Indígena? Evangélica? As controvérsias em torno de Sílvia Waiãpi, deputada que teve mandato cassado pelo TRE-AP

Sob processo por uso indevido de recursos públicos durante a campanha eleitoral de 2022, a deputada federal Silvia Waiãpi (PL-AP) teve o mandato cassado, em 19 de junho de 2024, pelo Tribunal Regional Eleitoral do Amapá (TRE-AP),

A decisão se baseou em provas de que verbas da candidatura foram usadas para custear um procedimento estético de harmonização facial. Alegando preconceito por ser indígena e da Amazônia, a deputada recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e permanece no cargo enquanto aguarda o resultado.

Diante da repercussão do caso, Bereia levantou o controverso histórico da parlamentar — que inclui sua atuação política, discursos religiosos, identidade indígena contestada e omissões em sua biografia — para oferecer a leitores e leitoras as informações que permeiam o caso.

Imagem: Portal G1

Perfil 

Silvia Nobre Lopes é oficial da reserva do exército, se apresenta como indígena do povo Wajãpi e foi eleita deputada federal pelo Partido Liberal (PL), no estado do Amapá em 2022, com 5.435 votos. Antes de entrar para a política institucional, participou da equipe de transição do governo Bolsonaro, em 2018, exerceu funções na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e foi indicada pelo então presidente da República para a coordenação de promoção de políticas indígenas na Secretaria Especial de Cultura, em 2019.

Entusiasta do bolsonarismo, Silvia Waiãpi se apresenta como “Defensora da Mulher, da Criança e da Família, Embaixadora da Paz e Republicana Conservadora”.

Imagem: Instagram

A ausência de menções explícitas à sua fé em discursos ou entrevistas contrasta com sua participação em eventos religiosos evangélicos, o que levanta questões sobre a relação entre religiosidade, identidade e estratégia política, objeto desta matéria. 

A construção de uma cruzada: “indígena, conservadora e erguida por Deus

Durante o culto “Uma Noite de Celebração”, realizado na sede daAssembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC), no Rio de Janeiro, em dezembro de 2022, a deputada federal Silvia Waiãpi protagonizou um longo testemunho emotivo e estrategicamente estruturado. Combinando tragédia pessoal, superação e exaltação patriótica, a parlamentar  se apresenta como filha da floresta, mãe solo, militar, atleta, evangélica e patriota. A fala foi transmitida ao vivo no canal da igreja no YouTube e segue o modelo clássico de narrativa de superação, comum tanto nos testemunhos em cultos evangélicos quanto na retórica motivacional do estilo coach.

Imagem: Youtube

Silvia Waiãpi começa se identificando como “uma filha do Amapá, uma mulher da floresta, uma filha do Norte do Brasil” e afirma ter sido menina de rua no Rio de Janeiro, onde dormia em praças e vendia revistas velhas e pedras. 

Relata ter passado por momentos de extrema vulnerabilidade e sofrimento na juventude. Como marco de superação, conta que, ao decidir reagir à dor, calçou os tênis e saiu para correr. Em suas palavras: “Acabei virando, em dois meses, uma atleta profissional. Fui atleta do Vasco da Gama.”

A partir dessa virada, a deputada conta que conquistou uma bolsa de estudos, formou-se em fisioterapia e posteriormente ingressou nas Forças Armadas, onde se tornou tenente —  segundo ela, é a “primeira mulher indígena a alcançar o posto de oficial”. 

A história é contada de forma linear e épica, seguindo o modelo de superação pessoal típico de testemunhos religiosos e da lógica de autoajuda, em que a dor é convertida em disciplina, esforço e vitória individual.

Durante o culto, a deputada reforça sua autoridade mencionando uma longa lista de especializações: afirma ser formada em política e estratégia pela Escola Superior de Guerra, em liderança estratégica pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro, e possuir formação em defesa química, biológica, radiológica e nuclear, transporte aeromédico, gestão financeira e orçamentária em organizações públicas, entre outras. 

A enumeração impressiona pela quantidade e pelo tom técnico, contribuindo para a construção de uma imagem pública credenciada, de excelência, mérito e competência — frequentemente associada ao ideal da “mulher que venceu sozinha”.

Ao final da fala, Silvia Waiãpi declara: “Hoje eu sou a sua deputada federal pelo estado do Amapá. A primeira mulher indígena conservadora e de direita, que foi erguida por Deus para defender a sua nação e lutar pela liberdade do seu povo.”

O tom do testemunho intensifica-se com uma convocação de guerra espiritual, em que a deputada afirma enfrentar “principados e potestades” e pede orações pelas mulheres que estão “rompendo grilhões”. A performance política e espiritual visa criar uma figura quase mítica — uma mulher forjada na dor e abençoada por Deus para conduzir uma missão redentora.

Rejeição pública do povo Wajãpi: notas de repúdio à identidade reivindicada pela deputada 

A identidade indígena reivindicada por Silvia Nobre é formalmente contestada pelo próprio povo Wajãpi. Duas notas públicas divulgadas pelo Conselho das Aldeias Wajãpi – Apina, principal instância representativa da Terra Indígena Wajãpi, acusam a deputada federal de utilizar indevidamente o nome da etnia para obter legitimidade política.

Foto: Facebook – Conselho das Aldeias Wajãpi – Apina

Na primeira nota, divulgada em 2022, quando a então candidata foi eleita, o conselho afirma: [Silvia Nobre] “não representa nosso povo Wajãpi, não faz parte das nossas organizações representativas e não pode falar em nosso nome”. A nota critica a aliança da candidata eleita pelo PL com o ex-presidente Jair Bolsonaro e rejeita seu uso político da identidade indígena. Os líderes ressaltam que, na votação de primeiro turno na Terra Indígena Wajãpi, Lula obteve 378 votos, enquanto Silvia Nobre recebeu apenas 31.

Além disso, a carta menciona postagens de parentes não indígenas da deputada, que afirmam que ela foi criada por uma família não indígena em Macapá e que não teria pertencimento ao povo Wajãpi. A  história da “menina indígena que desapareceu na década de 1970”, adotada por alguns poucos apoiadores, é refutada pela maioria dos líderes locais.

Na segunda nota, datada de 15 de maio de 2023, o conselho indígena afirma de forma categórica: “Sabemos que ela não é Wajãpi, ela está se aproveitando do nosso nome para ganhar força política”.

Segundo os signatários, Silvia Nobre Lopes não vive na Terra Indígena Wajãpi, não participa da organização social ou política do povo, nem foi eleita por seus representantes. O documento reforça que somente pessoas legitimamente escolhidas na Assembleia Geral do Apina têm autorização para falar em nome do povo Wajãpi.

A nota ainda denuncia que a deputada tem defendido propostas contrárias às posições tradicionais do povo, como: apoio ao agronegócio e à mineração em terras indígenas; flexibilização da demarcação de territórios e abertura para garimpo ilegal. Por fim, o conselho declara: “Proibimos a senhora Silvia Nobre Lopes de fazer atividades político-partidárias na Terra Indígena Wajãpi.”

Reportagem publicada pelo UOL neste  junho de 2025 reforça as contradições sobre a origem indígena de Silvia Waiãpi. O texto revela que documentos oficiais, familiares e lideranças do povo Wajãpi negam a versão apresentada pela deputada. A mãe registrada em cartório afirma ser a genitora biológica e nega que a deputada tenha nascido em aldeia indígena. A reportagem também aponta inconsistências no uso da língua waiãpi por parte da parlamentar e destaca que sua autodeclaração como indígena não é reconhecida pela comunidade.

A Silvia Waiãpi  de 2011 e 2012: espiritualidade indígena, sobrevivência urbana e uma bandeira por conquistar

Em 2011, Silvia Nobre participou do Programa do Jô, na TV Globo, onde foi apresentada como a primeira mulher indígena a integrar as Forças Armadas brasileiras. A entrevista revela uma mulher profundamente conectada com a tradição e espiritualidade de seu povo, marcada por experiências de dor, mas com um discurso ainda distante da retórica evangélica e politicamente conservadora que adotaria anos mais tarde.

Ao longo da conversa no programa de entrevistas, Sílvia Nobre descreve o funcionamento das línguas indígenas, menciona troncos linguísticos, detalha costumes e explica que teve uma filha aos 13 anos, algo que apresenta como parte de uma estrutura cultural própria: “A menina quando menstrua, para nós, a natureza está dizendo que ela já é mulher.”

Também afirma ter fugido da aldeia aos 14 anos para estudar, passando a viver nas ruas do Rio de Janeiro. Relata com emoção o momento em que vendeu uma pedra do seu lugar de origem para conseguir se alimentar por duas semanas. Essa experiência marcaria o início de sua trajetória empreendedora: “Eu pensei, se eu consegui vender uma pedra, então posso vender qualquer coisa.”

A entrevistada conta que vendeu revistas e livros de porta em porta, declamou poesia no Teatro Villa-Lobos e foi incentivada por intelectuais a estudar arte. 

O trecho mais simbólico da entrevista ocorre quando Silvia Nobre fala da infância nas escolas da cidade, quando não podia hastear a bandeira do Brasil por ser indígena: “Eu passava a minha infância inteira puxando na saia das professoras, pedindo, por favor, para hastear aquela bandeira. Mas ninguém deixava. Só as crianças brancas.”

Esse desejo de aceitação e reconhecimento nacional se transforma, na fala dela, em um propósito de vida: “Prometi para mim mesma que, acontecesse o que acontecesse, o meu país um dia iria se orgulhar de mim.”

Ainda que a noção de superação pessoal esteja presente, o discurso de 2011 é notavelmente diferente daquele apresentado em 2022 nos cultos evangélicos: não há menções a “voz profética”, “batalha espiritual” ou “missão divina”.

Em outra entrevista concedida ao apresentador Ronnie Von, em programa da TV Gazeta, em 2012, Silvia Nobre volta a apresentar sua trajetória como exemplo de superação e resiliência, mas sem nenhuma menção a afiliação religiosa institucional ou linguagem típica do evangelicalismo. 

Ao contrário, a entrevistada recorre a expressões ligadas à espiritualidade pessoal, à ancestralidade – “Eu acredito em espírito. Eu acredito que a floresta tem espírito. Que a folha tem espírito. Que a água tem espírito. Que os animais têm espírito.” – e a uma noção de missão coletiva voltada ao seu povo: “Minha missão? Eu acredito que seja mudar a história do meu povo. […] Eu só quero ser um exemplo, para que não só o povo indígena, mas o povo brasileiro possa olhar para mim e dizer: ‘eu também posso’.

Ao falar sobre dor e recuperação, Silvia Nobre compartilha uma filosofia de vida fortemente alinhada com o discurso de autoajuda, mas ainda marcada por uma espiritualidade não confessional: “O melhor do fundo do poço é quando você descobre que a única saída te obriga a erguer a cabeça e olhar para o alto.”

Essa fala, embora possa ser interpretada como referência a uma dimensão espiritual, não invoca a  linguagem típica das igrejas evangélicas — não há menções a Deus, Bíblia, fé cristã ou guerra espiritual. O que há é uma ênfase no exemplo, na vontade e na transformação pessoal como alicerces de uma jornada de superação — algo que Silvia Nobre ainda estrutura fora do campo religioso organizado.

Silenciada pelo próprio discurso: a atriz que desapareceu

Em novembro de 2018, a jornalista Júlia Barbon, da Folha de S.Paulo, traçou um perfil detalhado de Silvia Nobre após sua nomeação para a equipe de transição do governo Jair Bolsonaro. A reportagem resgata elementos fundamentais da trajetória da então tenente do Exército, compondo uma biografia multifacetada, mas que hoje vem sendo seletivamente editada pela própria parlamentar.

A matéria menciona os períodos como moradora de rua, atleta, fisioterapeuta, declamadora de poesia, militar e mãe solo, mas destaca sua formação em artes cênicas e atuação como atriz na TV Globo, onde trabalhou no figurino de A Muralha (2000), foi pesquisadora de texto na novela Uga Uga (2000) e teve seu papel mais conhecido como a empregada Domingas na minissérie Dois Irmãos (2017). 

Entretanto, a matéria traz uma informação incorreta, na novela Uga Uga, Silvia Nobre atuou como atriz e interpretou a “Índia Crocoká”

 

A atuação foi objeto de uma pesquisa crítica publicada pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), que analisa como a personagem foi usada de forma cômica e estereotipada, sem fala inteligível e com aparência grotesca, sendo alvo de insultos racistas e misóginos por parte dos protagonistas da trama. 

A autora da pesquisa Aquésia Maciel Góes argumenta que mesmo ao contratar uma atriz indígena, a televisão brasileira reproduz violências simbólicas, relegando essas mulheres a papéis de submissão, ignorância ou hipersexualização — mesmo quando as atrizes, como Silvia Nobre, possuem formação artística e experiência cênica.

A hoje deputada federal foi escalada para um papel ridicularizado, sem direito a fala compreensível (sem legenda), com dentes deformados e associada à feiura e à ignorância. A personagem é rejeitada por um dos protagonistas com falas como: “Vai raspar uma árvore pra ver se conserta esses dentes! e “É uma trombada de frente, mas não dá perda total no carro.”

Bereia avalia, com esta pesquisa, que a omissão dessa passagem da vida de Silvia Nobre pode ser compreendida como uma reestruturação estratégica de sua identidade pública.  Ela busca apagar as conexões com o universo artístico ou com personagens que contrariem os valores que hoje ela afirma defender.

A trajetória como atriz desapareceu completamente das falas mais recentes da deputada, especialmente em ambientes religiosos e de identidade conservadora, como o culto na ADVEC ou nos discursos em redes sociais. A omissão é significativa: o universo artístico — especialmente ligado à Rede Globo — costuma ser tratado com hostilidade no meio bolsonarista, sendo associado a pautas progressistas, “imoralidade” e oposição ideológica.

Harmonização facial e mandato cassado

Em junho de 2024, o Tribunal Regional Eleitoral do Amapá (TRE‑AP) cassou o mandato da deputada federal Silvia Waiãpi por uso indevido de verba pública de campanha para um procedimento estético — uma harmonização facial no valor de aproximadamente R$ 9 mil durante as eleições de 2022 

Imagem: Jornal Folha de S.Paulo

A decisão foi unânime, baseada em provas robustas apresentadas pelo Ministério Público Eleitoral, incluindo recibos e o depoimento de um cirurgião-dentista. Silvia Waiãpi negou ter autorizado o procedimento, alegando falsificação de recibo e ausência de saída de valores da sua conta. Após recurso ao Tribunal Superior Eleitoral, o processo segue em tramitação. 

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A deputada federal Silvia Waiãpi tem participação documentada em cultos evangélicos, como no púlpito da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC), ao lado do pastor Silas Malafaia, onde se apresenta como “indígena, cristã e patriota”, recorrendo a termos da teologia evangélica como “voz profética” e “soldados da fé”. No entanto, em entrevistas anteriores, ela expressou crenças ligadas à espiritualidade indígena, à ancestralidade e à presença de espíritos da natureza — evidências de uma trajetória espiritual complexa e, possivelmente, em transição.

Apesar da forte presença em eventos religiosos evangélicos, não há menção explícita à sua filiação confessional atual, nem vínculo formal com igrejas. Já sua identidade indígena é formalmente contestada por lideranças do povo Wajãpi, que a acusam de se apropriar indevidamente do nome da etnia para fins políticos.

O levantamento do Bereia também aponta que trechos significativos da biografia da deputada foram apagados em sua atuação política recente — como a carreira artística na TV Globo, incluindo o papel estereotipado interpretado na novela Uga Uga. Ao mesmo tempo, documentos e depoimentos de familiares indicam divergências entre a versão da deputada e os relatos sobre sua origem e possível adoção

A trajetória de Silvia Waiãpi, construída entre apagamentos, disputas identitárias e discursos religiosos, segue no centro de controvérsias públicas — agora agravadas por um processo judicial sobre irregularidades na campanha que a levou à Câmara Federal e pode causar a perda definitiva de seu mandato parlamentar.

Referências: 

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2025/03/16/deputada-indigena-de-direita-que-perda-de-mandato-por-decisao-do-stf-e-fruto-de-preconceito.htm Acesso em: 20 Mai 2025  

https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2024-06/deputada-e-cassada-por-pagar-tratamento-estetico-com-dinheiro-publico Acesso em: 20 Mai 2025  

https://www.instagram.com/silviawaiapi/ Acesso em: 20 Mai 2025  

https://www.camara.leg.br/deputados/220579?fbclid=PAZXh0bgNhZW0CMTEAAackO7H8f2Veugw8dwgy-avdYTo9RwEsVYclliXKbC-pPRCkqYqcfgDjlJn7nQ_aem_K-mXPdqh9T2ZrrGsX2Sj0Q Acesso em: 20 Mai 2025  

https://apiboficial.org/ Acesso em: 20 Mai 2025  

https://apiboficial.org/2025/02/17/deputada-bolsonarista-silvia-nobre-e-repudiada-por-organizacoes-dos-wajapi-nao-representa-nosso-povo/ Acesso em: 20 Mai 2025   

https://www.abant.org.br/files/20230602_6479f4e7c5513.pdf Acesso em: 20 Mai 2025   

https://www.facebook.com/photo/?fbid=195060289750106&set=pb.100077384097360.-2207520000&locale=pt_BR Acesso em: 20 Mai 2025   

https://www.facebook.com/photo/?fbid=195060289750106&set=pb.100077384097360.-2207520000&locale=pt_BR Acesso em: 20 Mai 2025   

https://www.youtube.com/watch?v=bwVtA4LAkrQ Acesso em: 20 Mai 2025   

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/india-da-equipe-de-bolsonaro-foi-moradora-de-rua-atriz-e-atleta-antes-do-exercito.shtml Acesso em: 20 Mai 2025   

https://seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/download/71847/46223 Acesso em: 20 Mai 2025   

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2025/06/14/documentos-e-indigenas-contrariam-origem-narrada-por-deputada-do-pl.htm Acesso em: 20 Mai 2025   

https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2024-06/deputada-e-cassada-por-pagar-tratamento-estetico-com-dinheiro-publico  Acesso em: 20 Mai 2025   

Presbiteriano e extremista de direita: quem é Filipe Barros, novo presidente  da Comissão de Relações Exteriores da Câmara Federal

Eleito no último 19 de março para presidir a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, da Câmara dos Deputados (Creden), o deputado federal Filipe Barros (PL-PR) assume a cadeira previamente cotada para Eduardo Bolsonaro (PL-SP) no colegiado. Ele foi escolhido com 24 votos, de um total de 28, sendo os outros quatro em branco. Amigo da família Bolsonaro, Barros dá continuidade à estreita relação com as pautas que o grupo defende na Casa e promete manter o diálogo com Eduardo Bolsonaro, que está licenciado do mandato e encontra-se nos Estados Unidos.

Filipe Barros é evangélico, membro da Igreja Presbiteriana Central de Londrina, que é vinculada à Igreja Presbiteriana do Brasil. Em 2020, Bereia checou que a igreja onde o parlamentar congrega foi palco de convocação para coleta de assinaturas para a  criação do partido político Aliança Pelo Brasil, idealizado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). À época, o deputado contou com o apoio do pastor titular da Igreja Presbiteriana Central de Londrina. 

O parlamentar, que foi líder da oposição na Câmara em 2024, é integrante da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional. Sua atuação está alinhada às pautas defendidas pela Bancada Evangélica, como a forte oposição a qualquer forma de aborto, à legalização de drogas, e à justiça de gênero.

Dentre os 70 projetos de lei de autoria de Filipe Barros desde 2019 está o PL 2578/2020, que defende que tanto o sexo biológico como as características sexuais primárias e cromossômicas devem ser usadas na determinação do gênero do indivíduo. Em 2023, Bereia verificou que o parlamentar compartilhou conteúdo enganoso relacionado à implementação de banheiros unissex nas escolas.

Como Bereia checou, Barros foi um dos investigados no Inquérito 4781, aberto em 2020 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), conhecido como o “Inquérito das Fake News”. O objetivo era apurar a propagação de informações falsas, calúnias e ameaças contra o STF e seus membros, por parte de parlamentares, integrantes do Poder Executivo, apoiadores deles, entre empresários e influenciadores digitais, com vistas à desestabilização das instituições democráticas e a independência dos poderes.

Em 30 de novembro de 2021, Dia do Evangélico, Barros publicou um texto no veículo de notícias Poder 360 intitulado “Chegamos ao Dia do Evangélico com a esperança renovada, escreve Filipe Barros”. Nele, o deputado relata sua participação no ato convocado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores, dois meses antes, em 7 de setembro, na Avenida Paulista. No evento foi tornada pública a oposição de políticos da extrema direita dos Poderes Executivo e Legislativo, nos níveis federal e estadual, às ações do Poder Judiciário.  Em discurso nesta ocasião, o então presidente da República Jair Bolsonaro (PL) declarou abertamente que não respeitaria “qualquer decisão” do ministro Alexandre de Moraes do STF, incitando apoiadores contra a Corte Suprema. 

No texto para o Poder 360, Filipe Barros confirma alinhamento ao extremismo de direita e a defesa de suas pautas. Declara-se “conservador”, integrante da Frente Parlamentar Evangélica da Câmara dos Deputados, com atuação ancorada no “tripé Deus, Pátria e Família” como prioridades.

Em 2024, o parlamentar foi designado relator da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/2021, que busca vedar as decisões monocráticas de ministros para suspender a eficácia de leis e de atos dos presidentes da República, da Câmara e do Senado. A PEC teve aprovação, em outubro passado, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania ( CCJC ) e está com a Mesa da Casa para seguir os protocolos seguintes.

Em 2024 e 2025, o parlamentar tem apoiado reiteradamente a campanha de anistia para pessoas envolvidas com a tentativa de golpe de Estado que culminou nos ataques à Praça dos Três Poderes em 8 de Janeiro de 2023. No último 16 de março, ele esteve presente na manifestação pró-anistia em Copacabana, ao lado do ex-presidente Jair Bolsonaro e de Carlos Bolsonaro. Dias depois, publicou em seu perfil do Instagram “Não é anistia, é reparação”, ao comentar sobre a indicação de condenação de uma das ativistas do ataque, Débora Rodrigues Santos, a 14 anos de reclusão por crimes de atentado ao Estado Democrático de Direito e danos ao patrimônio público. 

Imagem: reprodução/Instagram

Presidência da Creden e ligação com Eduardo Bolsonaro

Ao assumir a Comissão de Relações Exteriores da Câmara Federal, Barros afirmou em seu discurso que a Creden é “uma trincheira importante para que resgatemos nossa verdadeira soberania, nossas liberdades, para que nossa democracia volte a ficar de pé”. O deputado declara que a presidência na Comissão poderá ser uma via alternativa de diálogo entre o Brasil e os Estados Unidos. Recorrendo à prática desinformativa das teorias da conspiração, sem apresentar fontes, Barros propõe investigar possíveis interferências do partido Democrata do país norte-americano em interesses da política brasileira.

Devido à relação próxima com a família Bolsonaro, Barros também vislumbra, por meio da Creden, fornecer o apoio institucional à missão de Eduardo Bolsonaro nos Estados Unidos: aproximar-se de congressistas norte-americanos favoráveis às pautas defendidas pelos bolsonaristas. Em entrevista, Barros afirmou que pretende fazer uma denúncia à Organização dos Estados Americanos (OEA) contra o que considera ser uma perseguição a Eduardo Bolsonaro, além de verificar uma suposta conformidade dos processos relacionados ao 8 de Janeiro com acordos internacionais de Direitos Humanos.  

O filho do ex-presidente Jair Bolsonaro demonstrou apoio a Barros e afirmou, em uma live no Youtube transmitida em 21 de março, que tem o número de telefone de Filipe Barros e que os dois têm mantido contato: “Para quem acha que eu não estar sentado naquela cadeira, eu perdi o poder da Creden, negativo, tá? Tenho o telefone dele, tenho falado com ele, e se Deus quiser ele vai colocar adiante as mesmas pautas que eu ia botar”.

O alinhamento dos dois parlamentares é de longa data: em 2018, Eduardo Bolsonaro endossou a campanha de Barros para eleição à Câmara dos Deputados; em 2019, tanto Barros quanto o Bolsonaro foram suspensos do Partido Social Liberal (PSL) devido à ligação com Jair Bolsonaro, que havia deixado o partido. No mesmo ano, Barros foi escolhido pelo ex-presidente para compor a Comissão de Mortos e Desaparecidos da Ditadura Militar. O parlamentar já havia se manifestado a favor do Golpe de 1964, o qual chamou de contrarrevolução que salvou o Brasil de uma ditadura comunista. 

Imagem: reprodução/X

Início da vida política

Formado em direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Filipe Barros foi presidente do Diretório Central de Estudantes (DCE) e trabalhou como assessor legislativo na Câmara Municipal de Londrina antes de disputar sua primeira eleição. 

Em 2016, Barros recebeu mais de 4 mil votos e foi eleito vereador de Londrina pelo Partido Republicano Brasileiro (PRB) com as bandeiras de combate ao aborto e à “ideologia de gênero”. Durante o mandato, ele atuou no projeto que instituiu o Dia do Nascituro na cidade, o qual determinou a realização de eventos e palestras sobre a dignidade da vida pré-natalina.

A passagem do vereador pela Câmara Municipal de Londrina também foi marcada pela criação do Projeto de Emenda à Lei Orgânica n° 3/2017, que visou proibir atividades pedagógicas que envolvessem o conceito de ideologia de gênero nas escolas da rede municipal de ensino. A proposta foi aprovada e entrou em vigor em 2018, mas foi suspensa pelo STF, em 2019, por decisão do ministro Luís Roberto Barroso, que avaliou que o município tratou sobre diretrizes e bases da educação, uma competência que é apenas da União.

Intolerância religiosa, calúnia e difamação

O parlamentar evangélico presbiteriano já foi acusado, em 2016, de ter cometido crime de intolerância religiosa devido a uma publicação em seu perfil em mídias sociais. Nela, teria ofendido representantes de religiões de matriz africana, chamando de “macumba” uma apresentação realizada para estudantes da rede municipal de Londrina durante evento da Semana da Pátria. Barros negou a acusação e respondeu que a ação tratava-se de perseguição político-partidária. Ele foi absolvido em 2020, após recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). 

Barros também figura no polo passivo de ações judiciais no estado do Paraná e no Distrito Federal sob crimes de calúnia e difamação e processos que demandam indenização dele por danos morais. Os documentos são restritos às partes, de forma que Bereia não teve acesso ao teor das decisões. 

*** Bereia solicitou mais informações à assessoria do parlamentar, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.

Referências

Coletivo Bereia

https://coletivobereia.com.br/balanco-janeiro-2025-politicos-religiosos-e-veiculos-jornalisticos-publicam-falsidades-sobre-acordo-em-torno-de-terras-indigenas/ . Acesso em 24 mar 2025

https://coletivobereia.com.br/congresso-americano-nao-enviou-carta-com-cobrancas-a-ministro-do-stf-do-brasil/ . Acesso em 24 mar 2025

https://coletivobereia.com.br/deputados-e-midias-gospel-espalham-falsidades-sobre-projeto-de-lei-que-retira-direitos-sobre-aborto-no-brasil/ . Acesso em 24 mar 2025

https://coletivobereia.com.br/parlamentares-de-extrema-direita-articulam-desinformacao-sobre-banheiros-unissex-em-oposicao-ao-governo-federal/ . Acesso em 24 mar 2025

https://coletivobereia.com.br/deputados-governistas-de-bancadas-evangelica-e-catolica-enganam-nas-midias-sociais-sobre-votos-pelo-fundo-eleitoral/ . Acesso em 24 mar 2025

Câmara Municipal de Londrina

 https://www.cml.pr.gov.br/camara/membros/show/43 . Acesso em 26 mar 2025

https://www.cml.pr.gov.br/imprensa/noticias/0/136/0/2859 . Acesso em 28 de mar 2025

https://www.cml.pr.gov.br/proposicoes/Projetos-de-Emenda-a-Lei-Organica/0/1/223/6774 . Acesso em 28 de mar 2025

Câmara dos Deputados

https://www.camara.leg.br/busca-portal?contextoBusca=BuscaProposicoes&pagina=1&order=data&abaEspecifica=true&filtros=%5B%7B%22descricaoProposicao%22%3A%22Projeto%20de%20Lei%22%7D%5D&q=autores.ideCadastro%3A%20204411%20AND%20dataApresentacao%3A%5B2019-01-01%20TO%202025-12-31%5D. Acesso em 1° abr 2025

https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/credn/noticias/filipe-barros-assume-a-presidencia-da-comissao-de-relacoes-exteriores-e-de-defesa-nacional. Acesso em 1° abr 2025

Gazeta do Povo

https://www.gazetadopovo.com.br/parana/filipe-barros-deputado-federal-bolsonarista-olavo-de-carvalho/ . Acesso em 26 mar 2025

https://www.gazetadopovo.com.br/republica/filipe-barros-quer-reuniao-com-relator-da-oea-para-debater-anistia/. Acesso em 27 mar 2025

https://especiais.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2018/resultados/eleitos-deputado-federal-pr-quem-ganhou/ . Acesso em 28 mar 2025

JusBrasil

https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1206243145/inteiro-teor-1206243155 Acesso em 28 mar 2025

https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=432679&ori=1#:~:text=O%20ministro%20Lu%C3%ADs%20Roberto%20Barroso,na%20rede%20municipal%20de%20ensino. Acesso em 28 de mar 2025

Poder360

https://www.poder360.com.br/opiniao/chegamos-ao-dia-do-evangelico-com-a-esperanca-renovada-escreve-filipe-barros/ Acesso em 28 mar 2025

Youtube

https://www.youtube.com/live/AOsWxC8fU1M. Acesso em 28 mar 2025
UOL, acesso em 01 abr 2024

Foto de capa: Câmara dos Deputados

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