*Texto originalmente publicado na Carta Capital.
Durante os anos tenebrosos que o país viveu sob um governo de extrema-direita (2019-2022), passamos a lidar com uma situação nunca experimentada na arena pública: o uso da mentira por lideranças políticas, não apenas como estratégia de comunicação para convencer eleitores e conquistar apoios, mas como política de Estado.
A campanha eleitoral de 2018 abriu caminho para que mentiras, falácias e falsidades passassem a ser fabricadas e propagadas de forma eletrônica, com amplíssima circulação, por meio de um ecossistema digital. Ele envolve seres humanos e máquinas, gente de verdade e gente falsa em diferentes modalidades (perfis falsos e bots), por meio de diferentes conteúdos personalizados, a partir de motivações e imaginários diferentes e caminhos/formatos diferentes, especialmente nas mídias sociais.
Foi com base nela que um líder extremista foi eleito, em 2018, para governar o Brasil por quatro anos, sem apresentar qualquer plano de governo. Foi o passo para que tal estratégia se transformasse em política de governo: alimentar o apoio do eleitorado que o alçou ao poder, com o mesmo tipo de comunicação assentada em mentira, falsidade e falácia, para garantir sustentação.
Passamos a assistir, então, à atuação do que foi denominado “Gabinete do Ódio”, que agia de dentro do Palácio do Planalto, desde janeiro de 2019. Investigações da Polícia Federal, apresentadas ao Supremo Tribunal Federal em 2022, mostram que tal estrutura seria formada por auxiliares do presidente da República, articulada numa espécie de milícia digital, que produzia conteúdos e/ou postagens em mídias sociais atacando pessoas e instituições (alvos) e conquistando outras para apoio a certas pautas. O grupo também atuou para disseminar notícias falsas sobre medicamentos ineficazes contra a covid-19, o chamado “tratamento precoce”, o que promoveu contaminação e morte de muitas pessoas, durante os trágicos anos da pandemia.
Foi justamente nesse período que identificamos a construção de mensagens falsas e falaciosas, especificamente para o público cristão, alvo importante para o apoio daquele governo. Já eram conhecidas, desde as eleições de 2018, as falsidades em torno da moralidade sexual, de posições anti-justiça de gênero e alarmismos sobre uma suposta destruição da família como instituição.
Em 2020, ano de eleições municipais, uma nova falácia foi plantada, com amplo apelo entre grupos cristãos: a ideia de que este grupo religioso estaria sob perseguição no Brasil. Foi até construído um termo, “cristofobia”, como sinônimo de práticas ostensivas de aversão a este grupo religioso.
A falsidade foi lançada pelo próprio presidente da República em discurso oficial, quando se pronunciou na sessão de abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 21 de setembro de 2020. Entre as várias referências enganosas no discurso, constrangedor para um chefe de Estado, apareceu a menção à “cristofobia”, como uma das grandes questões a serem enfrentadas no mundo, atrelada a outra, a “liberdade religiosa”. Esta menção representou um forte aceno aos seus apoiadores de identidade cristã, católicos e evangélicos brasileiros e foi utilizada amplamente até a campanha pela reeleição, em 2022.
Perseguição a cristãos no Brasil é uma ideia inventada, com a certeza de assimilação da parte de cristãos, especialmente de evangélicos. A maior incidência deste tema foi observada a partir de agosto de 2021, quando pesquisas eleitorais passaram a mostrar a força da campanha de oposição contra a reeleição do então presidente. Cresceu, então, o número de publicações em mídias sociais, que enfatizavam a ameaça de fechamento de igrejas com a possível vitória das esquerdas, mais as supostas tentativas de silenciamento de lideranças religiosas e de diretores de escola e professores cristãos, opostos a pautas referentes à diversidade sexual e à pluralidade religiosa.
Em 2023, mesmo sob novo governo, a mentira continua a ser utilizada pelos grupos de oposição, extremistas apoiadores do ex-presidente, para plantar a ideia de que cristãos estão e serão cada vez mais perseguidos, já que a nova liderança pertence à esquerda política, “inimiga da fé”
As milícias digitais que inventaram este tipo de conteúdo, sabem que a perseguição a cristãos no Brasil, sob o rótulo de “cristofobia”, é uma retórica que afeta o imaginário evangélico do cristão perseguido como prova de fidelidade ao Evangelho. Tem apelo ainda por conta da ideia das ameaças frequentes dos inimigos da fé – elemento muito desenvolvido nas igrejas e nas canções gospel popularizadas nas mídias e nos cultos.
O fato é que o termo “cristofobia” e a noção de perseguição a cristãos não se aplicam ao Brasil, por conta da predominância deste grupo religioso no país, onde há plena liberdade de prática desta expressão de fé. Grupos cristãos sofrem perseguição, sim, seja em países em que são minoria, seja por se colocarem a favor da justiça. Da mesma forma, há perseguição a outros grupos religiosos em várias parte do mundo. O caso dos muçulmanos em Mianmar, é expressivo, assim como o dos budistas do Tibete, o das religiões tribais na Índia, o dos muçulmanos e cristãos na Palestina, entre outros.
Por aqui, existem, sim, registros de casos pontuais de intolerância contra cristãos, especialmente evangélicos, marcados por discriminação de cunho religioso, conflitos, tensões, abusos, ataques. Porém, são situações isoladas, que não representam uma ação coletiva ou mesmo política contra este segmento religioso.
Estes casos isolados são reflexos da ignorância e do preconceito contra evangélicos, e mesmo de repressão a ações por justiça (como o que ocorre com o padre Júlio Lancelloti, em São Paulo). Também têm relação com situações de intolerância intracristã, por exemplo, nos atentados a símbolos e templos católicos por extremistas evangélicos. Ainda, dizem respeito à perseguição a pessoas dentro das igrejas, discriminadas sob a acusação de serem “comunistas”, por conta de fazerem opção política pelas esquerdas.
Quem sofre perseguição religiosa recorrente no Brasil são as religiões de matriz africana, como mostram relatórios oficiais, fruto de histórica demonização destas religiões por conta da hegemonia cristã exclusivista, e também do racismo estrutural, por serem expressões de fé que brotam da cultura negra.
As milícias digitais manipulam a pregação clássica cristã de combate a inimigos e do sofrimento de todas as consequências por amor à fé, para alimentar disputas no cenário religioso e político. Isto se configura uma estratégia de políticos e religiosos extremistas que clamam por liberdade e usam desta expressão, com interesse, na verdade, não no direito das pessoas de fé praticarem sua religião.
O que desejam é agir livremente com voz e práticas ofensivas e contra os direitos daqueles que consideram “inimigos da fé”, diga-se, pessoas com opiniões e orientações diferentes de certas visões de mundo ancoradas na religião. Incluem-se neste grupo de “inimigos”, em especial, ativistas, partidos políticos e instituições que defendem direitos sexuais e reprodutivos e comunidades tradicionais negras e indígenas.
Perseguição a cristãos e cristofobia não existem no Brasil. São parte de um discurso construído, vazio de concretude, com vistas à manipulação política da fé.