ministério de Madureira Abner Ferreira, em evento no Vaticano. O Bispo, de fato, esteve presente na conferência “Fé e Ciência: Rumo à COP 26” cujo anfitrião foi o líder máximo da Igreja Católica Apostólica Romana, Papa Francisco. O encontro reuniu cientistas e outros 22 representantes de diversas religiões.
De acordo com o sociólogo e secretário-executivo adjunto do Instituto de Estudos da Religião (ISER) Clemir Fernandes, que colaborou para a participação do Bispo no evento, Abner foi convidado pela Embaixada do Reino Unido em Brasília através de contato com o ISER. O Instituto possui conexões internacionais com movimentos ambientais inter-religiosos.
Segundo Clemir, “o evento possuía uma agenda muito clara, tratando de mudanças climáticas, a partir da ciência e compromisso com educação. O convite às lideranças religiosas globais veio através da percepção do sistema ONU de que o apoio e a mobilização das religiões são muito importantes para incidência nessa agenda”. Ele acrescentou que, por isso, o Reino Unido, sede da COP26, em conjunto com a Itália, presidente do Grupo dos 20, promoveu o encontro em diálogo com o Vaticano.
Imagem: reprodução do Youtube
Abner Ferreira discursou por cerca de cinco minutos na Sala das Bênçãos, no Vaticano, representando a Convenção Nacional Das Assembleias de Deus do Ministério de Madureira (CONAMAD), na pessoa de seu Presidente Vitalício Bispo Primaz Manoel Ferreira, pai de Abner, e de seu irmão, Presidente Executivo Bispo Samuel Ferreira.
Na fala, o bispo pentecostal, único representante da América do Sul na conferência, destacou que “a principal tarefa da Igreja é anunciar as Boas Novas de salvação em Cristo Jesus, mas isso não a isenta de preocupar-se com a questão ecológica. Foi Deus quem responsabilizou o homem sobre esta tarefa, ‘Tomou, pois, o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e guardar’ (Gênesis 2:15)”. Ele enfatizou que a preservação do meio-ambiente não é responsabilidade somente dos governantes. O discurso em vídeo pode ser conferido na íntegra aqui.
Fé e Ciência: Rumo à COP 26
Sediado no Vaticano, o encontro ocorreu nos dias 4 e 5 de outubro com objetivo de fazer um apelo às autoridades participantes da COP 26 – Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, realizada anualmente. Visando discutir a redução das emissões de gases do efeito estufa, a 26ª conferência será entre 31 de outubro e 12 de novembro em Glasgow, na Escócia.
Em meio a discursos e debates, o Papa e líderes das representações religiosas ortodoxa, islâmica, judaica, jainista, sikh, protestante e evangélica assinaram um documento no qual ressaltam a importância do comprometimento dos países para alcançar as metas climáticas. O texto aponta que os Estados responsáveis por parcelas significativas de emissões de gases do efeito estufa devem fornecer um “apoio financeiro substancial” às comunidades mais vulneráveis à crise climática. Os religiosos, por sua vez, comprometeram-se a promover iniciativas educacionais e culturais com o intuito de desenvolver uma consciência ambiental que possa levar seus fiéis a terem estilos de vida mais sustentáveis.
Após a assinatura, o diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé Matteo Bruni, convidou os presentes a um momento de oração “levando no coração sobretudo os mais pobres e marginalizados, aqueles que primeiramente e de maneira mais forte sofrem os danos causados pelas mudanças climáticas”. Os líderes religiosos realizaram orações silenciosamente, cada um de acordo com seu próprio credo.
O documento foi entregue pelo Pontífice ao presidente da COP26 Alok Sharma, e ao Ministro das Relações Exteriores da Itália Luigi Di Maio. As três páginas do discurso proferido pelo Papa na ocasião também foram entregues.
Imagem: reprodução do YouTube
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Bereia classifica como verdadeiras as postagens em mídias sociais sobre aparticipação do Bispo Presidente da Assembleia de Deus – Ministério de Madureira Abner Ferreira, no evento “Fé e Ciência: Rumo à COP 26” no Vaticano, liderado pelo Papa Francisco. A presença de Abner Ferreira foi registrada em suas mídias sociais e confirmada nas mídias do Vaticano.
As últimas pesquisas de opinião pública de diferentes institutos têm registrado um derretimento do apoio do segmento cristão, em especial o evangélico, ao governo Bolsonaro. Quem vive o cotidiano e a carestia que o aflige (compra comida, remédios, paga contas, usa transporte público, entre os muitos gastos) se sente traído pelo não cumprimento das promessas de um “Brasil acima de tudo”. E, entre cristãos e cristãs, não são poucos os que avaliam que Deus não está “acima de todos” nesta situação.
O grupo cristão ainda segue como base forte e privilegiada de apoio do governo, afinal, os 29% do segmento evangélico que atribuem “bom e ótimo” ao governo não são desprezíveis. Tornou-se imprescindível, portanto, como estratégia de superação das baixas de apoio, manter esta base. Com isto, a disseminação de conteúdo falso e enganoso com vistas à manutenção e à ampliação do apoio de cristãos ao governo segue com força.
Esta preocupação levou a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), uma organização que atua na promoção, na defesa e na garantia de direitos no Brasil, a dedicar atenção ao enfrentamento das popularmente denominadas “fake news”. Ou seja, as mentiras. Estas mensagens com conteúdo falso e enganoso que circulam amplamente entre cristãos, por sites gospel e por mídias sociais, são agora tema da campanha anual da CESE, a Primavera pela Vida.
Criada por igrejas cristãs há 48 anos, a CESE realiza esta campanha na primavera, desde os anos 2000, pela qual oferece estudos e reflexões inspirados em demandas sociais prementes. “Buscar a Verdade: Um Compromisso de Fé” é o tema da campanha Primavera pela Vida de 2021.
Tive a honra de participar do evento de lançamento como pesquisadora do tema e editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias (em ambientes digitais religiosos), quando apresentei um estudo sobre o tema (a gravação pode ser acessada aqui). Na ocasião foi lançada a publicação “Buscar a Verdade: Um Compromisso de Fé” (que pode ser baixada aqui).
Pesquisas mostram como o pânico em torno da moralidade sexual, somado à antiga falácia da “ameaça comunista”, foram importantes para garantir o apoio de cristãos à eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Durante o primeiro ano do governo do ex-capitão estas pautas ainda foram fortes, em especial na sustentação dos chamados ministérios ideológicos da Educação e o da Mulher, Família e Direitos Humanos. Estas pautas foram também aplicadas na campanha eleitoral para os municípios em 2020, mas com menor incidência. A não-reeleição de Marcelo Crivella no Rio de Janeiro, que fez farto uso destes conteúdos na campanha, mostra que o efeito destes conteúdos falsos e enganosos já não é mais o mesmo. Pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (ISER) a ser publicada em breve mostra bem isso.
Quais são, então, os temas fortes que têm alimentado a busca de apoio ao governo Bolsonaro entre cristãos neste momento em que ele completa mil dias e se encontra com baixíssima aprovação? De acordo com as checagens realizadas pelo Bereia, durante o último ano, mensagens sobre a covid-19 alimentaram o pânico e a ideia da “ameaça comunista” por conta de ênfases em relação à China (origem do vírus e de vacinas). Outra temática muito disseminada tem sido a da liberdade religiosa, que estaria em risco por conta do que passou a ser denominado “cristofobia”. O discurso de Jair Bolsonaro na ONU em 21 de setembro, com acenos sobre concessão de vistos a ‘cristãos afegãos’ e defesa da liberdade e da família tradicional expressa bem isso.
Este tema foi base para os atos de apoio ao governo em 7 de setembro passado, quando se reclamava o direito à liberdade que estaria sendo negada por conta de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) às quais governo e manifestantes se opõem. Há um ano eu já escrevia neste espaço sobre a liberdade religiosa. Afirmei naquele setembro de 2020, que no Brasil, se seguirmos a lógica dos fatos, o termo “cristofobia” não se aplica, por conta da predominância cristã no país.
Casos de perseguição religiosa que atingem este grupo religioso são pontuais e são reflexos de vários aspectos. Um deles é a ignorância e do preconceito contra evangélicos. Outro é a repressão a ações por justiça (como o que ocorre com o padre Júlio Lancelloti em São Paulo). E ainda os atentados a símbolos e templos católico-romanos por extremistas evangélicos.
É sempre bom lembrar que perseguição religiosa recorrente no Brasil quem sofre mesmo são as religiões de matriz africana. Relatórios do governo federal até 2015 mostram isto, como fruto de histórica demonização destas religiões por conta da hegemonia cristã exclusivista, e também do racismo estrutural, por serem expressões de fé da cultura negra.
Cristãos têm plena liberdade no Brasil. Os conservadores extremistas que pedem mais liberdade usam a palavra para falarem e agirem como quiserem contra os direitos daqueles que consideram “inimigos da fé”. Ou seja, contra ativistas de direitos humanos, partidos de esquerda, movimentos por direitos sexuais e reprodutivos, religiosos não cristãos e até mesmo cristãos progressistas.
Daí o conteúdo falso postado por supostas mídias de notícias e em mídias sociais, que afirma que o STF está freando a liberdade de cristãos e promovendo perseguição religiosa. Referem-se a quando a Corte decide pelo direito à união estável homoafetiva, que homofobia seja tipificada como crime de racismo, que terceiros (incluindo missões religiosas) sejam proibidos de entrar em aldeias indígenas isoladas durante a pandemia de covid-19. Vale lembrar que o STF atua para que a Constituição Brasileira seja cumprida, garantindo direitos a todos independentemente de vinculação religiosa, pois esta não rege as leis do país, que é laico.
A iniciativa da CESE na Primavera para Vida é muito relevante. Ela se une a projetos como o Coletivo Bereia, a Plataforma Religião e Poder do ISER e outros que tomam grupos religiosos como componentes importantes na arena pública. Eles colaboram para o enfrentamento do tráfico de mensagens que mantém cristãos presos em uma rede de mentiras. Eles devem ser amplamente apoiados e divulgados.
A relação entre religião e política, presente no Brasil desde 1500, quando a Igreja Católica aportou nestas terras com os colonizadores portugueses, deixou de ser unicamente objeto de estudos acadêmicos e ganhou as páginas de jornais e revistas e discussões populares em mídias sociais e outros espaços.
Fala-se muito do que alguns chamam de “ameaça” evangélica, outros, ao contrário, de “bênção de Deus”. As avaliações díspares respondem à intensificação da presença de cristãos na política, estimulada pela aliança do governo Bolsonaro com lideranças desse segmento religioso. Esse processo tomou a forma da ocupação de cargos no Poder Executivo, rearticulação de alianças o Poder Legislativo, e a emersão de personagens do Poder Judiciário identificados com a fé cristã que interferem em políticas e realizam ações públicas (vide a controversa Operação Lava Jato).
A ênfase no poder alcançado pela parcela ultraconservadora do segmento evangélico é, de fato, necessária na discussão sobre religião e política. Há uma trajetória de quase 35 anos da existência de uma “bancada evangélica” no Congresso Nacional. Ela foi potencializada durante a presidência de Eduardo Cunha (MDB/RJ) na Câmara dos Deputados, por conta da ênfase em pautas da moralidade sexual e defesa da “família tradicional”. E foi essa potência da religião no Congresso que uniu forças com uma direita ressentida, nada religiosa, para tirar Dilma Rousseff da Presidência, no já consagrado, historicamente, golpe contra a democracia de 2016.
Não é surpresa que candidatos e profissionais de marketing tenham detectado há algum tempo a tendência e, a cada eleição, seja frequente a prática de “pedir a bênção” a líderes evangélicos identificados tanto com a direita como com a esquerda. Também são recorrentes as pressões sobre candidatos e partidos, que nada têm de religiosos, a assumirem compromissos com a defesa de pautas da moralidade religiosa, em clara instrumentalização da religião cristã para conquista de corações e mentes de fiéis.
Porém, quando quem discute se fixa apenas nesse protagonismo evangélico, esconde o debate necessário sobre o lugar do Catolicismo e sua influência nas pautas públicas por séculos. Oculta também a presença das religiões de matriz africana no espaço público e sua demanda por liberdade religiosa, por superação da intolerância e por direitos da população afrodescendente. E ainda se menospreza o espaço ocupado por pessoas e grupos vinculados ao Espiritismo e ao Judaísmo, com a eleição de pares para cargos públicos e busca de influência em temas de interesse.
Como pesquisadora sobre “religião e política” há muitos anos, não é difícil observar que lendo, assistindo e ouvindo o que se torna público, em espaços acadêmicos, jornalísticos e populares, ainda há muita incompreensão e equívocos. Em parte, esses são provocados pelo desconhecimento da história e das dinâmicas que envolvem religiões no País, por outro lado são movidos por imaginários e preconceitos.
Entre os equívocos e incompreensões circulantes, por exemplo, estão a confusão entre as noções de Frente Parlamentar e Bancada; desencontros sobre a composição de uma “Bancada da Bíblia”; listas duvidosas de integrantes da chamada Bancada Evangélica; a imagem incorreta de que neopentecostais ocuparam o governo federal; a restrição das análises ao segmento evangélico com desconsideração às movimentações de lideranças católicas nos três poderes; silêncio sobre as articulações políticas das comunidades tradicionais de matriz africana e de outros grupos religiosos minoritários no País; ignorância em relação às diferentes tendências ideológicas que movem esses grupos religiosos em sua pluralidade, restringindo avaliações e agrupando personagens e fiéis sob o rótulo de “alienados” e “conservadores”.
Toda a desinformação circulante acaba ignorando o significado da intensa presença de grupos religiosos que atuam como ativistas políticos nos mais diversos movimentos e nas mídias sociais. É um contexto em que “religião” é, certamente, um tema de fundo, alimentador de campanhas e debates contundentes não só em processos eleitorais, mas em diferentes pautas. Exemplo é a campanha pública de evangélicos, católicos e judeus de esquerda, contra o Projeto de Lei 490, em votação no Congresso Nacional, que ameaça o direito de indígenas a terras demarcadas com base na Constituição. Outro exemplo é a articulação de evangélicos para convocar apoiadores do Presidente da República para atos de rua no 7 de setembro.
Desinformação sobre religião e política em circulação também tem relação com o tema do Estado laico. Em muitos espaços ele é apresentado como ameaçado por conta desta presença mais intensa de grupos religiosos no espaço público. Será mesmo? Por que discutir “Estado laico” apenas quando evangélicos ganham protagonismo na política? O Estado laico sempre foi frágil em nossas terras a começar com o poder da hegemonia católica, passando pela intolerância em relação às religiões de matriz afro (resultante do racismo estrutural), chegando à força do ultraconservadorismo evangélico no tempo presente.
Grupos religiosos no espaço público precisam ser vistos como indício do próprio avanço da democracia (com ambiguidades, é claro) e da pluralidade religiosa relacionada ao direito humano da liberdade de crença. O que deve ser questionado e enfrentado como ameaça ao Estado laico, é que um único grupo religioso imponha sua teologia e ética religiosa como regra para todos, sejam religiosos (com toda pluralidade que vivenciam) e não-religiosos. Da mesma forma, o Estado laico também está em perigo quando princípios religiosos são instrumentalizados por líderes e grupos políticos com vistas à busca de votos ou de apoio a implementação de necropolíticas. Neste caso é a laicidade do Estado e a democracia que de fato, estariam colocados em risco.
Para contribuir na superação da desinformação, dos equívocos e incompreensões sobre a relação entre religião e política no Brasil, está à disposição a Plataforma Religião e Poder. O Instituto de Estudos da Religião (ISER), que há mais de cinco décadas presta serviço a pessoas e grupos que estudam e atuam em espaços relacionados às religiões, lançou, em 2020, esta plataforma online para acesso público https://religiaoepolitica.org.br/, pela qual apresenta dados, análises e reportagens estruturadas sobre o tema.
A Plataforma Religião passou por reformulações significativas nos últimos meses e foi relançada nesta semana. Antes dedicada a analisar a composição das frentes com identidade religiosa do Congresso Nacional e monitorar suas pautas, a plataforma ampliou sua abrangência e será atualizada semanalmente para monitorar a participação de agentes religiosos nos três poderes da República e em processos eleitorais. Uma novidade é a seção Glossário, desenvolvida para explicar em linguagem acessível termos essenciais ao debate sobre religião e espaço público que são pouco compreendidos por grande parte da população brasileira. Os termos “Laicidade” e “Estado Laico” inauguram o espaço, que terá um novo termo publicado a cada mês.
Religião e política devem ser discutidas, sim! Isso deve ser feito, crítica e coletivamente, por meio de recursos responsáveis e habilitados, como a Plataforma Religião e Poder, pelos mais diferentes grupos e forças sociais que formam e informam sobre política, sobretudo, em espaços em que a fé religiosa é praticada. Afinal, neste processo está a fé, a crença, sonhos e esperanças de muita gente que acredita que há uma presença divina no meio de tudo isso.
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Foto : Isac Nóbrega/PR via Fotos Públicas
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