CESE lança Campanha Primavera para a Vida 2022

A CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviço) lança no dia 27 de setembro com a 22ª edição da Campanha Primavera para a Vida. Neste ano, a campanha abraça o tema “Andar com Fé pelos caminhos da Democracia: Vivam como pessoas livres, mas não usem a liberdade como desculpa para fazer o mal; I Pedro 2.16a”, trazendo a discussão sobre o momento político vivido pelo Brasil de ataques constantes contra suas instituições democráticas e o compromisso da organização com a sua radicalidade.

Junto da campanha também será lançado o livro “As igrejas evangélicas na ditadura militar: dos abusos do poder à resistência cristã”, uma obra que sintetiza a atuação de grupos evangélicos durante a ditadura militar (1964-1985) e traz reflexões sobre o enfrentamento aos desafios do tempo presente para incentivar processos de renovação crítica da relação igreja e sociedade. O público poderá conhecer por meio da sistematização a experiência de como grupos evangélicos atuavam no período de repressão, como subsídio de reuniões e articulações interessadas em refletir sobre os significados, avanços e limites dos processos socioculturais, políticos e eclesiais nas décadas de 60 e 70. Uma oportunidade de olhar curso da história para denunciar as consequências dos abusos de poder, e ao mesmo tempo, animar a esperança que torna possível novos caminhos para a construção democrática.

A publicação encontrou calendário e ambiente fértil para realização da sua primeira divulgação, a campanha da primavera e tem como responsáveis pela obra a editora-geral do Bereia, Magali Cunha, Anivaldo Padilha, Luci Buff e Jorge Atílio Iulianelli (in memoriam). Além da CESE, o livro “As igrejas evangélicas na ditadura militar: dos abusos do poder à resistência cristã” conta com o apoio do Coletivo Memória e Utopia, Instituto Vladimir Herzog e KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço.

Fake news nas igrejas: uma epidemia a ser curada

Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil

Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana (IECLB) há vinte anos. Em 2012, tornou-se secretária-geral da relevante organização ecumênica que associa igrejas do Brasil em torno de causas comuns, em especial as dos direitos humanos, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic). Ela foi vítima de ataques caluniosos em mídias sociais, várias vezes, por conta das ações do Conic na esfera pública. Essa violência verbal parte de pessoas que discordam da forma como os temas são considerados pelas igrejas da organização, da qual a pastora Romi é porta-voz, e são incapazes de tratar sua crítica de forma digna e civilizada.

A situação se agravou, em 2021, com a realização da Campanha da Fraternidade Ecumênica, promovida a cada cinco anos pelo Conic – uma extensão da histórica campanha da Igreja Católica, membro do organismo, a outras igrejas. O tema da campanha foi “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor” e, apesar dele, muitas pessoas não desejaram dialogar sobre elementos desafiadores para as igrejas como a superação do racismo, a destruição do meio ambiente e o negacionismo em torno da pandemia de Covid-19, em meio à qual ocorreu a campanha.

Nesse novo contexto, além do conteúdo falso sobre a pastora Romi Bencke, disseminado principalmente por grupos católicos extremistas, liderados por integrantes da associação Centro Dom Bosco, que a acusavam de trabalhar para destruir a “verdadeira Igreja Católica Romana”, ela carregou o peso de ter que provar que o que circulava nas mídias sociais era falso. Além disso, mesmo vítima de calúnias, a secretária-geral do Conic ainda foi criticada como causadora das reações extremistas. Ocorreram consequências como o desconvite para palestras em eventos e a tentativa de manchar a sua imagem como pastora.

“Eu fui vítima várias vezes na história – quando espalharam as mentiras, quando as desmenti. Porque a imagem que fica é a de que você é a pessoa causadora do problema. Também me responsabilizaram. ‘Ah, mas você toca em assuntos que geram esse tipo de movimento’. Pessoas que você imaginava serem suas companheiras compram a narrativa, começam a te julgar. Também houve quem se afastasse até do Conic”, relata a pastora Romi Bencke com tristeza.

A secretária-geral do Conic conta ainda que tentou iniciar um processo judicial contra os promotores do ódio e das mentiras, porém não conseguiu seguir em frente por se tratar de algo profundamente desgastante e nocivo para ela. “O custo acaba sendo nosso. No meu caso, eu tive que fazer a transcrição das falas. Eu me senti violentada novamente e acabei desistindo. É difícil ter que ouvir tudo de novo. É preciso ter uma capacidade de resiliência muito forte”, desabafa.

O caso da pastora Romi Bencke, abordado no primeiro episódio da série especial “Não bote fé nas fake news” do podcast Guilhotina,  se une a outros tantos de pessoas que têm sido submetidas, sistematicamente, aos efeitos da circulação das chamadas fake news no ambiente das igrejas cristãs, evangélicas e católicas. O termo popularizado em inglês, que significa “notícias falsas”, não diz respeito apenas a notícias propriamente ditas, mas a todo e qualquer conteúdo que transmita informação sobre uma situação ou uma pessoa. Fake news são caracterizadas pela informação deliberadamente criada, com base em mentira e engano (manipulação de conteúdo), para atingir pessoas e grupos de quem se discorda e para se obter vantagem econômica ou política, com a interferência em temas de interesse público.

As fake news e as comunidades de fé

Pesquisas em diversas áreas da sociedade, dentro e fora da academia, têm mostrado que as fake news – que não são novidade, mas práticas antigas incorporadas à arte de convencer e de fazer política – ganharam muita força na era digital, em especial, com a popularização das plataformas de mídias sociais.

Nas mais populares, WhatsApp, Facebook, Instagram, Youtube, Twitter, o processo é simples: uma pessoa ou um grupo organizado produz e publica, intencionalmente, uma mentira, geralmente no formato de notícia para criar mais veracidade, valendo-se até mesmo de dados científicos e/ou jurídicos adaptados. O conteúdo é debatido nos espaços das mídias sociais, torna-se algo reconhecido, com caráter de sabedoria e verdade e é disseminado, voluntariamente, por quem acredita ou se identifica com ele e viraliza alcançando um sem-número de pessoas.

A psicologia social explica o fenômeno desta viralização, orienta o cientista social ligado ao Centro para o Cérebro, Biologia e Comportamento (Universidade de Nebraska, Estados Unidos) Davi Carvalho. Há pessoas que, ainda que constatem terem acreditado numa mentira, não a desprezam, pois ela se revela coerente com seu jeito de pensar, de agir, de estar no mundo, ou lhe trazem alguma compensação, conforto. Isso é o que se chama “dissonância cognitiva”.

Carvalho explica que isso acontece quando pessoas têm necessidade de estabelecer uma coerência entre suas cognições (seus conhecimentos, suas opiniões, suas crenças), que acreditam ser o certo, com o que se apresenta como opção de comportamento ou de pensamento.

As investigações mostram também que os ambientes religiosos são amplamente vulneráveis à circulação desse tipo de conteúdo. Isso pode ser explicado pelo sentimento cultivado nesses espaços, físicos e digitais, relacionado à crença e à confiança. Cristãos estão propensos não só a assimilar as notícias e ideias mentirosas que circulam pela internet, coerentes com suas crenças, como valorizam mais o que chega no seu grupo religioso.

As contas de mídias sociais de grupos de igrejas e as de suas lideranças são credenciadas como fontes de verdades, pois são veículos de espaços e pessoas de confiança, relacionadas ao cultivo da fé. Além disso, pessoas religiosas que recebem esses conteúdos tendem a fazer a propagação deles, uma espécie de “evangelização”, espalhando essas notícias e ideias para que convertam pessoas ao mesmo propósito.

Essas noções ajudam a explicar como têm sido amplamente propagadas nesses ambientes religiosos as receitas caseiras e medicamentos milagrosos para a cura e a prevenção de doenças, mais recentemente da Covid-19; as supostas ameaças de “inimigos da fé”, em especial às igrejas e suas lideranças, representados em figuras como “comunismo”, “islã”, “feminismo”, “ditadura gay”.

Há ainda a retórica do medo que é base na disseminação de fake news de um modo geral, mas tem alcançado com força os grupos religiosos, especialmente evangélicos. Esse grupo religioso cultiva, historicamente, o imaginário de enfrentamento de inimigos e da perseverança diante da perseguição religiosa como alimento da fé. Por isso, há um forte apelo de publicações desinformativas em torno da “defesa da família” e dos filhos das famílias, como núcleos da sociedade que estariam em risco por conta da agenda de igualdade de direitos sexuais. Na mesma direção, notícias falsas de que políticos de esquerda ou o Supremo Tribunal Federal fecharão igrejas no Brasil têm sido fartamente propagadas nos ambientes cristãos em períodos de disputas políticas. Os ataques à pastora Romi Bencke possuem estreita relação com esses discursos.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de 2019 a 2020, buscou compreender o uso intenso do WhatsApp para circulação de fake news no segmento evangélico. Intitulada “Caminhos da desinformação: evangélicos, fake news e WhatsApp no Brasil”, a pesquisa, coordenada pelo sociólogo Alexandre Brasil Fonseca, aplicou 1.650 questionários em congregações evangélicas das igrejas Batista e Assembleia de Deus, no Rio de Janeiro e em Recife. As igrejas e as cidades foram definidas com base na maior concentração de evangélicos, segundo o Censo de 2010. Além dos questionários, foram realizados ainda grupos de diálogo sobre a temática e aplicados formulários on-line, preenchidos por pessoas de todas as religiões e sem religião em todo o país para efeito de comparação.

Os resultados mostram que 49%, ou quase metade, dos evangélicos que responderam aos questionários afirmaram ter tido acesso a conteúdo falso. Nesse grupo cristão entrevistado, 77,6% disseram ter recebido as fake news em grupos de WhatsApp relacionados às suas igrejas. No levantamento com outros segmentos religiosos sobre mensagens falsas em grupos relacionados às suas religiões, 38,5% de católicos, 35,7% de espíritas e 28,6% de fiéis de religiões afro-brasileiras afirmaram ter recebido. Sobre o conteúdo, 61,9% dos evangélicos declararam que as notícias sobre política eram as mais frequentes.

A pesquisa confirmou o que outros estudos já apontavam: o apelo que a desinformação exerce sobre grupos religiosos, porque se adequa mais a crenças e valores e menos a fatos propriamente ditos. Além disso, a investigação da UFRJ apontou um elemento novo:  a propagação de desinformação se dá mais intensamente entre evangélicos por conta de elementos relacionados à prática da religião nesse grupo. O uso intenso das mídias sociais provocou “um novo ir à igreja” (a pesquisa foi realizada antes da pandemia de Covid-19, o que certamente amplificou esse elemento), associado ao sentimento de pertencimento à comunidade, que gera uma imagem de líderes e irmãos de fé como fontes confiáveis de notícias.

Fake news e fundamentalismos

Apesar de ser uma prática antiga, há elementos novos relacionados ao avanço na propagação de fake news nos ambientes religiosos, em especial das igrejas: maior ocupação de espaços digitais por esse segmento religioso e maior atuação de grupos cristãos na política.

A popularização das mídias digitais faz parte do processo de ampliação de espaço e visibilidade pública de cristãos, principalmente dos evangélicos. A dimensão da participação e da transformação dos receptores em emissores, por meio de processos de interação possibilitados pelas novas mídias, especialmente, pela internet, mudou radicalmente o quadro da relação igrejas-mídias. São inúmeras as páginas na internet ligadas a grupos cristãos e a relação inclui desde as institucionais, de todas as denominações cristãs, passando pelas mais artesanais, montadas por grupos de igrejas, até as mais sofisticadas e mais acessadas, pertencentes a celebridades religiosas ou grupos de mídia.

Ao se considerar as plataformas de mídias sociais há uma infinidade de articulações e espaços. Igrejas e grupos cristãos perceberam que as mídias podem não apenas apresentar o Evangelho e dar visibilidade, mas podem articular, promover socialidade, firmar comunidade. Isso passou a dar novo caráter para a relação das igrejas com as mídias, pois, com a cultura digital, um programa já não é só projetado para emitir, mas tem a dimensão da interação estimulada. Abriu-se mais espaço para encontros, trocas de ideias, debates, informações, divulgações. A dimensão da comunicação como interação/comunhão fica potencializada. A socialidade promovida pelas mídias digitais facilita a socialidade cristã e a evangelização.

Por outro lado, as igrejas passam a não ter mais o controle do sagrado e da doutrina como tinham antes. A abertura para a participação e para que qualquer pessoa que professe uma fé, vinculada ou não formalmente a uma igreja, manifeste livremente suas ideias, reflexões e opiniões, tirou o controle dos conteúdos disseminados das mãos das lideranças. Basta ter um simples blog, nos fartos espaços gratuitos, ou uma conta sem custo nas mais populares redes sociais digitais, e o espaço está garantido para a livre manifestação.

Dessa forma, doutrinas e tradições teológicas passaram a ser relativizadas, bem como a autoridade dos líderes clássicos – pastores e presidentes de igrejas.  Questionamentos de afirmações confessionais são pregados, críticas são explicitadas. Esta é uma característica forte dos espaços midiáticos digitais: as pessoas se sentem liberadas e encorajadas para expressarem o que nunca expressariam num encontro face a face. Processo que ainda faz emergir das mídias novas autoridades religiosas – celebridades (padres e pastores midiáticos, cantores gospel), blogueiros – que se tornam referência para o modo de pensar, agir, ver o mundo, de muitos cristãos.

Tudo isto se relaciona ao avanço, nas últimas décadas, da presença mais intensa de grupos religiosos na política. Esta presença tem se evidenciado mais fortemente por ações que podem ser classificadas como “fundamentalistas”, caracterizadas como reativas e reacionárias às mudanças sociais.

Nesse contexto, observa-se que o fundamentalismo se torna um fenômeno social que ultrapassa fronteiras religiosas, ganha um perfil mais diversificado e adquire caráter político, econômico, ambiental e cultural a partir de uma matriz religiosa. Nessas atuações, certos “fundamentos” são escolhidos para persuadir a sociedade, a fim de estabelecer fronteiras e lutar contra “inimigos”, o que frequentemente resulta em um movimento polarizador e separatista, que nega o diálogo, a democracia e estabelece um pensamento único que visa direcionar as ações no espaço público.

Essas constatações estão presentes na pesquisa “Fundamentalismos, crise da democracia e ameaça aos direitos humanos na América do Sul: tendências e desafios para a ação”, que nasceu da preocupação de igrejas e organizações baseadas na fé (OBFs), articuladas por meio do Fórum Ecumênico ACT Aliança Sul Americano (Fesur), do qual a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese) é integrante. O Fesur tem observado transformações na arena pública em termos sociopolíticos, econômicos, culturais e ambientais, no contexto de diferentes países. Essas mutações têm se dado na forma de reações a avanços e conquistas no campo dos direitos de trabalhadores/as, de mulheres e de comunidades tradicionais (indígenas e afrodescendentes), seguidos de retrocessos e obstáculos políticos de vários tipos.

A pesquisa recuperou a origem do termo “fundamentalismo”, que remonta à tendência conservadora de um segmento protestante dos Estados Unidos, na virada do século XIX para o XX. Ele era enraizado na interpretação literal da Bíblia, classificada como inerrante, em reação à modernidade (encarnada na teologia liberal e no estudo bíblico contextual com mediação das ciências humanas e sociais), em atitude de defesa dos fundamentos imutáveis da fé cristã. De lá para cá, a perspectiva fundamentalista foi se transformando, no interior do evangelicalismo mesmo, e ultrapassou as fronteiras da religião. Torna-se uma postura ancorada na defesa de uma verdade e na imposição dela à sociedade.

A pesquisa do Fesur buscou escapar do uso do termo que denota acusação e rótulo de contrários, e mostra que os fundamentalismos podem ser entendidos como uma visão de mundo, uma interpretação da realidade, com matriz religiosa. Esta é combinada com ações políticas decorrentes dela, para o enfraquecimento dos processos democráticos e dos direitos sexuais, reprodutivos e das comunidades tradicionais, num condicionamento mútuo.

Também se identificou, como descoberta, que a matriz religiosa dos fundamentalismos em avanço não é desenvolvida por evangélicos tão só (do ramo histórico e dos pentecostais) mas também por católico-romanos, que se articulam em uma unidade oportunista em torno de pautas e inimigos comuns.

As pautas fundamentalistas que unem lideranças e segmentos evangélicos e católicos são embasadas na moralidade sexual religiosa e na demonização e inferiorização das espiritualidades indígenas e afrodescendentes. Elas servem ao sistema econômico neoliberal ao apregoarem a redução de políticas públicas (ação do Estado, portanto), relegando à “família” o cuidado com educação, saúde, trabalho, aposentadoria, e ao facilitarem as conquistas de terras de populações tradicionais pelo agronegócio e por mineradoras. Por isso a classificação “fundamentalismos político-religiosos”. São identificados como inimigos, movimentos sociais, sindicatos, partidos que buscam defender esses direitos e essas populações.

Essas pautas são disseminadas nas mídias ocupadas por lideranças entre pastores, pastoras, padres, políticos, cantores gospel e novas celebridades religiosas. Além da visibilidade midiática que as transforma em autoridades/referências religiosas que ultrapassam até mesmo as fronteiras religiosas, essas lideranças têm em comum discursos característicos dos fundamentalismos político-religiosos.

Estudos empíricos têm estabelecido a conexão entre a recepção e a propagação de desinformação com o imaginário de cristãos fundamentalistas. O pesquisador da Universidade de Victoria (Inglaterra) Christopher Douglas, por exemplo, indica que a cultura fundamentalista de: 1) negação seletiva da ciência (especialmente da teoria da evolução e da leitura contextual da Bíblia) e desqualificação da informação pelas mídias;  2) criação de fontes alternativas para conhecimento e informação: suas próprias universidades, museus e mídias; 3) formação cognitiva para rejeitar conhecimento especializado e buscar alternativa – geração de incapacidade de pensamento e análise críticos, é base para que fake news se espalhem facilmente entre cristãos conservadores.

Isso ganha força, no espaço público, segundo Douglas, para além da religião, com o fortalecimento de uma religiosidade partidária entre fiéis (afinidade eletiva com a direita política) e uma aproximação aos extremismos conservadores.

Para esses grupos, o trabalho das agências de pesquisa e dos sites que promovem a checagem de informações não tem efeito. Isso porque, como indicado neste artigo, o que sustenta o processo de crença nas mentiras não é apenas a ignorância, mas o fato de que as pessoas acreditam no que escolhem acreditar.

Quando um grupo se identifica com mentiras, mesmo que elas sejam demolidas em nome da ética e da justiça, permanece com elas e as defende de qualquer jeito. Não importa que seja mentira, mas sim a ideia contida, a falsidade não é apagada dos espaços virtuais e continua ainda a ser reproduzida. E mais: aquele que desmascarou a notícia ou a ideia, que pode ser um familiar, amigo ou irmão na fé, chega a ser objeto de desqualificação e rancor.

 “Ideologia de gênero” é o maior exemplo de fake news entre cristãos

O maior exemplo de fake news criada em espaço cristão na América do Sul é a chamada “ideologia de gênero”. Esta pode ser classificada como a mais bem sucedida concepção falsa criada no âmbito religioso.

Surgido no ambiente católico e abraçado por grupos evangélicos distintos, o termo trata de forma pejorativa a categoria científica “gênero” e as ações distintas por justiça de gênero, atrelando-as ao termo “ideologia”, no sentido banalizado de “ideia que manipula, que cria ilusão”. A “ideologia de gênero” nessa lógica é apresentada como uma técnica “marxista”, utilizada por grupos de esquerda, com vistas à destruição da “família tradicional”.

É fato que qualquer tema que traga o assunto “sexo” e “sexualidade” mexe com o imaginário dos cristãos e provoca muitas emoções. É de se considerar também que nos últimos anos, o contexto político brasileiro ressuscitou e realimentou o velho temor do comunismo e do marxismo. Como a maioria das pessoas não tem conhecimento das teorias de Karl Marx, passa a acreditar nos irmãos de fé que falam de novas técnicas de escravização de mentes desenvolvidas por um “marxismo cultural”.

É fato ainda que os avanços nas políticas que garantem mais direitos às mulheres e às pessoas LGBTQIA+, e ainda participação delas no espaço público, causam desconforto às convicções e crenças de grupos que defendem, por meio de leituras religiosas, a submissão das mulheres e a “cura gay”.

Não foi por acaso que esse tema ocupou grande espaço nas campanhas eleitorais de 2018 e de 2020 no Brasil, com muita circulação de fake news contra as candidaturas de esquerda, que têm por prática a defesa de direitos de gênero.

O tema se soma a outros que têm sido fortemente inseridos nas mídias sociais de comunidades de fé, como o da “cristofobia”, uma suposta perseguição religiosa contra cristãos no Brasil, e o perigo comunista, de uma alegada ameaça vermelha à nação. Tal quadro tem estimulado iniciativas de resposta para a superação dessas práticas de comunicação que têm causado tanto mal aos grupos com identidade cristã.

O enfrentamento das fake news nas comunidades de fé

Por ser uma organização defensora dos direitos humanos, formada por igrejas há quase cinquenta anos, a Cese tem avaliado, com preocupação, casos como o da pastora Romi Bencke e outros que revelam o impacto negativo que as fake news causam nas comunidades de fé. Estimulada por sua história de engajamento nas causas por verdade e justiça e pelos resultados da pesquisa Fesur, a Cese decidiu se unir às várias iniciativas de grupos cristãos que têm enfrentado as fake news.

Em 2021, Cese decidiu que sua campanha anual Primavera para a Vida, que estimula as igrejas a ações referentes a temas sociais emergentes, teria o tema “Buscar a verdade: um compromisso de fé”. Iniciada em setembro de 2021, a campanha contou com um seminário virtual sobre o tema, uma publicação gratuita – que traz como proposta a reflexão sobre esses novos desafios para as sociedades democráticas, através de subsídios bíblicos e teológicos para que as igrejas utilizem em seus diversos espaços de formação e reflexão -, em português e em espanhol, cujo título é o mesmo da iniciativa, formação para igrejas sobre o impacto das fake news e indicação de formas de ação. Para esse último objetivo, a Cese publicou um conjunto de cards para mídias sociais com as principais mentiras que circulam em ambientes cristãos e atitudes preventivas diante delas.

A campanha com cards foi produzida em conjunto com o Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias, que foi parceiro da Cese na Campanha Primavera para a Vida 2021. Bereia é iniciativa ímpar entre as ações contra as fake news no Brasil, pois é o único projeto de jornalismo colaborativo de checagem de fatos especializado em religião. O projeto tornou-se pioneiro no Brasil em verificação de fakes news que circulam em ambientes digitais religiosos, com atenção voltada para cristãos. Criado em 2019, ele é resultado da pesquisa do Instituto Nutes, da UFRJ, citado neste artigo.

A equipe do Bereia, formada por jornalistas, estudantes de comunicação e outros voluntários interessados na busca de superação da desinformação, acompanha, diariamente, mídias de notícias cristãs e pronunciamentos e declarações de políticos e autoridades cristãs de expressão nacional, veiculados pelas mídias noticiosas e pelas mídias sociais. A Cese continua na parceria com o Bereia, em 2022, com a produção de novo conjunto de cards para mídias sociais, numa extensão do tema da Campanha  Primavera para a Vida.

O Coletivo Bereia integra a Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD), fundada em 2020, nascida da inquietação de pesquisadores/as de diferentes universidades provocada pela observação e o estudo da potencialização da circulação de desinformação no campo político e, muito intensamente, durante a pandemia. A RNCD passou a interligar projetos e instituições de diversas naturezas que trabalham e contribuem de alguma forma para combater o mercado da desinformação que floresce no Brasil.  São coletivos, iniciativas desenvolvidas dentro de universidades, agências, redes de comunicação, revistas, projetos sociais, projetos de comunicação educativa para a mídia e redes sociais, aplicativo de monitoramento de desinformação, observatórios, projetos de fact-checking, projetos de pesquisa, instituições científicas, revistas científicas, dentre outros.

A RNCD busca unir esforços, praticar a sinergia, potencializar a visibilidade do trabalho realizado em cada projeto e criar uma onda de enfrentamento da desinformação. Por meio da RNCD é possível conhecer e se integrar a projetos que incluem educação contra fake news que ensinam como os próprios usuários das mídias digitais podem fazer, eles/elas mesmos, a checagem da informação que recebem.

Em parceria com o Coletivo Bereia, a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito – Núcleo Minas Gerais lançou, em 2021, o site Mentiras do Éden. O projeto tem por objetivo construir com as igrejas um pacto pela verdade, prevenir e combater as notícias falsas, principalmente as de cunho religioso. Mentiras do Éden tem realizado atividades em defesa da democracia e do direito à informação, voltadas para a comunidade evangélica, com formações educativas sobre fake news e utilização das mídias sociais.

Durante o período eleitoral de 2020, foi realizada a Campanha #IgrejaSemFakeNews, promovida pela Igreja Batista em Coqueiral (Recife, PE), por meio do Instituto Solidare, em parceria com a Tearfund e a Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB). Uma das ações foi o lançamento da publicação Diga Não Às Fake News!,  com reflexões acerca do tema, tanto à luz da Bíblia quanto da legislação brasileira. O livro gratuito permanece à disposição do público. Outro material resultante da Campanha é o livro da Abu Editora, “As fake news e a Bíblia. Estudo bíblico indutivo”, também com acesso gratuito, organizado por Morgana Boostel e Thiago Oliveira.

Para a diretora executiva da Cese e pastora da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, Sônia Mota, unir-se a esses projetos para enfrentar as fake news nos espaços cristãos significa fortalecer conjuntamente o enfrentamento aos discursos de ódio e de perseguições a lideranças religiosas. “É nosso papel denunciar o avanço fundamentalista que manipula textos bíblicos para disseminar mentiras que afetam não só as igrejas, mas processos mais amplos como a democracia e os direitos humanos”, afirma a pastora.

Com isso, as igrejas cumprem um papel importante na defesa da democracia e da dignidade humana para que casos como o da pastora Romi Bencke se tornem memória sobre a qual se pode construir ações permanentemente transformadoras.

Magali Cunha é jornalista, doutora em Ciências da Comunicação e editora–geral do Coletivo Bereia.
Bianca Daébs é doutora em Educação, mestra em História Social e atua como assessora para Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso da Cese.
Tarcilo Santana é jornalista e atua como analista de Comunicação da Cese.

Foto de capa: reprodução Le Monde Diplomatique Brasil

Bereia participa da série especial “Não bote Fé nas fake news”

O jornal Le Monde Diplomatique Brasil publicou em 16 de maio o artigo “Fake news nas igrejas: uma epidemia a ser curada” escrito pela editora-geral do Bereia, Magali Cunha, em parceria com a equipe da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese). A matéria abre a série “Não bote fé nas fake news”, que trata sobre o fenômeno da desinformação em comunidades de fé e como ele afeta a democracia brasileira. 

Produzida pelo jornal em parceria com a Cese, a série especial preparou um podcast com cinco episódios que podem ser ouvidos no Spotify ou diretamente no site do jornal.
Neste link você acessa o artigo “Fake news nas igrejas: uma epidemia a ser curada” e aqui pode acompanhar os demais episódios do podcast.

Foto de capa: Pixabay

É urgente enfrentar o tráfico de mentiras entre cristãos!

Publicado originalmente na Carta Capital

As últimas pesquisas de opinião pública de diferentes institutos têm registrado um derretimento do apoio do segmento cristão, em especial o evangélico, ao governo Bolsonaro. Quem vive o cotidiano e a carestia que o aflige (compra comida, remédios, paga contas, usa transporte público, entre os muitos gastos) se sente traído pelo não cumprimento das promessas de um “Brasil acima de tudo”. E, entre cristãos e cristãs, não são poucos os que avaliam que Deus não está “acima de todos” nesta situação. 

O grupo cristão ainda segue como base forte e privilegiada de apoio do governo, afinal, os 29% do segmento evangélico que atribuem “bom e ótimo” ao governo não são desprezíveis. Tornou-se imprescindível, portanto, como estratégia de superação das baixas de apoio, manter esta base. Com isto, a disseminação de conteúdo falso e enganoso com vistas à manutenção e à ampliação do apoio de cristãos ao governo segue com força.

Esta preocupação levou a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), uma organização que atua na promoção, na defesa e na garantia de direitos no Brasil, a dedicar atenção ao enfrentamento das popularmente denominadas “fake news”. Ou seja, as mentiras. Estas mensagens com conteúdo falso e enganoso que circulam amplamente entre cristãos, por sites gospel e por mídias sociais, são agora tema da campanha anual da CESE, a Primavera pela Vida. 

Criada por igrejas cristãs há 48 anos, a CESE realiza esta campanha na primavera, desde os anos 2000, pela qual oferece estudos e reflexões inspirados em demandas sociais prementes. “Buscar a Verdade: Um Compromisso de Fé” é o tema da campanha Primavera pela Vida de 2021. 

Tive a honra de participar do evento de lançamento como pesquisadora do tema e editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias (em ambientes digitais religiosos), quando apresentei um estudo sobre o tema (a gravação pode ser acessada aqui). Na ocasião foi lançada a publicação “Buscar a Verdade: Um Compromisso de Fé” (que pode ser baixada aqui). 

Pesquisas mostram como o pânico em torno da moralidade sexual, somado à antiga falácia da “ameaça comunista”, foram importantes para garantir o apoio de cristãos à eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Durante o primeiro ano do governo do ex-capitão estas pautas ainda foram fortes, em especial na sustentação dos chamados ministérios ideológicos da Educação e o da Mulher, Família e Direitos Humanos. Estas pautas foram também aplicadas na campanha eleitoral para os municípios em 2020, mas com menor incidência. A não-reeleição de Marcelo Crivella no Rio de Janeiro, que fez farto uso destes conteúdos na campanha, mostra que o efeito destes conteúdos falsos e enganosos já não é mais o mesmo. Pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (ISER) a ser publicada em breve mostra bem isso.

Quais são, então, os temas fortes que têm alimentado a busca de apoio ao governo Bolsonaro entre cristãos neste momento em que ele completa mil dias e se encontra com baixíssima aprovação? De acordo com as checagens realizadas pelo Bereia, durante o último ano, mensagens sobre a covid-19 alimentaram o pânico e a ideia da “ameaça comunista” por conta de ênfases em relação à China (origem do vírus e de vacinas). Outra temática muito disseminada tem sido a da liberdade religiosa, que estaria em risco por conta do que passou a ser denominado “cristofobia”. O discurso de Jair Bolsonaro na ONU em 21 de setembro, com acenos sobre concessão de vistos a ‘cristãos afegãos’ e defesa da liberdade e da família tradicional expressa bem isso.

Este tema foi base para os atos de apoio ao governo em 7 de setembro passado, quando se reclamava o direito à liberdade que estaria sendo negada por conta de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) às quais governo e manifestantes se opõem. Há um ano eu já escrevia neste espaço sobre a liberdade religiosa. Afirmei naquele setembro de 2020, que no Brasil, se seguirmos a lógica dos fatos, o termo “cristofobia” não se aplica, por conta da predominância cristã no país.

Casos de perseguição religiosa que atingem este grupo religioso são pontuais e são reflexos de vários aspectos. Um deles é a ignorância e do preconceito contra evangélicos. Outro é a repressão a ações por justiça (como o que ocorre com o padre Júlio Lancelloti em São Paulo). E ainda os atentados a símbolos e templos católico-romanos por extremistas evangélicos.

É sempre bom lembrar que perseguição religiosa recorrente no Brasil quem sofre mesmo são as religiões de matriz africana. Relatórios do governo federal até 2015 mostram isto, como fruto de histórica demonização destas religiões por conta da hegemonia cristã exclusivista, e também do racismo estrutural, por serem expressões de fé da cultura negra.

Cristãos têm plena liberdade no Brasil. Os conservadores extremistas que pedem mais liberdade usam a palavra para falarem e agirem como quiserem contra os direitos daqueles que consideram “inimigos da fé”. Ou seja, contra ativistas de direitos humanos, partidos de esquerda, movimentos por direitos sexuais e reprodutivos, religiosos não cristãos e até mesmo cristãos progressistas. 

Daí o conteúdo falso postado por supostas mídias de notícias e em mídias sociais, que afirma que o STF está freando a liberdade de cristãos e promovendo perseguição religiosa. Referem-se a quando a Corte decide pelo direito à união estável homoafetiva, que homofobia seja tipificada como crime de racismo, que terceiros (incluindo missões religiosas) sejam proibidos de entrar em aldeias indígenas isoladas durante a pandemia de covid-19. Vale lembrar que o STF atua para que a Constituição Brasileira seja cumprida, garantindo direitos a todos independentemente de vinculação religiosa, pois esta não rege as leis do país, que é laico.

A iniciativa da CESE na Primavera para Vida é muito relevante. Ela se une a projetos como o Coletivo Bereia, a Plataforma Religião e Poder do ISER e outros que tomam grupos religiosos como componentes importantes na arena pública. Eles colaboram para o enfrentamento do tráfico de mensagens que mantém cristãos presos em uma rede de mentiras. Eles devem ser amplamente apoiados e divulgados.

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Foto de capa: Pixabay

Campanha Primavera para a Vida 2021 debate fake news dentro das comunidades de fé

Lançamos a 21ª edição da Campanha Primavera para a Vida, que aborda o caminho da verdade como um princípio cristão que produz paz e justiça e denuncia os danos que a cultura de produzir e difundir “Fake News” (expressão sofisticada para o termo “mentira”) tem causado na sociedade, de modo mais particular em comunidades de fé.

A live de lançamento contou com a participação da editora-geral do Bereia, Magali Cunha, da pastora Romi Bencke e da ativista Ana Gualberto, além de diversos membros do movimento ecumênico.Como parte da campanha lançamos também a publicação “Buscar a Verdade: Um Compromisso de Fé”, que traz conteúdos para debate e difusão da aplicação do princípio da verdade. Você pode baixar a publicação aqui.

A campanha, que promovemos desde 2001, busca articular o diálogo com as Igrejas, fortalecendo o compromisso ético com a promoção e garantia dos Direitos Humanos, contribuindo para a formação das lideranças clérigas, leigas e das comunidades de fé, disponibilizando estudos bíblico-teológicos inspirados em demandas sociais vivenciadas pela organização.