Deputado da Bancada Evangélica faz postagem falsa para exaltar desfile de tanques militares em Brasília


O deputado federal e pastor da Assembleia de Deus Otoni de Paula (PSC/RJ) fez postagem em perfil do Twitter, nesta terça-feira, 10 de agosto, para exaltar o desfile de tanques da Marinha que ocorreu na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, pela manhã. O parlamentar, que é da base governista na Câmara Federal, manifestou apoio ao ato que causou críticas no Poder Legislativo, no Judiciário e nas próprias Forças Armadas. 

O exercício militar, batizado de “Operação Formosa”, é realizado no Campo de Instrução de Formosa, cidade no Entorno do Distrito Federal, em Goiás, desde 1988, mas, pela primeira vez, os veículos passaram por Brasília. O desfile de tanques foi planejado para passar pelo Palácio do Planalto e a Esplanada dos Ministérios, no dia de duas votações importantes no Congresso Nacional: na Câmara, a proposta de voto impresso, defendida por Jair Bolsonaro; no Senado, a revogação da Lei de Segurança Nacional.

A passagem por Brasília teria sido determinada pelo presidente Jair Bolsonaro, de acordo com interlocutores, apesar de ter sido uma sugestão da Marinha e do ministro da Defesa Braga Netto, com adesão do Exército e da Aeronáutica. A estratégia seria intimidar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), diante da crise política que o Poder Executivo vive com derrotas nas pautas em votação e a demanda por investigações de pronunciamentos caluniosos do presidente da República contra ministros do STF.

O deputado Otoni de Paula exaltou a Operação Formosa como estimuladora do seu patriotismo.

Reprodução do Twitter

No entanto, de imediato, o público do Twitter identificou que a foto utilizada pelo deputado evangélico era uma foto da agência de notícias EFE.  Na verdade, a foto é uma imagem extraída do vídeo de um desfile militar na China, em homenagem aos 70 anos do comunismo naquele país. A foto foi utilizada por veículos de mídia de diversos países. O desfile na China ocorreu em outubro de 2019 e contou com as tropas do Exército Imperial da China, que exibiam tanques de última geração, mísseis, helicópteros e aviões de caça. As imagens em vídeo que serviram para a tomada da EFE estão disponíveis no telejornal da CCTV da China no Youtube.

A postagem do deputado Otoni de Paula é, portanto, falsa. Diferentemente da versão chinesa utilizada pelo pastor da Bancada Evangélica na Câmara Federal, o desfile em Brasília ocorreu com blindados antigos, que emitem fumaça carregada de gases poluentes, o que gerou piadas e memes na rede.

Reprodução do Twitter

Referências

G1. https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2021/08/10/treinamento-marinha-formosa-entenda.ghtml. Acesso em: [10 ago 2021]

Correio Brasiliense. https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/08/4942792-deputado-bolsonarista-usa-foto-do-exercito-chines-para-exaltar-desfile-em-brasilia.html Acesso em: [10 ago 2021] 

Correo del Sur. https://correodelsur.com/mundo/20191002_china-exhibe-su-enorme-poderio-militar.html Acesso em: [10 ago 2021]

CCTV, China. https://www.youtube.com/watch?v=GYNluBo8zvM Acesso em: [10 ago 2021]

Sobre pontes e narrativas antirracistas

Artesãos, comerciantes, mulas, notáveis, letrados, bêbados, eruditos, ciganos, prostitutas, rabinos, professoras, viajantes, camponeses, padres, soldados, estrangeiros, mulheres, mendigos, taberneiros, mães, aldeões, sábios, crianças, jovens todos disputam seu lugar na vigorosa narrativa de Ivo Andric (1892-1975), que desenha o vibrante percurso do povo na cidade de Vichegrad. Entre lendas e mitos, que embaralham a realidade, o autor sérvio nos adentra na história da Ponte sobre o rio Drina (Agradeço a meu amigo de origem croata Mário Franulovic Campos, que me apresentou a bela prosa poética do premiado Nobel de literatura Ivo Andric, diplomata e escritor balcânico).

Construída pelo piedoso vizir Mekhmed paxá Sókolovitch (1505-1579), no apogeu do império Otomano, a ponte não apenas une Oriente ao Ocidente, Sarajevo a Belgrado, ela trafega fluxos de pessoas, mercadorias, projeto de cidade. Ela também impõe nos habitantes um espírito de concessões, com seus ganhos, e retraimento, com seus estremecimentos. Nessa tensão, inerente as comunidades que se erguem nas fronteiras, nos limites geográficos e culturais se ergue uma sociabilidade, um estilo de vida.

Nos acontecimentos históricos, ao longo de três séculos na região balcânica, o autor desvenda como na comunidade serão moldados, nas pessoas, sentimentos, anseios, temores, esperanças, modos de ver e de perceber a vida. Ele adentra nos receios que afloram quando sérvios, bósnios, turcos, suábios, húngaros, ciganos, dividem uma franja de território, de como o sentimento de pertença engenha nos cidadãos estratégias para sobreviverem dignamente num mesmo lugar.

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Para Andric, a ponte testemunha como cada geração fabula em torno da eterna busca de uma convivência em comum, do simples direito de sentir a brisa do rio sob noites inundadas de estrelas, sonhar com as colheitas, aspirar a progredir nos negócios, ver os filhos crescerem. É na ponte que a sociabilidade se tece, as sucessivas mudanças se mostram, as desavenças se ventilam, os olhares apaixonados se encontram, as raivas extravasam, os exércitos passam, as ocupações se proclamam, a música envolve. Enfim, na ponte, a diversidade é querida e temida.

O escritor abre janelas de sol, nas quais se vislumbra de tempos em tempos, em que é possível o respeito à diferença étnica e a possibilidade de oportunidades para os cidadãos, mesmo sem esconder receios, desconfianças e distanciamentos que se impõem quando judeus, muçulmanos e cristãos dividem um fragmento de território em ambos lados do rio Drina.

A ponte se impõe quase como eterna por estar desde sempre acompanhando as vicissitudes naturais (inundações, secas, tempestades) e humanas (invasões, guerras). O autor fabula em torno da universalidade do comportamento humano que revela uma alma capaz do mais nobre ato como da pior vazão de instintos, em qualquer latitude. Assim discorre, quando a primeiro conflito mundial implode no início do século XX:

“As pessoas dividiram-se em perseguidos e perseguidores. Aquele animal faminto que vive dentro do homem e que não ousa revelar-se até que sejam eliminados os obstáculos dos bons costumes e das leis havia sido libertado agora. O sinal havia sido dado, as barreiras eliminadas. Como frequentes vezes acontece na história da humanidade, foram autorizadas tacitamente a violência e a pilhagem, incluindo o assassinato, sob a condição de que fossem executadas, em nome de interesses superiores, sob o amparo de palavras de ordem, contra um número limitado de pessoas, com determinados nomes e convicções”

Andric, Ivo. Ponte sobre o rio Drina. São Paulo: Grua, 2020. p. 441

Desde a ponte Drina, a personagem que reflete sobre perseguidos e perseguidores assiste ao massacre de seus vizinhos sérvios que dias antes tinham feito compras no mercado, fumado um tabaco, divido uma aguardente, jogado cartas. Num piscar de olhos, passaram de cidadãos a réus, de vizinhos a inimigos.

Numa outra latitude e temporalidade, um século depois, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul/Brasil, numa quinta-feira 19 de novembro de 2020 (véspera do feriado nacional do Dia da Consciência Negra), num piscar de olhos, um cidadão negro, vizinho, cliente, vira inimigo. A rede de supermercados Carrefour foi o palco em que João Alberto Silveira Freitas (40 anos) se envolve em discussão, vira alvo de suspeita, é conduzido fora da loja e, na sequência, foi brutalmente agredido, por policiais à paisana, a serviço da empresa Vector Segurança Patrimonial.

O assassinato de João Alberto desvela, como sugere Andric, as consequências de remover “os obstáculos dos bons costumes e das leis”, da afirmação do politicamente correto, dos entraves sociais da barbárie, da indignação que naturaliza a violência. O espancamento ensandecido, até a morte, viralizou nas mídias sociais, ocupou coberturas de jornais da rádio e da TV (aberta e fechada), debates trouxeram à tona o racismo estrutural como traço endêmico da sociedade brasileira.

Naquela noite, se espetacularizou esse “animal faminto” que, cego, responde ao comando interiorizado de manter a ordem a qualquer custo. Os seguranças-policiais não apenas brigavam ferozmente, numa luta entre “machos” que ofendidos repunham a “honra” atingida. Os agressores transbordaram uma violência gratuita, desproporcional à possível “ofensa” da contenda ou à desobediência das normas, ainda a eventuais transgressões patrimoniais. Seus socos desferiam um ódio acumulado a um inimigo intangível, mas agora concretizado no corpo negro subjugado, eliminado.

Crime com a conotação racista porque além do emprego da violência física, precedido da agressão verbal, manifesta ódio e intolerância, manifesta violência desproporcionada contra uma pessoa-população. Ato que expressa o racismo presente nas estruturas subjetivas dos agressores policiais, por sua vez, também, replicam a violência objetivada no cotidiano das ruas, como as cifras registram: “79% dos mortos por policiais, em 2019, eram pretos e pardos, os mesmos contabilizam 75,7% como alvo dos homicídios entre 2008 e 2018”, dados que mostram fatos e reforçam os argumentos de análises sociais e científicas (Segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública).

Mas, se o ódio e a intolerância compõem o racismo que, por um lado, manifesta instintos de “animais famintos”, por outro lado, são fruto de sociabilidades que hierarquizam as relações entre diferentes, naturalizam a desigualdade em função da cor da pele, negam o acesso a oportunidades que equilibrem o poder e a igualdade nas relações sociais. Porém, sociabilidades podem ser subvertidas porque são historicamente construídas, como foi a construção da ponte sobre o rio Drina, que impulsionou a vida da comunidade multiétnica e racial de Vichegrad. Nela era possível, de tempos em tempos, sonhar com a convivência comum em prol dos ensejos cidadãos e de segurar os limites da barbárie.

Sociedades antirracistas não eliminam as tensões, mas geram musculatura social capaz de negociar os conflitos decorrentes das diferenças, promover a equidade e oportunidade, respeitar as crenças, afirmar o valor da diversidade, independente de gênero e orientação sexual, propiciar o conhecimento que amplia mentes e corações, estimula o contato com a diversidade.

Porém, para que não se torne em retórica vazia, o antirracismo só tem um caminho: conhecimento-educação e organização coletiva. Sob esses dois locus é possível alicerçar sociabilidades desafiadoras que erguem pontes, ampliam fronteiras, abrem janelas, modulam autênticas relações humanas, neutralizam narrativas que empoderam práticas racistas e de barbárie.

Foto de Capa: Pixabay/Reprodução