Por que você não deveria argumentar com radicais – o efeito “Backfire”
* Texto originalmente publicado em Política na Cabeça/Blogs Unicamp.
Sabe aquela vez que você topou, nas redes sociais ou fora delas, com uma pessoa muito convicta defendendo algo que você tinha certeza de que estava errado?
Pode ter sido um antivacina, um terraplanista, um negacionista da pandemia ou um apoiador ferrenho de algum político, daqueles dispostos a defender qualquer bobagem ou mentira que seu ídolo tenha dito.
Identificou o diálogo aí nas lembranças, né?
Então, você têm os fatos e a ciência a seu favor. Você argumentou contra o que essa pessoa convictamente defendia e ela obviamente mudou de opinião diante das evidências que você apontou, não foi? Pois é, comigo também nunca aconteceu. A verdade é que, diante de pessoas inflexíveis sobre algo, muitas vezes não as convencemos nem mesmo de fatos elementares.
Seria essa tentativa de argumentar com os muito convictos, então, puro desperdício de tempo e energia? A realidade dura nos mostra que pode ser ainda pior do que isso. Sua tentativa de convencer o fanático pode ter um efeito totalmente negativo e torná-lo ainda mais convicto de sua crença. Esse é o chamado “efeito backfire” e é bem provável que você já o tenha produzido em alguém ou nele incorrido em discussões por aí.
Entendendo o conceito
“Nenhuma opinião deve ser defendida com fervor (…) O fervor apenas se faz necessário quando se trata de manter uma opinião que é duvidosa ou demonstravelmente falsa.”
Bertrand Russell
O efeito backfire foi verificado pela primeira vez em um estudo publicado em 2010 [1], conduzido pelos cientistas políticos Brendan Nyhan e Jason Reifler das universidades de Michigan e da Georgia, EUA. Nesse estudo, eles criaram artigos fictícios de jornal que reproduziam informações falsas amplamente difundidas nos EUA à época. Por exemplo, como a ideia de que as forças armadas estadunidenses teriam encontrado armas de destruição em massa no Iraque do ditador Sadam Husseim. Os voluntários da pesquisa liam esses artigos e, na sequência, recebiam outro texto com a informação correta. Isto é as supostas armas de destruição em massa jamais foram encontradas.
Um curioso resultado encontrado pela pesquisa foi o de que os voluntários mais conservadores e favoráveis à guerra contra o Iraque relataram, após a leitura do artigo com a informação verdadeira, que tinham ainda mais certeza de que as tais armas de destruição em massa realmente existiam. Em outras palavras, a tentativa de correção da crença incorreta desses voluntários “saiu pela culatra” (o efeito backfire) e eles ficaram ainda mais convictos sobre algo que nunca aconteceu de fato. Por acaso isso te soa familiar e te faz lembrar de alguma discussão que já teve com alguém?
Mas, podemos chamar de ignorância?
Não! Esse efeito não é fruto de ignorância ou burrice, como se poderia imaginar a princípio. Ele ocorre, na verdade, como um desdobramento do raciocínio motivado. Ou seja, é uma forma de pensar na qual selecionamos somente as evidências que nos agradam para embasar uma conclusão à qual já tínhamos chegado de antemão. Assim, ao receber uma informação que se choca com sua crença, a pessoa tende a revisar mentalmente as “evidências” (não importa muito que possam ser falsas) que a induziram a ter essa concepção equivocada e, nesse processo de revisão de suas memórias, pode acabar reforçando sua crença inicial.
Efeito backfire e política em contexto de pandemia
No âmbito da política, que tem como motor as ideologias e paixões humanas, não faltam exemplos de racionalização de “evidências” que levam ao efeito backfire de forma coletiva. Em um cenário de intensa polarização política, quase tudo é politizado e não seria diferente com os aspectos que envolvem a pandemia de coronavírus. Nesse contexto, um exemplo do efeito backfire coletivo pôde ser observado nos que passaram a minimizar a pandemia, buscando equivaler a Covid-19 a uma gripe comum.
As políticas negacionistas
Nos EUA e no Brasil, foram os presidentes os principais líderes políticos a sistematicamente minimizar a gravidade do coronavírus [2, 3]. Tanto lá como cá, os seguidores de ambos, ao receberem o sinal de seus ídolos, passaram a reproduzir sua concepção. Diante do crescente número de casos comprovados e das complicações, sequelas e mortes causadas pelo vírus, parte expressiva dos defensores da ideia de que se tratava de uma “gripezinha”, ao invés de mudarem de posição perante evidências contrárias, passaram a intensificar seu negacionismo por meio de teorias conspiratórias, ou seja, acionaram o raciocínio motivado resultando no efeito backfire.
Da afirmação — jamais comprovada — de que governadores estariam inflando os números de óbitos [4], passando pelo questionamento sobre a lotação de hospitais (com sugestão do presidente para que populares os invadissem e filmassem os leitos) [5], até o enfoque no número de casos recuperados [6], foram muitos os esforços dos negacionistas convictos para minimizar o terrível impacto da pandemia no segundo país em número de óbitos causados pela Covid-19 no mundo.
Minimizando a pandemia
Quanto àquele esforço de se minimizar a pandemia por meio do enfoque nos milhões de recuperados, é quase cômico observar que, na verdade, isso pesa contra o negacionismo dos fanáticos: a constatação de que há milhões de recuperados pressupõe a existência de um número ainda maior de infectados, o que por si só já expõe a extensão e a gravidade da pandemia.
Animados pelo mesmo impulso negacionista, surgiram também inúmeros apoiadores do presidente cujos parentes ou conhecidos supostamente tiveram diagnóstico positivo para Covid-19, mas que morreram, juram eles, de câncer ou outra doença grave. Por suposto, trata-se aqui do que chamamos, em ciência, de evidência anedótica; é razoável a probabilidade, porém, de que a leitora tenha visto alguma história do tipo em suas redes sociais durante a pandemia.
A “vacina chinesa” e o efeito backfire
Nem mesmo a vacina contra o coronavírus escapou à lógica da polarização política. Bastou o Ministério da Saúde anunciar a intenção de adquirir a CoronaVac [7]– vacina que está sendo produzida em associação entre o Butantã e a Sinovac, uma empresa chinesa — que o presidente, pressionado por apoiadores contrários à vacina [8], cancelou o acordo de compra [9]. Após esse imbróglio, várias fake news sobre a CoronaVac inundaram as redes sociais [10], como a de que a vacina usaria células de bebês abortados [11]. Isso tudo nos faz levantar a questão: existe a possibilidade de ocorrer o efeito backfire ao argumentarmos com um antivacina? Considerando-se a ciência sobre o tema, a resposta infelizmente é “sim”.
Os mesmos pesquisadores citados, Reifler e Nyhan, conduziram, em 2015, um estudo sobre mitos relativos a vacinas [12]. À época, 43% dos estadunidenses acreditavam que a vacina da gripe poderia fazê-los ter gripe. Assim, nesse estudo, eles buscaram verificar a eficácia de se oferecer as informações corretivas dessa crença infundada. Como resultado, o estudo apontou que informações corretas — que a vacina não causava a gripe — foram suficientes para reduzir bastante essa crença específica.
Efeito colateral
No entanto, os voluntários da pesquisa que demonstraram níveis mais altos de preocupação com supostos efeitos colaterais de vacinas (como acreditar que elas causam autismo) passaram a manifestar menor disposição a vacinarem seus filhos. Nesse estudo, o efeito backfire ocorreu não na crença específica, alvo da informação corretiva, mas na postura dos voluntários que já tinham uma perspectiva antivacina, os quais ficaram ainda mais convictos sobre isso.
A esta altura, a leitora pode estar se perguntando se, por causa da possibilidade do efeito backfire, não devemos jamais argumentar com as pessoas muito convictas que estejam defendendo algum absurdo. Todavia, na realidade, há uma situação bastante frequente na qual convém, sim, debater com dogmáticos.
Argumentar ou não argumentar, eis a questão
“Não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências; baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar.”
Carl Sagan
Em uma conversa privada, no tête-à-tête mesmo, com alguém defendendo radicalmente alguma inverdade, talvez seja melhor não insistir. O risco de você contribuir para que a pessoa fique ainda mais convicta é real. Por isso, vale muito mais a pena argumentar com as pessoas que podem ter caído em alguma desinformação, mas que têm maior abertura ao debate. E elas são muitas. Dessa forma, como sustenta o cientista político David Redlawsk, isolam-se os fanáticos de todo tipo, reduzindo sua influência.
Estudos mais recentes, como o dos cientistas políticos Thomas Wood e Ethan Porter, da George Washington University, não encontraram o efeito backfire em relação a fatos específicos [13]. Os pesquisadores argumentam que é possível, sim, mudar a opinião equivocada das pessoas com a exposição de fatos.
Mas…
É preciso lembrar, no entanto, que existe sempre a possibilidade de que elas reforcem sua postura — como ocorreu no estudo mencionado sobre a vacina — apesar de se dobrarem a um fato específico. Como um exemplo, imagine que você vai argumentar com uma pessoa que defende um remédio comprovadamente ineficaz contra a Covid-19 porque o político que ela apoia insiste se tratar de um medicamento salvador. A depender de sua abordagem e do nível de convicção dessa pessoa, talvez até a convença do fato de que o remédio é ineficaz. Não espere, porém, que diminua o apoio dela ao político, pois o mais provável é que o contrário aconteça.
No entanto, como parte significativa de nossas vidas atualmente acontece em rede, quando o debate for em público, como no Facebook ou em grupos de WhatsApp, convém demonstrar que os radicais estão equivocados. Nas redes, terceiros quase sempre estão observando as conversas alheias. Eis aí a situação na qual vale a pena travar o bom combate contra a desinformação, a mentira e as concepções falsas. Se seu interlocutor direto ficar ainda mais convicto na defesa de alguma desinformação qualquer, paciência. Quase sempre há vários outros que podem se beneficiar do seu esforço de argumentação em prol do restabelecimento da verdade.
Por fim
Vivemos em tempos nos quais vicejam posturas anticientíficas e esforços de relativização da verdade, quando não de sua negação completa. Como é bastante conhecido, isso é impulsionado por líderes políticos cujo comportamento é replicado por milhões de seguidores. Por isso, é importante que continuemos disputando, se não os corações, ao menos as mentes das pessoas e ter consciência da possibilidade de que o efeito backfire ocorra é um passo fundamental nessa jornada.
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Foto de capa: Pixabay/Reprodução
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Referências:
[1] Nyhan, B, Reifler, J (2010) When Corrections Fail: The Persistence of Political Misperceptions; Political Behavior, Vol 32, No 2, pp 303-330.
[2] (2020) Timeline: How Trump Has Downplayed The Coronavirus Pandemic. National Public Radio (NPR), 02 de outubro de 2020.
[3] “Gripezinha” e “histeria”: cinco vezes em que Bolsonaro minimizou o coronavírus (2020)
[4] Bolsonaro endossa notícia falsa para dizer que Estados inflam mortes por coronavírus, Valor Econômico, 31 de outubro de 2020.
[5] Bolsonaro recomenda invadir hospitais, Correio Braziliense, 11 de junho de 2020.
[6] Na data em que Brasil ultrapassa 100 mil mortos, Bolsonaro destaca pacientes recuperados, Agência Brasil (EBC), 20 de outubro de 2020.
[7] Brasil anuncia que vai comprar 46 milhões de doses da CoronaVac, Agência Brasil, 20 de outubro de 2020.
[8] Bolsonaro sabia da intenção de compra da CoronaVac, mas recuou, Estado de Minas, Edição de 21 de outubro de 2020.
[9] Bolsonaro diz que Governo Federal não comprará vacina CoronaVac Agência Brasil (EBC), 21 de outubro de 2020.
[10] Aos Fatos (agência de fact-checking) – resultados de busca do verbete “coronavac”
[11] (2020) É falso que CoronaVac usa células de bebês abortados, Aos Fatos, 28 de julho de 2020.
[12] Nyhan, B, Reifler, J (2015) Does correcting myths about the flu vaccine work? An experimental evaluation of the effects of corrective information. Vaccine 33 (3): 459–464.
[13] Wood, T., Porter, E. (2018). The elusive backfire effect: Mass attitudes’ steadfast factual adherence. Political Behavior, Vol41, pp135-163.
OBS:
Esse texto contou com a revisão primorosa de Caroline Frere Martiniuc e Eduardo Jesus Veríssimo, aos quais agradeço enormemente.