Existe um amplo uso da tecnologia voltado à prática e ao agravamento de violações dos direitos humanos em Israel por parte de empresas de tecnologia, como a Meta (que controla Facebook, WhatsApp e Instagram), no sentido de promover a censura, reter informações e indiretamente favorecer as estratégias do governo israelense no contexto das operações militares em Gaza no último ano.
A denúncia é do Centro Árabe para o Avanço das Mídias Sociais (7amleh) e aparece no relatório “Direitos digitais palestinos, genocídio e responsabilização das grandes tecnologias”, divulgado no mês de setembro pela organização. O documento aponta a Meta como uma das mais atuantes. O Observatório Palestino de Violações dos Direitos Digitais, ligado à 7amleh, identificou mais de 5.100 casos de censura digital e veiculação de conteúdo enganoso em plataformas como a de Mark Zuckerberg no período de 7 de outubro de 2023 a setembro de 2024.
O relatório também destacou a disseminação de campanhas com conteúdo desinformativo, com danos à liberdade de expressão, ao acesso à informação e ao direito à segurança. Vale lembrar que conteúdos falsos têm sido usados até para prejudicar as ações de ajuda humanitária em Gaza, segundo revela o documento.
A Human Rights Watch já havia denunciado em dezembro de 2023 graves violações aos direitos humanos aos palestinos de Gaza e também a censura imposta. Em um comunicado para apresentar o relatório que elaborou, a organização apontou a atuação da Meta ao dizer que as políticas e práticas da empresa “têm silenciado vozes em apoio à Palestina e aos direitos humanos palestinos no Instagram e no Facebook em uma onda de censura intensificada nas redes sociais“.
Na mesma nota, a Human Rights Watch destacou que no período de outubro a novembro do ano passado mais de 1.050 postagens foram removidas ou conteúdos suprimidos no Instagram e no Facebook, todas feitas por palestinos e apoiadores, incluindo aquelas que tratavam de abusos de direitos humanos.
A Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal Brasil), em postagem nas mídias digitais, reforçou o conteúdo da 7amleh ao dizer que a Meta mantém “laços profundos com o apartheid israelense e promove censura sistêmica e global de conteúdo sobre a Palestina e de denúncia do genocídio”. Outra acusação contra a Meta é que ela estaria subsidiando os israelenses com dados de WhatsApp de palestinos de Gaza que seriam usados nas ações de ataques e bombardeios, apontou a Fepal Brasil.
Em vídeo no Instagram que viralizou, neste 18 de abril, prefeita de Canoinhas (SC) Juliana Maciel (PL) aparece jogando no lixo livros do programa de educação nas escolas Mundoteca. Ela se referiu às obras como “porcaria” e alegou que não seriam adequadas para crianças e adolescentes, por não respeitarem os “valores” da família.
Maciel, que se elegeu, pelo PSDB, em 2020, mas migrou para o PL,em 2023, disse: “Mais uma vez o governo do PT faz este tipo de coisa. Não é o que realmente uma criança ou até um adolescente precisa ler numa biblioteca. Então, aqui em Canoinhas, a gente jogou esse tipo de porcaria no lixo”. A prefeita, atualmente, conta com o apoio de PP e PL para concorrer à reeleição.
Imagem: reprodução do Instagram
Os livros que aparecem no vídeo não fazem parte de programa do governo federal. Um deles, “Aparelho Sexual e Cia – Um guia inusitado para crianças descoladas”, conforme Bereia apurou à época, foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras, de autoria dos educadores da Suíça e França, Phillipe Chappuis, com o codinome ZEP e Hélène Bruller, nunca foi comprado pelo Ministério da Educação, nem foi distribuído em escolas.
A mesma estratégia de associação falsa do livro ao PT foi utilizada nas campanhas presidenciais de 2018 e 2022. A obra publicada pela Companhia é voltada à crianças e jovens de 11 a 15 anos – e não para crianças a partir de 6 anos, como circulou nas mídias sociais e foi reforçado pelo então candidato Jair Bolsonaro em entrevista.
Imagem: reprodução do site da Companhia das Letras
O outro livro que a prefeita de Canoinhas joga no lixo é “As melhores do Analista de Bagé”, da Editora Objetiva, seleção de crônicas do escritor gaúcho Luis Fernando Verissimo ao público juvenil, que também não foi distribuído pelo governo federal. Ambos os livros constam na biblioteca comunitária Mundoteca, mas nunca foram indicados ou emprestados para crianças, segundo dirigentes. O primeiro é indicado para adultos e o segundo para o público juvenil.
Lei Rouanet, alvo constante de desinformação
Juliana Maciel ainda diz no vídeo que a Mundoteca seria “um programa do governo federal e tal, Lei Rouanet, essas coisas”. A Lei Rouanet é frequentemente usada em desinformações, como Bereia já checou várias vezes.
A forma mais comum de financiar projetos via Lei Rouanet é o incentivo fiscal, prática que articula setor cultural, governo e setor privado”. Para beneficiarem-se de um incentivo fiscal, os projetos culturais devem, primeiramente, ser submetidos à avaliação de um corpo técnico, que verifica se o projeto se enquadra nos requisitos da lei. Uma vez aprovados pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Cnic), órgão que analisa se os projetos que buscam incentivos fiscais estão em conformidade com a lei, os projetos são autorizados a captar recursos junto ao setor privado. As empresas que investem em projetos culturais recebem descontos em impostos devidos ao governo. Quem decide quais projetos apoiar são as próprias empresas.
“Peças de desinformação estão expondo o projeto Mundoteca, da FGM Produções, como sendo uma iniciativa do Governo Federal. Aprovado a captar recursos por meio da Lei de Incentivo Cultural em 2018, o projeto foi executado entre 2019 e 2023. Apesar de acessar uma política pública de incentivo, a Mundoteca não é uma ação do Governo Federal”.
Em nota, a produtora cultural explica como funciona a Mundoteca:
“Além das bibliotecas, oferecemos nas cidades uma formação de mediadores de leitura, palestra para professores e treinamento dos profissionais que serão responsáveis pela gestão do espaço. Em cada unidade, é previsto em contrato assinado com as prefeituras das cidades contempladas um período no qual a gestão do espaço é feita pelo projeto Mundoteca, com contratação de educadores sociais e acompanhamento pedagógico. Após esse período, a gestão, a biblioteca e todos os seus recursos passam à gestão das próprias prefeituras.”
Ainda de acordo com a nota do Governo, a unidade do projeto de onde se originou o factoide desinformativo era de gestão da própria prefeitura do município:
“A unidade de Marcílio Dias, na cidade de Canoinhas, foi inaugurada no dia 19 de novembro de 2022 e gerida pelo projeto por um período de oito meses, como previsto em contrato, não tendo qualquer vínculo com a atual gestão do Governo Federal. Após esse período, o gerenciamento do espaço e de seu acervo foram entregues ao poder executivo municipal.”
Vale ressaltar que o governo federal não envia livros para escolas e espaços dos sistemas municipais e estaduais de educação sem que haja a devida solicitação dos materiais, realizada por gestores e educadores e escolhidos de maneira democrática nos conselhos de educação.
Além disso, o artigo 216-A da Constituição Federal preconiza o Sistema Nacional de Cultura organizado em regime de colaboração de forma descentralizada e participativa e institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais.
Dentre os princípios desse sistema, está a autonomia dos entes federados como princípio dessa política. O dispositivo constitucional também prevê que Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão seus respectivos sistemas de cultura em leis próprias. Dessa forma, a prefeitura em questão tinha plena autonomia sobre o acervo da biblioteca. Sendo assim, cabia aos responsáveis locais conferir se o acervo estava a contento da comunidade dentro das tratativas do contrato com o projeto Mundoteca.
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Bereia, com base nas informações apuradas, classifica a informação apresentada pela prefeita Juliana Maciel – de que o livro “Educação Sexual e Cia.” seria iniciativa do governo do PT – é falsa. O livro foi editado originalmente na Suíça e publicado no Brasil pela Companhia das Letras, sem nunca ter feito parte de programas de distribuição por governos do PT.
Bereia alerta leitores e leitoras para o uso de desinformação neste processo eleitoral para os municípios, em 2024. É preciso estar atentos/as a prefeitos/as e vereadores/as candidatos à reeleição ou em campanha por sucessores que fazem uso de mentiras e enganos para convencer a população para suas pautas ou para manifestar oposição a outras, em especial por meio de temas que afetam o emocional das pessoas.
* Matéria atualizada às 23:27 para correção de informações
Em notícia de última hora, o colunista do jornal Metrópoles, Guilherme Amado, revelou que lobistas da Câmara Brasileira da Economia Digital entregaram a deputados evangélicos um documento com a tese de que o PL 2630/20 poderia censurar versículos bíblicos.
Leia a coluna completa de Guilherme Amado neste link. A jornalista Tatiana Dias fez uma thread no Twitter sobre a Câmara Brasileira da Economia Digital.
* Matéria atualizada às 10:25 e às 11:09 de 26/04/2023 e às 9:49 de 27/04/2023 para acréscimo de informações e às 23:36 para correção de link; e às 12:26 de 02/05/2023 para acréscimo de informações
Por conta da votação de um requerimento de urgência na Câmara Federal nesta terça-feira, 25 de abril, passaram a circular nas redes digitais uma série de conteúdos desinformativos referentes à matéria que o compõe: o projeto que regulamenta a atividade das mídias sociais no país, para o enfrentamento da ampla circulação de fake news, que prejudicam situações de interesse público e acionam ódio e violência.
Trata-se do Projeto de Lei 2630/2020, do senador Alessandro Vieira (PSDB-SE), popularmente denominado PL das Fake News. O PL já foi aprovado no Senado, em 2020, e foi enviado naquele ano para a Câmara, seguindo o protocolo de aprovação de leis, e lá se encontrava parado há três anos.
Unindo-se a outros parlamentares que se manifestam contra a votação do PL, o deputado evangélico, vinculado à Igreja Batista, ex-procurador do Ministério Público Federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR), publicou na segunda, 24 de abril, postagem em suas mídias sociais que chamou a atenção pelo uso de textos bíblicos, em tom de pânico, tendo como alvo os cristãos:
O Projeto de Lei 2630/2020, a chamada Lei das Fake News
“Estabelece normas relativas à transparência de redes sociais e de serviços de mensagens privadas, sobretudo no tocante à responsabilidade dos provedores pelo combate à desinformação e pelo aumento da transparência na internet, à transparência em relação a conteúdos patrocinados e à atuação do poder público, bem como estabelece sanções para o descumprimento da lei”.
Esta ementa demonstra que a proposta diz respeito não à censura, mas à regulação da responsabilidade das plataformas de mídias digitais (provedores) para impedir a farta propagação de desinformação, com transparência dos processos de filtragem e transparência dos processos de monetização, em especial quanto a conteúdo maldoso patrocinado. A busca de regulação dos espaços digitais é uma demanda internacional, e vários países no mundo discutem este processo.
“A Internet é essencial para a vida em sociedade, especialmente no que tange ao debate público e à participação política. Mas uma série de transformações nesse espaço, a exemplo da concentração de poder econômico e político das plataformas digitais e da utilização delas em campanhas de desinformação, tem gerado preocupações e levado à criação de novas regras em todo o mundo, a fim de proteger os direitos humanos das pessoas que usam a Internet, evitar a concentração de poder e a degradação da esfera pública”.
“foram realizadas 27 reuniões técnicas, incluindo 15 audiências públicas onde mais de 150 especialistas de diversos setores e áreas foram ouvidos. Além disso, a proposta ganhou mais centralidade diante das preocupações que cresceram, especialmente no contexto das eleições e na tentativa frustrada de golpe no 8 de janeiro, quando restou nítida a insuficiência da ação das plataformas digitais para conter a desinformação e os ataques à democracia. Esta conjuntura demonstra que a proteção da democracia e dos direitos humanos no ambiente digital necessita pactuação de novas ações e regras para enfrentar esses novos desafios”.
O CDR alerta que depois do 8 de janeiro e a crise de segurança das escolas, as empresas de tecnologia que dominam o mercado das mídias digitais (como Google/Alphabet, Amazon, Apple, Facebook/Meta e Microsoft, as chamadas Big Techs), querem adiar o debate e ganham, como aliados, indivíduos e grupos do cenário político, que lucram com a propagação de desinformação e de ações violentas decorrentes.
Segundo a coordenadora da RNCD Profa. Ana Regina Rego, “o relator do PL 2630/20 na Câmara Federal deputado Orlando Silva (PCdoB- SP), afirmou em entrevistas recentes que o PL absorveu sugestões que vieram do Governo e que tem como inspiração a lei dos Serviços Digitais da União Europeia (Digital Service Act- DSA) tais como: a ideia do dever de cuidado a partir das plataformas, a questão da análise de risco sistêmico, a criação de auditorias independentes, obrigações legais de transparência e criminalização do mercado da desinformação”.
A Profa. Ana Regina Rego acrescenta que o Ministério da Justiça tem defendido a responsabilização civil das plataformas pelos danos causados por conteúdo gerado por terceiros (ou seja, elas seriam responsáveis pelo que permitem tornar público), porém isto “contraria o Artigo 19 do Marco Civil da Internet, que reza que as plataformas não podem ser responsabilizadas por tais conteúdos, a não ser se descumprirem decisões judiciais”. A coordenadora da RNCD explica que este é mais um ponto polêmico em discussão no governo, no Congresso, no STF e nas instituições da sociedade civil que acompanham de perto as questões vinculadas a regulação das plataformas e combate à desinformação no Brasil.
Desde 2020 travado na Câmara Federal, em março de 2022, o PL ganhou nova versão do relator deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), mas teve suas expectativas de aprovar o projeto antes das eleições presidenciais frustradas quando a Câmara rejeitou o regime de tramitação com urgência.
O requerimento de urgência foi apresentado tendo em vista as medidas demandadas por conta de episódios violentos, como os assassinatos em escolas, alguns praticados por menores de idade, e vem se intensificando nos últimos meses incentivados por extremistas organizados nas mídias digitais. Os ataques golpistas contra a democracia do Brasil, concretizados em 8 de janeiro passado, também impulsionaram o projeto de lei.
O requerimento de urgência acelera a tramitação do texto, sem que ele passe por comissões e seja avaliado diretamente em plenário. A previsão é que o plenário da Câmara vote o mérito do PL em 2 de maio. Caso seja aprovado pelos deputados, o texto passará por uma votação no Senado, que dará a palavra final sobre o texto.
Políticos notadamente identificados como propagadores de desinformação (conteúdo falso, popularmente denominado fake news, mas também enganoso, impreciso e inconclusivo, como Bereia tem apresentado em suas checagens), desde a apresentação do requerimento de urgência no início da atual legislatura da Câmara Federal, têm publicado material falso e enganoso contra a lei. Entre estes estão vários deputados com identidade religiosa, como Deltan Dallagnol.
Oposição ao PL das Fake News com mentiras
Matéria da Agência Pública, deste 24 de abril, apresenta estudo, obtido com exclusividade, do Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais (NetLab) da UFRJ, que buscou identificar como o PL das Fake News “tem sido alvo de desinformação nas diferentes plataformas”. A partir de publicações no Twitter, WhatsApp, Telegram, Facebook, Instagram, Youtube, TikTok e veículos de propagação de fake news (Jornal da Cidade, Gazeta do Povo, Revista Oeste e Jovem Pan), entre 26 de março de 16 de abril passados. Foram identificadas duas noções falsas propagadas nestes espaços e replicadas por seguidores e simpatizantes: “O PL 2630 favorece os grandes grupos de mídia”, no caso para manter o monopólio da grande imprensa que “favoreceu Lula”; e “Lula usa tragédias como pretexto para censura”, o que significa dizer que o PL 2630 seria uma lei de censura.
A reportagem ouviu a professora doutora em Ciência da Informação Rose Marie Santini, uma das autoras do estudo, que explica que tais noções são mais um grupo de mentiras produzidas pela extrema-direita. “Não são críticas consistentes. As [críticas] que eles fazem, como ‘a rede social é o último refúgio da oposição’, ‘esse PL é um instrumento de dominação da esquerda’, ou ‘é uma forma de censura’ são completamente sem cabimento. A gente tem outras críticas, críticas técnicas, mas não essas. Críticas conceituais de uma PL e de uma regulamentação em si. Eles [os deputados e grupos da extrema-direita] não estão entrando de verdade na discussão, eles estão criticando conceitualmente a ideia de se regulamentar e não o que está se regulamentando”, declarou à Agência Pública.
Segundo o estudo apresentado na matéria, “parlamentares da extrema-direita como Flávio Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, Carla Zambelli, Gustavo Gayer e Mário Frias e influenciadores como Leandro Ruschel, Elisa Brom e Kim Paim se destacam como principais porta-vozes da campanha contra o PL 2630 nas diferentes plataformas”. O texto acrescenta que o Partido Novo e seus filiados também se destacam por terem proposto um Projeto de Decreto Legislativo para derrubar o PL.
A Bíblia como instrumento da mentira de Deltan Dallagnol: biblistas avaliam
O deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR), eleito em 2022 com base nas pautas da extrema-direita, chamou a atenção neste grupo de propagadores de conteúdo falso contra o PL 2630 por conta do uso da Bíblia para atingir o público cristão.
Membro da Igreja Batista em Curitiba, Dallagnol lançou mão de seu conhecimento de textos bíblicos que tocam em pautas atraentes para a atenção de grupos cristãos – a moralidade sexual, a defesa da família e a suposta ameaça da perseguição por governos identificados com a esquerda – para buscar apoio de fiéis católicos e evangélicos à oposição ao projeto de lei de enfrentamento das fake news.
Segundo o ex-procurador, a aprovação da nova lei, que ele chama de “PL da Censura” deve ser impedida pois “até a fé será censurada” e coloca como exemplos “alguns versículos [que] serão banidos das redes sociais. O deputado passa a listar uma série de versículos e trechos de livros bíblicos do Antigo e do Novo Testamentos que seriam, no seu entender, banidos da rede, sob a vigência da lei.
Como verificado acima, o deputado apresenta argumento falso porque o PL 2630 não tem caráter de censura. Em primeiro lugar, porque o alvo da lei é a regulação das plataformas de mídias para que sejam responsabilizadas especificamente por conteúdo danoso na forma de desinformação e violência estimulada. Em segundo, porque tal característica o tornaria inconstitucional, dadas as garantias da Constituição Federal à liberdade de opinião e de expressão (Artigo 5º, incisos IV e IX). Isto está explicitado em vários trechos do documento, em especial no artigo 6º, cuja reprodução do capítulo II do Projeto de Lei circula amplamente em mídias sociais há dias para contrapor a noção de censura, falsamente propagada pela extrema-direita, como o estudo do Netlab-UFRJ mostra.
Bereia ouviu dois estudiosos da Bíblia pra uma avaliação do discurso do deputado Deltan Dallagnol. Um deles é o Prof. Dr. Marcelo Carneiro, pesquisador do Cristianismo Primitivo e professor de Novo Testamento da Universidade Metodista de São Paulo (MEC).
Para ele, “Dallagnol faz um recorte da Bíblia, no mínimo grosseiro. Os textos que ele usa variam de tema: alguns condenam a homossexualidade, outros reforçam a autoridade do homem sobre a mulher, alguns falam da punição que os pais devem exercer sobre as crianças. Em todos os casos, esses textos já são foco de debate intenso, que precisam ser contextualizados cultural e historicamente, e não podem ser aplicados literalmente. Isso já é ponto passivo de discussão até mesmo em igrejas conservadoras.”
Carneiro continua: “Por exemplo, ele cita Levítico 20.10 e 13: são ordens de uniões proibidas que devem ser punidas com a morte. Será que o nobre político deseja que se crie a pena de morte para tais atitudes, como o adultério? Por outro lado, ao citar Deuteronômio 22.28-29, ele está insinuando que um casal que fizer sexo terá que casar obrigatoriamente?”
O biblista da UMESP, que atua a partir do contexto evangélico, admite que “os textos que ele diz serem passíveis de censura já são controversos mesmo no debate interno das igrejas cristãs, e alguns foram abandonados por serem considerados inaplicáveis em nosso tempo. Nenhum deles está na categoria que podemos chamar mandamentos éticos, ou seja, que tenham valor universal e atemporal. São textos morais, cuja limitação se coloca no tempo e no espaço onde foram elaborados. Nem mesmo Israel aplica de forma direta os textos citados acima. E o Novo Testamento, que tem centenas de textos que colocam as mulheres em igualdade com os homens, é resumido a dois ou três textos que as colocam submissas aos homens, proibidas de ensinar e sem qualquer autoridade”.
Marcelo Carneiro alerta que “isso não condiz com as práticas e ensinos de Jesus, e nem mesmo do apóstolo Paulo. O único texto que cita de Jesus, Mateus 10.34-36, é o que fala da família dividida por causa do evangelho. Talvez seja o único que cabe para nossos dias, diante das divisões que as famílias tiveram que enfrentar, devido à situação política do país e as muitas mentiras que envenenaram os debates sobre política”.
O professor questiona: “Mais uma vez, a Bíblia é usada de forma recortada, fora de seu contexto, com o fim de embasar certos discursos. O campo conservador acusa o campo progressista de fazer isso, mas usa do mesmo artifício. A questão é: com que fim se faz o recorte? Que aspecto ético está sendo levado em conta? Citar a Bíblia sem contextualizar adequadamente os textos é, na opinião de qualquer estudioso sério, ato de má-fé”.
Já o biblista Doutor Honoris Causa em Ciências das Religiões, pela Universidade Federal da Paraíba, Marcelo Barros reconheceu ter dificuldade com o tema: “Não sei se compreendi bem o problema e a denúncia de censurarem a Bíblia nas redes sociais. Não compreendi bem como fariam isso, nem de que forma. Menos ainda o que isso tem a ver com o Congresso Nacional. Em um momento no qual estamos tentando de todos os modos, retomar o caráter laical do Estado, como entrar nesse tipo de discussão? Dá a impressão de que nos impõem uma pauta para obstruir o processo da laicidade reconquistada. E fazem isso usando de versos que amamos e que são força para nós e, sim, versos de fato problemáticos e que são sempre usados por eles, conservadores, fundamentalistas (que a mulher deva ser submissa ao marido, que homem que dorme com outro seja excluído da comunidade e morto, que os servos obedeçam a seus senhores, etc). É estranho isso, ao menos para alguém que vê de fora como eu”.
Marcelo Barros também vê dificuldade em comentar o assunto exegeticamente: “porque se fosse para ser coerentes naquilo que eles dizem estar defendendo, haveriam de ser cancelados vários capítulos do livro do Levítico e não apenas um verso. Teriam de cancelar todo um texto do capítulo 3 de Colossenses e não apenas aquele citado”.
O biblista católico avalia que “mesmo sem entrar no detalhe da exegese de cada texto proposto relacionado à campanha contra a PL 2630, podemos concluir que não há sentido em destacar esses textos do conjunto da Bíblia como se esta fosse um livro a-histórico e fora da realidade. A fidelidade à Palavra de Deus pede que compreendamos como a revelação divina é evolutiva e, portanto, não seria honesto querer se deter em um momento da revelação sem ver como a partir do Cristo tudo o que era passado pode ser visto à luz da ressurreição”.
Em notícia de última hora, o colunista do jornal Metrópoles, Guilherme Amado, revelou que lobistas da empresa Meta (controladora do Facebook, do Instagram e do WhatsApp) entregaram a deputados evangélicos um documento com a tese de que o PL 2630/20 poderia censurar versículos bíblicos. A Meta negou a acusação.
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Bereia verificou as afirmações do deputado batista Deltan Dallagnol, em postagem de conteúdo contrário à votação do PL 2630, e conclui que são falsas. Não há qualquer base factual ou documental para se atribuir ao projeto de lei o caráter de censura, muito menos em relação uma seleção de textos da Bíblia que são usados para embasar certos temas referentes à moralidade religiosa cristã e à compreensão de família. O deputado recorre ao discurso alarmista da censura e da perseguição a cristãos que vem sendo usado para convencer pessoas das igrejas a aderirem a pautas da extrema-direita em processos eleitorais e para interferirem em temas de interesse público, como o enfrentamento da desinformação, do ódio e do extremismo pelas plataformas digitais. Bereia já alertou leitores e leitoras sobre tais discursos falsos e enganosos em várias matérias.
Bereia também chama a atenção para a contribuição dos estudiosos da Bíblia que alertam leitores e leitoras para o uso irresponsável e desonesto dos textos cristãos sagrados para instrumentalização política e para mentir.
Em 19 de agosto passado, o site gospel de notícias Pleno News repercutiu um post de mídias sociais do Pastor Lucinho Barreto, segundo o qual a expressão religiosa “Glória a Deus! Aleluia” estaria sendo censurada pelo Facebook por ser classificada como discurso de ódio. Em sua postagem, o pastor da Igreja Batista da Lagoinha (Belo Horizonte/MG) reproduziu um print de um vídeo do youtuber Gustavo Gayer, empresário ligado à extrema direita política, que consta entre os investigados no inquérito sobre fake news do Supremo Tribunal Federal.
O vídeo de Gustavo Gayer era uma denuncia de uma mensagem do Facebook que aparecia após usuários registrarem o comentário “Glória a Deus! Aleluia”. Segundo o youtuber, a plataforma registrava: : “É possível que este comentário não siga nossos Padrões de Comunidade – Seu comentário está no Facebook, mas é similar a outros comentários removidos por não seguirem nossos padrões sobre discurso de ódio”. Abaixo aparecem duas opções: “Excluir comentário” ou “Ignorar”. No vídeo, depois de mostrar como outros usuários recebiam a mesma mensagem, Gayer passa a concluir que o Facebook promove perseguição religiosa. Foi esta conclusão de o pastor Lucinho e, depois, o site gospel Pleno News repercutiram.
Fragilidade do sistema de algoritmos
A reportagem do Bereia fez testes de registro da expressão religiosa em perfis de outras pessoas que relataram receber a mesma notificação do Facebook que aparece no post de Lucinho. Não foi recebida a notificação em qualquer dos testes de notificação. Ainda assim, Bereia entrou em contato com pessoas quais comentários de “Glória a Deus! Aleluia” foram classificados como discurso de ódio e confirmou que tal restrição da plataforma de fato ocorreu. Portanto, a restrição do Facebook com a classificação de “discurso de ódio” ocorreu para alguns usuários e não para outros, indicando que não havia um padrão definitivo aplicado para a expressão.
Para entender melhor o que pode ter levado a essa classificação, Bereia entrevistou o doutorando em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC (UFABC) Tarcízio da Silva, cuja pesquisa tem como título “Dados, Algoritmos e Racialização em Plataformas Digitais”. Para ele, o caso é mais um exemplo da fragilidade dos sistema de moderação do Facebook. A empresa de Mark Zuckerberg não é a única a sofrer críticas a respeito de erros em seu sistema. O Twitter, por exemplo, já foi criticado (e confirmou as suspeitas de usuários) de que seu algoritmo privilegia pessoas brancas nos recortes de fotografias. “Seja realizado por algoritmos, por moderação individual humana ou por táticas comuns mistas, a moderação pode errar de diferentes modos. O ponto chave da questão parece ser a falta de transparência do Facebook que permite este tipo de interpretação do problema realizada pelo pastor em questão.”
O pesquisador esclarece que, para se ter certeza do porquê e como os algoritmos do Facebook erraram a classificação em questão, a empresa deveria dar aos usuários acesso aos dados e decisões sobre o assunto. “Porém, estes dados e decisões não são fornecidos à sociedade civil e são usados argumentos de ‘segredo de negócio’ e similares. Na prática, significa que grupos como Facebook (que também detém Instagram e Whatsapp), Google e outras possuem discricionariedade para modular a esfera pública de debate de acordo com seus objetivos de negócio.”
Nesse sentido, poderiam ser feitas diversas questões sobre a moderação. “Qual a composição demográfica de moderadores humanos? Qual o percentual de moderação realizada semi-automaticamente por algoritmos e manualmente por humanos? Qual o percentual de cada tipo de discurso de ódio entre as publicações deletadas ou restringidas? Quais termos e categorias influenciam positivamente ou negativamente a circulação de conteúdos na plataforma? Qual o peso de ações passadas dos usuários para que um conteúdo seja bloqueado? Poderia aqui listar dezenas de questões similares que influenciam práticas de moderação e não são respondidas pela empresa.”, explica o pesquisador.
“Então destaco que é um risco enorme não supervisionar socialmente o Facebook, pois a falta de informações e transparência abre um leque de interpretações possíveis sobre inclinações políticas ou ideológicas da empresa que são ainda mais nocivas e radicalizam alguns grupos. O poder concentrado pelo oligopólio das grandes empresas globais de tecnologia (Facebook, Google, Apple, Amazon, Microsoft) ameaça a própria democracia e avanços humanísticos do último século”, afirma Tarcízio da Silva.
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Bereia reconhece como verdadeira a existência da classificação por parte do Facebook, no entanto classifica como enganoso afirmar que esse caso seja uma “prova” de perseguição religiosa pela plataforma. Três motivos levam à avaliação do Bereia: a classificação não impediu o comentário religioso de ser postado; nem todos os usuários receberam a notificação ao publicar a mesma frase; a falta de transparência do Facebook torna impossível identificar qual é exatamente o motivo pela qual a rede fez essa classificação errada (afinal, uma expressão religiosa de louvor à divindade sem juízo de valor não é discurso de ódio. Sem esta última evidência, não é possível concluir que haja uma perseguição religiosa intencional por parte da empresa como a matéria do Pleno News quer fazer crer. Pleno News simplesmente reproduz o que o Pastor Lucinho diz sem produzir uma verificação, o que fere os princípios do jornalismo que se propõe a informar. O Pastor Lucinho, por sua vez, reproduziu sem conferir, o que o youtuber Gustavo Gayer divulgou, mesmo sabendo que este dissemina fake news, estando entre investigados por estes atos.
Como Bereia observa em várias matérias que produziu, este tipo de publicação serve para alimentar pânico entre religiosos, com a ideia de que existe uma perseguição articulada contra cristãos. Isto é falso e tem sido usado como arma política.
É imprescindível valorizar o jornalismo profissional e combater duas anomias do nosso tempo. Uma delas é o ressurgimento da velha e antiquada censura, que parece ganhar novos contornos mundo afora a guiar as investidas de mandatários que flertam em inviabilizar o contraditório, destruir opositores e asfixiar o debate público. A outra anomia é resultante das tecnologias acopladas ao cotidiano das pessoas e que são usadas indiscriminadamente para a disseminação de notícias falsas, as chamadas fake news. Essas duas anomias impõem uma questão ética fundamental que não podemos nos furtar de responder. Que sociedade, afinal, queremos construir?
Tem surgido várias
campanhas em defesa do jornalismo que miram a proteção da sociedade e de suas
instituições. É bom sempre lembrar que a imprensa livre e autônoma é parte
inerente de qualquer sociedade que se pretenda democrática. A Constituição
Federal, no rol dos direitos fundamentais, infere de forma taxativa no Art. 5º,
XIV, que “é assegurado a todos o direito à informação”. Logo, não há democracia
sem a liberdade de informar e o direito de ser informado.
É necessário haver um diálogo
franco com todos aqueles que almejam credibilidade nas notícias divulgadas,
cientes de que o direito à informação é condição indispensável para gerir o
debate público de forma qualificada e responsável.
Para combater formas autoritárias
que pretendem, ainda que indiretamente, mitigar ou restringir a liberdade de
expressão, é essencial a aplicação dos pressupostos assegurados
constitucionalmente, incluindo o direito à informação, que é legitimado pelo
papel da imprensa, de jornais e jornalistas, e, sobretudo, de fontes detentoras
de confiabilidade.
É patente que o
restringimento de informação ou a mitigação de sua qualidade ferem os direitos
fundamentais da liberdade de informação, indispensáveis para o exercício da
cidadania e manutenção da democracia. Sem informação qualificada corre-se o
risco de gerar uma espécie de arpaithed
digital na sociedade, com pessoas aninhadas nas redes sociais, em guetos, sob a
regência de algoritmos que as isentam de qualquer espécie de contraditório e as
impedem de leitura crítica acerca dos fenômenos que envolvem a dinâmica e a
complexidade da sociedade.
Se a democracia é o jogo
do consenso, ela depende da capacidade de diálogo, do debate refletido, de
argumentos sustentados à luz da racionalidade e do bom senso. Antes, no
entanto, de dialogar com o outro, é preciso dialogar com a informação, com o
conteúdo proposicional que vincula a relação entre falantes e ouvintes.
Dialogar é questionar o outro a respeito da pretensão de verdade que este
levanta, sustenta e defende. O diálogo é um processo que exige maturidade e
disposição de aprender com o outro. A única coerção possível numa relação
dialógica é aquela exercida pela força do melhor argumento. É justamente esse
caráter pedagógico, próprio do diálogo, que está sendo eliminado pelas fake news.
O que é possível aprender
quando, de saída, observa-se que as informações que o outro dispõe são falsas?
É preciso primeiro haver informação lastreada por fatos e proposições
autênticas para que haja a possibilidade do diálogo, do debate e de sólida
formação da opinião pública. Não dispomos, até o momento, de remédios jurídicos
que reparem as fake news. O único antídoto para esse esparre de notícias
falsas, tal qual um câncer em metástase no tecido social, está em redobrar a
confiança em uma imprensa responsável, plural e livre.
Somos, afinal, corresponsáveis
pelas soluções ofertadas às demandas da sociedade e igualmente pelo futuro da
democracia. Está em nossas mãos o poder de separar o joio e guardar o trigo.
(A versão preliminar
desse artigo foi publicado na Folha de Londrina, edição de 03/11/19)