Deputado federal evangélico Nikolas Ferreira promove desinformação em discurso na Câmara dos Deputados
No último 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) subiu à tribuna da Câmara dos Deputados e, aproveitando-se da data em homenagem às mulheres, proferiu discurso que gerou forte reação negativa nas redes digitais, e por parte de políticos e grupos sociais. Ironizando a realidade de pessoas transgênero, o deputado vestiu uma peruca amarela e passou a falar como se fosse uma mulher de nome “Nicole”. A fala repercutiu como ofensa não apenas às mulheres trans, mas também às mulheres em geral e à sociedade brasileira.
Eleito na esteira do avanço conservador capitaneado pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro, o filho e neto de pastor Nikolas Ferreira, vinculado à Comunidade Evangélica Graça e Paz, foi o deputado federal mais votado em 2022, com campanha em que se apresentou, genericamente, como “cristão”. Pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (ISER) que levantou a identidade religiosa de parlamentares eleitos para o mandato 2023-2017 aponta que, desde as eleições municipais de 2020, políticos passaram a utilizar o termo genérico “cristão” como estratégia para alcançar diferentes segmentos da sociedade que se identificam com as moralidades e valores cristãos. Ele é conhecido por suas polêmicas envolvendo temas religiosos, pautas anti-feministas e LGBTQIAP+ e a defesa de posições radicais.
Bereia checou a fala do deputado e constatou, entre outros temas, falsas menções a “banheiro unissex”, a acusação de pedofilia à intelectual feminista Simone de Beauvoir (1908-1986) e interpretações pessoais do papel supostamente reservado às mulheres na sociedade.
Banheiro unissex
Em seu discurso, o deputado Nikolas Ferreira fez alusão aos “banheiros unissex”, afirmando que defendia a liberdade “de um pai recusar (…) um marmanjo entrar no banheiro da sua filha sem você ser considerado um transfóbico”. A frase apela para uma das mais utilizadas fake news em campanhas eleitorais nos últimos anos. Ao abordar o assunto, o deputado do PL cria uma situação hipotética de abuso infantil, utilizando o medo como principal recurso retórico.
A fake news do banheiro unissex foi amplamente utilizada na campanha presidencial de 2022, em que apoiadores do candidato Jair Bolsonaro atribuíam a Luís Inácio Lula da Silva um falso projeto de implementar banheiros compartilhados por homens e mulheres nas escolas infantis brasileiras.
Em entrevista à Folha de São Paulo, a pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Viviane Vergueiro, afirma que “não necessariamente a demanda da população trans parte da bandeira de banheiros multigênero ou unissex. Ela parte da ideia de que as pessoas trans, como todas as pessoas, têm o direito de utilização dos espaços públicos”.
No entanto, assim como a fake news do “kit gay”, a do banheiro unissex segue sendo utilizada por políticos conservadores para manter suas bases de apoio permanentemente engajadas contra pautas associadas aos grupos progressistas.
A narrativa dos banheiros compartilhados tem sido cada vez mais frequente em diversas disputas ideológicas. Conforme Bereia já publicou, sites religiosos e políticos já exploraram o tema de maneira inadequada, acusando adversários políticos sem apresentar provas ou fontes que sustentem suas alegações.
Simone de Beauvoir e pedofilia
A fala do deputado Nikolas Ferreira, proferida no Dia Internacional da Mulher, contemplou uma crítica ao feminismo. Entre outros trechos questionáveis do ponto de vista factual, o deputado acusou a intelectual francesa Simone de Beauvoir, célebre feminista, de apoiar a pedofilia.
O parlamentar evangélico fez referência ao controverso episódio, ocorrido em 1977, em que vários intelectuais, incluindo Beauvoir, defenderam, perante o Parlamento francês, a abolição da idade de consentimento para o ato sexual, o que não significa defesa da pedofilia.
A pedofilia é considerada uma doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde os anos 1960. Segundo reportagem publicada pelo TAB/UOL, são considerados pedófilos – ou seja, portadores da doença pedofilia – pessoas que sentem atração sexual compulsiva por crianças abaixo de 13 anos. A equivocada associação da doença com o crime contra a dignidade sexual da criança, previsto no arcabouço jurídico brasileiro, é utilizada pela extrema direita no intuito de confundir e causar pânico, conforme Bereia checou.
O deputado utilizou-se do caso específico na França, em 1977, desconhecido por boa parte da população, para menosprezar o feminismo enquanto luta pela justiça de gênero. “Mulheres, vocês não devem nada ao feminismo, pelo contrário”, afirmou.
Trata-se de uma polêmica antiga no Brasil e que já havia demonstrado seu poder de promover agitação ideológica. Os ataques contra Simone de Beauvoir avolumaram-se após o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) abordar, em 2015, a obra da escritora em uma de suas questões. Nos dias seguintes à realização do exame, uma enxurrada de críticas circulou na internet.
Conforme consta em matéria da BBC divulgada à época, o verbete sobre Beauvoir no site Wikipedia foi alterado diversas vezes, ridicularizando a feminista. Segundo a BBC, de 250 visitas diárias, o verbete passou para 35 mil visitas em um só dia e as edições foram tantas que o site restringiu a possibilidade de alteração do texto, considerando o que ocorreu como “vandalismo excessivo”.
Violência política de gênero no Dia Internacional da Mulher
Em outro trecho de sua fala na tribuna, o deputado do PL dirige-se às mulheres: “retomem sua feminilidade, tenham filhos, amem a maternidade, formem a sua família porque, dessa forma, vocês colocarão luz no mundo e serão, com certeza, mulheres valorosas”. Segundo a avaliação do Instituto de Estudos da Religião (ISER), utilizando a religião como alicerce de posições políticas conservadoras – o deputado escreveu o livro “O Cristão e a Política”, em que reúne o conteúdo de suas palestras – Nikolas Ferreira valeu-se do Dia Internacional da Mulher para, a partir de suas crenças pessoais, ditar às mulheres como proceder em suas vidas.
Segundo matéria da BBC, o relatório “Evangélicos nas redes”, elaborado pelo NetLab, grupo de pesquisa da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), identificou que os conteúdos divulgados por Nikolas Ferreira caracterizam-se por propor uma oposição entre evangélicos e figuras ligadas à esquerda do espectro político, sejam políticos ou meros apoiadores. O grande alcance que possui, materializado no expressivo número de votos que obteve no pleito de 2022 – 1,47 milhão de votos, recorde histórico para o cargo de deputado federal –, está relacionado, entre outros fatores, à vinculação da política à religião.
No discurso de 8 de março, Ferreira, enquanto ataca pautas progressistas, defende referências religiosas anti-feministas com base na sua interpretação e na sua opinião, ignorando um fenômeno nada novo na religião: o feminismo de orientação cristã, como recordam as pesquisadoras do ISER. Mundo afora, mulheres protestantes e católicas dedicam-se a uma leitura feminista da Bíblia, ressaltando figuras bíblicas femininas que fogem do modelo de submissão e devoção apregoado por muitos.
Conforme divulgado pelo jornal El País em matéria publicada em 2018, o livro “Uma Bíblia das Mulheres”, desenvolvido por teólogas e historiadoras, apresenta um olhar feminista sobre os ensinamentos bíblicos. Na reportagem, Lauriane Savoy, codiretora do projeto argumenta que “pode-se ler a Bíblia sendo feminista, e inclusive a leitura da Bíblia pode nos nutrir como feministas”.
O feminismo na religião está presente também no Brasil. Odja Barros, que se diz uma “feminista da Bíblia” e é pastora da Igreja Batista do Pinheiro, em Maceió (AL), recebeu apoio do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil (Conic) após sofrer ameaças de morte por ter celebrado um casamento homoafetivo. Em entrevista ao blog Universa, do UOL, a pastora afirma que “argumentar dizendo ‘É bíblico’ é terrível. Impede o diálogo, é simplesmente para fechar uma postura conservadora e encerrar a conversa”.
Existem, ainda, grupos como o Evangélicas pela Igualdade de Gênero que, no Facebook, descreve-se como uma “ação coletiva em que as mulheres tomam controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida e de seu destino”.
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O discurso proferido pelo deputado federal evangélico Nikolas Ferreira (PL-MG) na tribuna da Câmara dos Deputados no dia 8 de março foi checado por Bereia, que considerou o conteúdo veiculado como enganoso. As informações expostas necessitam de correções, substância e contextualização. Além disso, faz uso do pânico moral para captar apoios e confunde o público dando caráter de informação a interpretações e posições pessoais exclusivistas de leitura da Bíblia, em detrimento das outras abordagens existentes.
O parlamentar exerceu seu direito de discursar para o plenário, utilizando-se de sensacionalismo com discurso transfóbico e de desrespeito à história das lutas das mulheres por direitos, para conquista de audiência, especialmente na data em que o fez, em que se comemorou o Dia Internacional da Mulher.
Referências:
Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=XTpCxJl3WLw Acesso em: 10 mar 2023
CNN https://www.cnnbrasil.com.br/politica/apos-discurso-em-que-disse-se-sentir-mulher-deputado-nikolas-ferreira-multiplica-numeros-de-seguidores-nas-redes/ Acesso em: 10 mar 2023
Bereia
https://coletivobereia.com.br/sites-religiosos-e-politicos-exploram-caso-de-suposto-afastamento-de-diretor-de-escola-de-sorocaba-por-transfobia/ Acesso em: 10 mar 2023
https://coletivobereia.com.br/etiquetas/descriminalizar-a-pedofilia/ Acesso em: 10 mar 2023
Folha de São Paulo https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/10/banheiros-unissex-viram-pauta-de-campanha-e-lula-e-bolsonaro-se-dizem-contra.shtml Acesso em: 10 mar 2023
BBC https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/10/151028_simone_beauvoir_wikipedia_enem_rb Acesso em: 10 mar 2023
El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/06/cultura/1544116577_543552.html Acesso em: 10 mar 2023
BBC
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63136759 Acesso em: 10 mar 2023
Twitter ISER https://twitter.com/isernarede/status/1633887087995879427?t=D7RKPAyL6cwkVieWM8czIA&s=19 Acesso em: 10 mar 2023
Youtube
https://www.youtube.com/watch?v=AfYNI0QvdiM Acesso em: 10 mar 2023
Centro Feminista de Estudos e Assessoria https://www.cfemea.org.br/index.php/pt/?view=article&id=6273:ele-fez-um-discurso-criminoso-diz-duda-salabert-sobre-nikolas-ferreira&catid=567:lgbtqi Aceeso em: 10 mar 2023
Câmara dos Deputados https://www.camara.leg.br/noticias/911272-nikolas-ferreira-e-o-deputado-mais-votado-do-pais-com-147-milhao-de-votos/ Acesso em: 10 mar 2023
UOL
https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/02/16/usam-palavra-de-deus-para-manter-a-mulher-submissa-diz-pastora-feminista.htm Acesso em: 10 mar 2023
https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/06/23/por-que-a-discussao-sobre-abuso-sexual-infantil-precisa-evoluir-no-brasil.htm Acesso em: 10 mar 2023
https://mulherias.blogosfera.uol.com.br/2020/03/07/jesus-apoia-o-feminismo/ Acesso em: 10 mar 2023
Instituto Humanitas Unisinos https://www.ihu.unisinos.br/categorias/615330-nota-do-conic-em-solidariedade-a-pastora-odja-barros Acesso em: 10 mar 2023
Religião e Poder https://religiaoepoder.org.br/artigo/pesquisa-do-iser-levanta-identidade-religiosa-dos-deputados-e-deputadas-federais-diplomados/ Acesso em: 10 mar 2023
Facebook. https://www.facebook.com/mulhereseig Acesso em: 10 mar 2023
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Imagem de capa: reprodução TV Câmara