Eleições 2024: religiosos e políticos usam falsa perseguição a igrejas no Brasil como tema de campanha durante Marcha para Jesus de SP
Circulam em espaços digitais religiosos postagens que repercutem o discurso de Estevam Hernandes, apóstolo da Igreja Renascer em Cristo, proferido na 32ª edição da Marcha para Jesus, da qual é líder, realizada na cidade de São Paulo, em 30 de maio passado.
Organizado pela Igreja Renascer em Cristo, o evento contou com um público estimado em dois milhões de pessoas, que lotou as ruas da capital paulista para acompanhar uma série de atividades, incluindo shows e discursos de destacados nomes do cenário evangélico e político brasileiro.
Além disso, a marcha também serviu como palco para discursos políticos e demonstrações de apoio a Israel.
Em uma das manifestações dirigidas à multidão, o pastor Estevam Hernandes mencionou que, apesar do que ele considera “uma perseguição às igrejas no Brasil”, ainda foi possível reunir um grande número de fiéis para o evento, segundo a perspectiva do pastor sobre a comunidade evangélica no país.
Imagem: reprodução/X
As alegações de Estevam Hernandes foram reproduzidas pela página oficial da Marcha para Jesus na rede X (antigo Twitter), em reafirmação à suposta “perseguição à igreja”. Os vídeos reproduzem um pequeno trecho das falas do pastor, em que ele se dirige à multidão e conclama o respeito
“à luta das gerações passadas ao defenderem o evangelho no país” o que resulta na dimensão do aglomerado de “pessoas cantando os louvores a plenos pulmões”.
As declarações do líder da Igreja Renascer em Cristo foram endossadas por figuras políticas, como a vereadora evangélica paulistana Sonaira Fernandes (PL), que está em campanha para as eleições municipais 2024, e repercutiu a fala de Estevam Hernandes em suas mídias sociais.
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Bereia tem verificado que o discurso em torno de uma suposta perseguição aos fiéis evangélicos no país tem sido muito repetido e reafirmado por lideranças cristãs, especialmente em períodos eleitorais. Nesta matéria, Bereia retoma o assunto com foco nas palavras do apóstolo da Igreja Renascer e da vereadora do PL em São Paulo, e busca localizá-lo no contexto eleitoral de 2024.
A cada edição da Marcha para Jesus, observa-se a intensificação dos discursos e apelos políticos. Em 2024, observa-se uma grande presença de representantes eleitos, como os governadores do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e do Estado de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), o prefeito da cidade de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), e mais de uma dezena de prefeitos, deputados estaduais e federais.
Mesmo convidado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não participou do evento e, assim como em 2023, enviou o ministro da Advocacia-Geral da União (AGU) Jorge Messias, evangélico, que leu uma carta enviada pelo presidente.
A participação do chefe do Poder Executivo na Marcha para Jesus ocorreu apenas durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Ele marcou presença no evento como candidato em 2018 e, após eleito, compareceu às edições de 2019 e 2022. Na edição seguinte à sua eleição como presidente da República, Bolsonaro foi fotografado ao simular um gesto de fuzilamento, imagem que se tornou emblemática. Ele foi o único presidente da República a participar da Marcha para Jesus.
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Sobre a suposta perseguição a igrejas e a cristãos
Bereia já realizou checagens de diversas publicações sobre o tema, dentro e fora do país, entre elas: o falso vídeo que atribuía ao Superior Tribunal Federal (STF) o cerceamento da pregação da palavra de Deus no Brasil; a notícia sobre a prisão de pastores na Nicarágua como forma de repressão religiosa; a utilização de um relatório das Nações Unidas em prol do respeito a diversidade da comunidade LGBTQIA+ que foi manipulado para levar a crer que coibiria a liberdade religiosa.
Imagem: reprodução/Bereia
Em 14 de março passado, Bereia contribuiu para um artigo na revista Carta Capital que traz um panorama político e social do discurso da perseguição aos cristãos no Brasil e como ele está intrinsecamente ligado ao período eleitoral de 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro (PL) à Presidência do país. Bolsonaro e correligionários do espectro da direita brasileira, desde a extrema-direita até os de centro-direita, utilizaram essa estratégia como plataforma para alcançar a parcela evangélica do eleitorado, que totaliza cerca de 30% da população brasileira.
A ideia se tornou lema de campanha e foi assimilada por grupos cristãos, devido ao apelo emocional que ela acionou, com disparos em mídias sociais e abordagens em pregações religiosas pelo país afora. Nas eleições subsequentes, as municipais de 2020 e as nacionais em 2022, não foi diferente, o discurso foi retomado e volta a aparecer como tema de campanha para o próximo pleito municipal de 2024.
Em levantamento realizado pelo Bereia, em 2022, os temas que mais circularam nas checagens realizadas, em 12 meses, pelo coletivo, foram o discurso de perseguição religiosa e os tópicos relacionados às eleições, ou seja, foram os conteúdos que mais circularam em espaços digitais segundo acompanhamento da equipe.
A partir destas checagens e pesquisas, Bereia afirma que é falsa a afirmação de que haja perseguição aos cristãos no Brasil, e que as alegações de fechamento de igrejas e perseguição são estratégias de desinformação usadas por políticos e líderes religiosos para manipular o medo e influenciar o eleitorado, distorcendo a realidade e criando uma falsa sensação de vitimização.
A pesquisadora em Religião e Política Brenda Carranza, em texto para o Bereia, desmistifica o termo “cristofobia”, apontando que o termo é inadequado, visto que o Cristianismo é a religião dominante e goza de ampla liberdade no país. As alegações de fechamento de igrejas e perseguição são estratégias de desinformação usadas por políticos e líderes religiosos para manipular o medo e influenciar o eleitorado, distorcendo a realidade e criando uma falsa sensação de vitimização.
Por que Estevam Hernandes e Sonaira Fernandes repercutem o falso discurso da perseguição a cristãos?
De acordo com as checagens do Bereia, líderes religiosos e políticos repercutem o falso discurso da perseguição a cristãos para mobilizar a comunidade evangélica e fortalecer apoios. Esse discurso aumenta a visibilidade e o apoio de figuras políticas, como o caso de Sonaira Fernandes, que é apontada para compor a chapa de eleições municipais de São Paulo.
Com o avanço e a democratização do acesso à internet, as mídias sociais se tornaram instrumentos chave de marketing político. Desde 2018, pesquisadores observam o recurso à desinformação para alavancar candidaturas. Dessa forma, durante o período eleitoral, há um crescente número de políticos que propagam desinformação como forma de autopromoção em época de eleições, de todos os níveis da administração pública. Essa prática pode ser considerada como uma nova forma de “convencer e fazer política” em ambientes religiosos com lideranças políticas de um grupo específico.
De acordo com universidades dos Estados Unidos, a Universidade de Nova Iorque (NYU) e a da França, a Universidade Grenoble Alpes (UGA), a desinformação gera seis vezes mais engajamento do que as notícias embasadas em fatos reais. Esse é o resultado de uma pesquisa realizada entre 2020 e 2021, com a análise de mais de 2,5 mil páginas de notícias no Facebook.
Quando o tema é religião, é possível compreender que, ao compartilharem de uma mesma perspectiva, de confiarem em seus irmãos de fé e de seus mentores espirituais, o senso de comunidade e união refletem uma semelhança no modo de pensar, agir e de se comportarem, conforme pesquisa do Instituto NUTES/UFRJ, que gerou o projeto Bereia. Mesmo quando há questionamentos sobre autenticidade, dúvidas se o conteúdo de fato é plausível, a tendência é de adotar o que é mais alinhado com seus valores, suas crenças e a comunidade que as cercam.
A Marcha de Jesus como palco político
A Marcha para Jesus é avaliada em círculos religiosos como o “maior evento popular cristão do mundo”. Ela demonstra claramente a capacidade de mobilização e a força da comunidade evangélica no país. No Brasil, a primeira Marcha para Jesus aconteceu em São Paulo, em 1993, e reuniu 350 mil pessoas. É um evento que, a cada ano, se torna mais palco político e campo de disputa dominado por lideranças religiosas ultraconservadoras e políticos extremistas de direita.
Segundo a pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Christina Vital, a esquerda ainda falha na comunicação com esse público. Enquanto a direita tem trabalhado diariamente dedicando tempo, recursos e criado iniciativas para engajar os evangélicos, a esquerda encontra uma grande dificuldade em firmar diálogo e parcerias com esses grupos religiosos.
É nesse sentido que temas como a falsa perseguição sistemática a cristãos no Brasil passa a ser utilizado como estratégia eleitoral no evento. A publicação da vereadora paulistana Sonaira Fernandes é um exemplo.
Quem é Sonaira Fernandes?
Sonaira Fernandes de Santana (PL-SP) é, desde 2020, vereadora na Câmara Municipal da cidade de São Paulo. Eleita pelo Republicanos, desde 2014 atua no apoio ao deputado federal de Eduardo Bolsonaro (PL-SP), em campanhas e em cargos comissionados no gabinete dele. Foi eleita como “a vereadora da família Bolsonaro” e das pautas que defende estão a liberdade e defesa da família, da fé e dos princípios cristãos.
De vinculação confessional não identificada, a vereadora evangélica define-se, em seus perfis de mídias sociais, como cristã, conservadora, pró-vida, defensora da família e da liberdade. Em 2023 foi nomeada pelo governador Tarcísio Freitas (PL) como secretária de Políticas para a Mulher do Estado de São Paulo. Deixou o cargo em abril passado, quando reassumiu o mandato de vereadora, tendo em vista as eleições municipais de 2024. O noticiário alinhado à direita extremista tem divulgado que o ex-presidente Jair Bolsonaro trabalha nos bastidores para indicar a vereadora para compor como vice a chapa da reeleição de Ricardo Nunes (MDB) à prefeitura de São Paulo.
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Comparada à ex-ministra e senadora Damares Alves, Sonaira Fernandes usa sua página pessoal nas mídias sociais para críticas duras ao governo federal, à esquerda, ao feminismo e para defender a pauta antiaborto. Suas ações na Câmara Municipal e nas redes, indicam que a política segue o modus operandi da direita extremista no país, que, desde as eleições de 2018, utiliza da propagação de conteúdos falsos e enganosos dirigido a grupos religiosos, com referências ao fechamento de igrejas no Brasil, ao cerceamento da fé cristã e à ameaça aos valores tradicionais da família em campanhas eleitorais.
Imagem: reprodução/Desinformante
Classificada como demasiadamente extremista até mesmo pelo prefeito paulistano Ricardo Nunes para compor com ele a chapa de reeleição à Prefeitura capital, Sonaira Fernandes marcou presença na edição 2024 da Marcha para Jesus. Na página pessoal do X (antigo Twitter), a ex-secretária repercutiu o discurso do apóstolo Estevam Hernandes no evento e apregoou que, mesmo numa ‘época em que a igreja está sendo perseguida’, o evento ficou marcado como um dos maiores da história.
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Bereia reafirma, o que já desenvolveu em outras matérias de checagem e análises, que o tema da perseguição aos cristãos no Brasil é uma falsa alegação, usada mais intensamente como campanha de convencimento eleitoral, desde as eleições de 2018, com recurso ao medo como principal estratégia política.
A Marcha para Jesus, evento evangélico com milhões de participantes, ao consolidar-se como veículo de propagação política da direita e da direita extremista do país, promove e dá espaço a discursos que lançam mão de conteúdo desinformativo e propagador de medo e insegurança com fins eleitorais.
Bereia chama leitores e leitoras para a importância da postura crítica frente ao uso da religião e dos fiéis, suas crenças e emoções, em campanhas eleitorais. Todo e qualquer discurso que faça uso de temas e símbolos relacionados à fé neste ano de eleições, da parte de líderes religiosos, de candidatos e seus apoiadores, deve ser verificado antes de ser assimilado e compartilhado.
Referências de checagem:
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Agência Pública. https://apublica.org/web-stories/grupos-da-igreja-no-whatsapp-sao-usados-para-disseminar-desinformacao/ . Acesso em: 4 jun. 2024.
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https://coletivobereia.com.br/cristofobia-perseguicao-a-cristaos-e-fechamento-de-igrejas-estao-entre-os-temas-com-mais-desinformacao-em-espacos-religiosos-nestas-eleicoes/ . Acesso em: 3 jun. 2024.
https://coletivobereia.com.br/montagem-que-denuncia-perseguicao-do-stf-a-cristaos-tem-conteudo-falso/ . Acesso em: 3 jun. 2024.
https://coletivobereia.com.br/portal-de-noticias-propaga-condenacao-de-pastores-na-nicaragua-como-perseguicao-religiosa/ . Acesso em: 3 jun. 2024.
https://coletivobereia.com.br/site-desinforma-contra-relatorio-apresentado-a-onu-sobre-abusos-da-liberdade-de-religiao-contra-direitos-lgbt/ . Acesso em: 3 jun. 2024.
https://www.brasildefato.com.br/2024/05/27/bolsonaro-quer-sonaira-fernandes-para-vice-de-nunes-mas-prefeito-de-sp-resiste-ao-nome-por-ser-bolsonarista-demais . Acesso em: 4 jun. 2024.
Câmara Municipal de São Paulo. https://www.saopaulo.sp.leg.br/vereador/sonaira-fernandes/ . Acesso em: 3 jun. 2024.
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