Página gospel manipula imagem para associar falsamente Aline Barros a desfile de escola de samba

Bereia recebeu de leitores o pedido de checagem de uma imagem que mostra a cantora gospel Aline Barros caracterizada para um desfile de escola de samba. A publicação circula nas mídias sociais com o título de uma matéria do portal de notícias G1 sobre a participação da cantora no carnaval de Palmas (TO). Bereia checou informações sobre a participação de Aline Barros no carnaval e a veracidade das imagens divulgadas.

Imagem manipulada de Aline Barros em desfile de carnaval

A página Gospel Brasil, no TikTok, descrita como página de notícias da música gospel, publicou em 3 de março último, uma imagem que mostra a cantora evangélica Aline Barros fantasiada, em um desfile carnavalesco. Na foto, Barros aparece com as coxas e a barriga à mostra, em uma fantasia com detalhes em preto e dourado.

A publicação inclui o título de uma matéria atribuída ao Portal G1, em que se lê: “Aline Barros abre programação de carnaval na Praça dos Girassóis nesta sexta-feira, em Palmas”. A postagem também exibe um recorte do rosto da cantora e a legenda: “Cantora gospel Aline Barros abre Carnaval em Tocantins e choca a internet”, com  trecho de uma das canções gravadas pela cantora gospel.  

Entre os 3.698 comentários – até o momento da publicação desta matéria – algumas pessoas criticam a cantora e outras afirmam se tratar de uma montagem. A publicação também registrou mais de 12,5 mil curtidas.

Imagem: reprodução TikTok

A partir de ferramentas de busca de imagens, Bereia identificou que houve manipulação do conteúdo. A fotografia original retrata a atriz Paolla Oliveira, rainha de bateria da escola de samba Acadêmicos do Grande Rio, durante desfile no carnaval de 2024, no sambódromo Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro. 

Imagem: reprodução Instagram

Cantores gospel em programação de carnaval em Palmas 

Conforme foi, de fato, noticiado pelo Portal G1, o show de Aline Barros foi a atração principal do primeiro dia da programação do Carnaval 2025, em Palmas, Tocantins – 28 de fevereiro. 

No mesmo dia, outros cantores evangélicos como Moyses Di Carvalho e Sandro Nazireu também se apresentaram. Já no sábado, 1º de março, a programação incluiu shows dos cantores católicos Padre Fábio de Melo, Adriana Arydes e Turma do Padre Dudu.

Imagem: reprodução G1

A programação, organizada excepcionalmente pelo Governo do Estado do Tocantins, depois do prefeito do município Eduardo Siqueira Campos (Podemos) ter anunciado a suspensão de qualquer programação de Carnaval para 2025, seguiu até terça-feira, 4 de março último, com apresentações de cantores de outros gêneros musicais. 

A Prefeitura de Palmas realiza, tradicionalmente, desde 2015, o evento gospel Capital da Fé, durante os dias do feriado de carnaval. No entanto, em 2025, conforme divulgado pelo portal de notícias regional Gazeta do Cerrado, a Prefeitura cancelou a realização das festividades, em decorrência de uma dívida estimada em R$ 300 milhões.

Desinformação de gênero em um contexto religioso

Apesar de algumas páginas de apoio à Aline Barros terem publicado notas sobre a divulgação de falsas informações e uso indevido de sua imagem, a cantora não se pronunciou oficialmente sobre a peça desinformativa envolvendo seu nome.

Barros fez uma publicação em sua página oficial no Instagram, em 6 de março, sobre a participação no evento. Nos comentários, algumas pessoas levantaram temas como mentira no meio religioso, desinformação e processo judicial em razão da difamação, enquanto outras publicaram mensagens de apoio. 

Imagem: reprodução Instagram

No entanto, além de julgamentos acerca da conduta cristã e do comportamento moral da cantora, surgiram também discussões sobre sua participação, enquanto cantora gospel – em um evento no período de carnaval. Também há registros de acusações de realizar shows por interesse financeiro, em detrimento do propósito religioso, que renderam comentários como “pastora de satanás”.

Para a doutoranda em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Desigualdades Contemporâneas e Relações de Gênero (NUDERG) e integrante da equipe Bereia Rafaely Camilo, a adulteração na imagem teve o objetivo de expor a cantora gospel pelo viés da sensualidade, um tema valioso para o público evangélico por se tratar de uma pauta que trata da moral e de costumes.

“A imagem parece ter como objetivo causar escândalo no meio cristão evangélico, ao colocar uma figura conhecida do meio, numa posição de constrangimento, ridicularizando sua trajetória”, aponta Camilo.

Segundo a pesquisadora, nesse caso, a desinformação de gênero está assentada na exposição do corpo, algo que não é esperado para uma mulher na posição de Aline Barros, o que provavelmente a cantora não faria. 

“Por muitos anos, Aline Barros foi uma artista que caminhou entre os mundos secular e gospel e recebeu críticas por isso. O uso dessa imagem atende, para o efeito da viralização (caça-cliques), como afirmação de que ela estaria participando da festa ‘do mundo’, caracterizada como tal”, explica a doutoranda em Ciências Sociais.

Carnaval e manifestações religiosas

A atriz Paolla Oliveira é rainha de bateria da Grande Rio desde 2009. Após um hiato de dez anos, voltou a desfilar para a escola em 2020. Em 2022, Paolla Oliveira esteve na Marquês de Sapucaí fantasiada de Pombagira, e em 2023, sua fantasia representou as armas de Ogum. Pombagira e Ogum são entidades espirituais presentes nas religiões de matriz africana umbanda e candomblé. 

Em 2022, a escola de samba Acadêmicos do Grande Rio também foi a campeã do carnaval do Rio de Janeiro, com o samba-enredo que homenageou Exu, outra divindade das religiões de matriz africana.

O jornalista, escritor e pesquisador do carnaval carioca Aydano André Motta, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos (IHU), afirmou que a visão de que o carnaval é uma festa pagã está equivocada. 

“O carnaval é uma festa completamente religiosa. Na fundação de todas as escolas de samba sempre houve presente um pai de santo ou uma mãe de santo. Várias escolas de samba estão assentadas, nas suas quadras e sedes, em antigos terreiros de candomblé e umbanda, então é uma festa que se move a partir da religião, não existiria sem os preceitos religiosos”, declara o pesquisador. 

Motta esclarece que o carnaval é uma festa extremamente religiosa e que no Brasil tem manifestações do sincretismo religioso. “As baterias das escolas e suas formas de execução estão ligadas a orixás, são batidas escolhidas para reverenciar orixás. A umbanda conecta santos católicos a orixás, então no Rio de Janeiro, Oxóssi é São Sebastião, Oxum se junta a Nossa Senhora da Conceição, São Jorge a Ogum, por exemplo”.

Entretanto, o Carnaval tem origem no Catolicismo ibérico que veio para o Brasil com os colonizadores. No artigo A fé como expressão da vida que pulsa no Carnaval, a pesquisadora da Religião e editora-geral do Bereia Magali Cunha indica a origem cristã da festa na Idade Média. “O Carnaval, criado na Europa medieval pela Igreja Católica, foi uma forma de controlar antigas festas populares, condenadas por ela por representarem uma entrega aos prazeres mundanos”.

Segundo a pesquisadora, a ideia do Carnaval (carnis levale, ou, “retirar a carne”), como um período para cometer todos os “excessos da carne”, surge da tentativa de dar um sentido cristão às festividades. “Com isto foi criado, também, o período da Quaresma, um tempo de 40 dias antes da Páscoa, logo depois do Carnaval, caracterizado pelo arrependimento dos excessos cometidos e pelo jejum (purificação)”.

Outros grupos religiosos, como os evangélicos – tradicionalmente opostos às festividades do Carnaval e habituados ao afastamento dos retiros – intensificaram nos últimos anos, marcados pela polarização política no Brasil, a desqualificação da cultura “secular ou mundana” e, ao mesmo tempo, a disputa pela noção de cultura, conforme apresenta a antropóloga, pesquisadora e coordenadora de religião e política no Instituto de Estudos da Religião (ISER) Lívia Reis, em artigo intitulado Religião como forma de “proteção da cultura”: manifestações culturais e artísticas como campo de disputa.

“Não se trata de um paradoxo, estes segmentos religiosos passaram, também, a disputar a noção de cultura, tentando definir o que seria ou não legítimo de ser considerado como parte dela. Parte desse movimento consiste em promover arte e cultura. Para além da consolidação do segmento gospel, houve um vasto investimento em outras formas de se experimentar a religião através da arte, tais como filmes, teatros, novelas, plataformas de streaming, programas de rádio e mega eventos em espaços públicos”, destaca Reis.

Carnaval, diversidade e tolerância religiosa

A organização do evento Capital da Fé, realizado pelo Estado do Tocantins, reflete estes elementos. O governo destacou as atividades como “uma experiência inclusiva e democrática aos foliões” e que “celebrou a diversidade musical e reforçou o compromisso com uma programação acessível a todos os públicos”. 

Apesar de cancelado em 2025, o evento gospel Capital da Fé, descrito no portal da Prefeitura de Palmas como “o maior evento Gospel do Brasil realizado no período de Carnaval”, ocorre há nove anos e já reuniu em torno de 200 mil pessoas, segundo a organização.

A programação de cinco noites com apresentações de nomes do segmento no cenário nacional é voltada para católicos, evangélicos e apreciadores do estilo musical. O portal afirma que o gospel detém o segundo lugar na preferência musical nacional, atrás apenas do sertanejo.

Imagem: Prefeitura de Sobral

Além de Palmas, outras cidades pelo Brasil também realizam eventos gospel durante o período de carnaval, como Sobral (CE) e Arraial do Cabo (RJ). As iniciativas apontam para uma mudança na participação deste grupo religioso nas comemorações do carnaval.  

A tendência em consolidação é parte do que já ocorre em outras esferas da sociedade. Aline Barros, por exemplo, é considerada a precursora da participação de cantores gospel em canais televisivos não segmentados para este público, por sua participação em atrações como a de Xuxa Meneghel, a partir da década de 90, e que trouxeram maior diversidade à televisão brasileira. 

O artigo de Lívia Reis também mostra que a disputa dos evangélicos pelo espaço público avança até a ocupação da festa de caráter profano e a apropriação de elementos de outras culturas demonizadas por eles. “Apesar de criminalizar o carnaval como uma prática demoníaca, alguns grupos passaram a mobilizar instrumentos musicais, danças e corporeidades de matriz africana, em suas tentativas de disputar a festa”. 

A antropóloga assinala que um movimento semelhante aconteceu com a capoeira, com a festa de Cosme e Damião e com bolinhos de acarajé, que se tornaram “capoeira de jesus”, “saquinhos de jesus” e “acarajé de jesus”, respectivamente. “Em comum a todos esses casos é o fato de que segmentos evangélicos apagam o que seria percebido como o sinal negativo dessas práticas tradicionais e populares, isto é, a ligação com tradições africanas”.

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Após checar informações sobre o conteúdo que circulou nas redes digitais, Bereia classifica o conteúdo como falso. A imagem que mostra a cantora Aline Barros em uma fantasia de carnaval foi adulterada a partir da imagem original da atriz Paolla Oliveira, rainha de bateria da escola de samba Grande Rio, no carnaval carioca.

Apesar de conter elementos factuais e verdadeiros, como a participação de Aline Barros no carnaval de Palmas, foi feito uso de imagem que não corresponde ao que foi noticiado. É clara a intenção de distorcer a informação para instigar julgamentos negativos sobre a cantora – o que poderia ser considerado enganoso – a fim de se alcançar cliques,  portanto audiência. A imagem foi fabricada e é, portanto, falsa.

O sensacionalismo também foi utilizado como estratégia para captar audiência, por meio da sensação de escândalo, provocada pela falsa associação da mulher evangélica ao corpo sensual e à mostra, como forma de difamação e desvio de conduta esperada pelo meio religioso, o que se classifica como desinformação de gênero. 

Outro elemento falso presente na estratégia desinformativa, e que contribui para o sensacionalismo, é a caracterização de festividade carnavalesca que se relaciona com culturas e religiões de matriz africana – como os desfiles de escolas de samba no Rio de Janeiro, associado à imagem da cantora e que nada se assemelha ao evento do qual Aline Barros participou.

A disseminação de falsidades relacionadas a situações que envolvem temas referentes a gênero são frequentemente observadas nas redes digitais. Bereia alerta para publicações que se valham do sensacionalismo, do pânico moral e da intolerância religiosa como arma de violência contra mulher no contexto digital. No caso em questão, as imagens de duas mulheres foram utilizadas – e manipuladas – para provocar uma reação de indignação que não se sustenta na realidade.

Referências da checagem 

G1

https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2025/02/28/aline-barros-abre-programacao-de-carnaval-na-praca-dos-girassois-nesta-sexta-feira-em-palmas.ghtml Acesso em: 09 mar 2025

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2024/noticia/2024/02/16/paolla-oliveira-renova-com-a-grande-rio.ghtml Acesso em: 09 mar 2025

https://g1.globo.com/rj/regiao-dos-lagos/noticia/2023/02/17/festival-de-musica-gospel-esta-entre-as-atracoes-do-carnaval-de-arraial-do-cabo-no-rj.ghtml Acesso em: 11 mar 2025

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2022/noticia/2022/04/26/grande-rio-e-a-campea-do-carnaval-2022-do-rio.ghtml Acesso em: 11 mar 2025

Gshow

https://gshow.globo.com/carnaval/2024/noticia/paolla-oliveira-vira-onca-na-sapucai-em-desfile-da-grande-rio.ghtml Acesso em: 11 mar 2025

https://gshow.globo.com/carnaval/2024/noticia/de-cleopatra-a-pombagira-relembre-as-fantasias-de-paolla-oliveira-como-rainha-de-bateria.ghtml Acesso em: 11 mar 2025

Instagram

https://www.instagram.com/p/DGyc1m4yOYs/?igsh=Nm55dWo3YTN1Y3Ri Acesso em: 09 mar 2025

https://www.instagram.com/paollaoliveirareal/ Acesso em: 09 mar 2025

Instituto Humanitas Unisinos

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/596668-a-festa-religiosa-do-carnaval-a-resistencia-alegre-dos-povos-perifericos-contra-o-conservadorismo-elitista-entrevista-especial-com-aydano-andre-motta Acesso em: 10 mar 2025

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/619912-a-falta-que-a-festa-faz-a-religiosidade-afro-brasileira-e-os-enredos-das-escolas-de-samba-a-dimensao-utopica-de-como-o-mundo-deveria-ser-entrevista-especial-com-renata-de-castro-menezes-e-lucas-bartolo Acesso em: 10 mar 2025

Facebook

https://www.facebook.com/PalmasShowsGospel/photos/est%C3%A1-chegando-a-hora-o-maior-evento-crist%C3%A3o-do-pa%C3%ADs-faltam-apenas-07-dias-para-o/362152127242859/?_rdr Acesso em: 10 mar 2025

Gazeta do Cerrado

https://gazetadocerrado.com.br/tocantins/palmas/dividas-herdadas-podem-chegar-a-r-300-milhoes-em-palmas-e-eduardo-decide-cancelar-capital-da-fe-e-carnaval-este-ano/ Acesso em: 10 mar 2025

https://gazetadocerrado.com.br/tocantins/palmas/palmas-capital-da-fe-tera-este-ano-varias-atracoes-nacionais-e-novidades-veja-quem-ja-esta-confirmado/ Acesso em: 10 mar 2025

Jornal Opção

https://www.jornalopcao.com.br/tocantins/capital-da-fe-chega-a-quinta-edicao-com-atracoes-religiosas-durante-o-carnaval-167826/ Acesso em: 10 mar 2025

YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=DQz_reGSOCI Acesso em: 10 mar 2025

https://www.youtube.com/watch?v=Jtr6g_ohJcg Acesso em: 10 mar 2025

Governo do Tocantins

https://www.to.gov.br/secom/noticias/em-palmas-governo-do-tocantins-promove-carnaval-da-diversidade-musical/2yn3nsnqr9ku#:~:text=Em%20Palmas%2C%20Governo%20do%20Tocantins%20promove%20Carnaval%20da%20diversidade%20musical,-Carnaval%202025%20celebrou&text=Uma%20programa%C3%A7%C3%A3o%20para%20atender%20todos,2025%20na%20Pra%C3%A7a%20dos%20Girass%C3%B3is. Acesso em: 09 mar 2025

Prefeitura de Palmas

https://portal2013.palmas.to.gov.br/conheca_palmas/grandes-eventos/capital-da-fe/ Acesso em: 09 mar 2025

Prefeitura de Sobral

https://www.sobral.ce.gov.br/informes/principais/sobral-de-fe-prefeitura-de-sobral-promove-evento-cristao-no-periodo-de-carnaval Acesso em: 11 mar 2025

Carta Capital

https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/a-fe-como-expressao-da-vida-que-pulsa-no-carnaval/ Acesso em: 12 mar 2025

Religião e Poder

https://religiaoepoder.org.br/artigo/religiao-como-forma-de-protecao-da-cultura-manifestacoes-culturais-e-artisticas-como-campo-de-disputa Acesso em: 12 mar 2025

Áudios falsos sobre vacinas e surto de doenças voltam a circular em grupos de igrejas

Áudios enganosos publicados em grupos de WhatsApp de igrejas voltaram a circular, neste fevereiro, para espalhar pânico e desinformação sobre saúde pública. Bereia recebeu alerta de checagem de dois áudios, por leitores que desconfiaram do material que chegou aos grupos dos quais participam. 

O primeiro áudio fala sobre uma suposta vacina bivalente que misturaria as imunizações contra gripe e Covid-19, enquanto o segundo alerta para um falso surto de covid-19, dengue, chikungunya e zika que estaria sendo “escondido” pela mídia até o término do Carnaval. Ambas as mensagens são falsas e foram amplamente verificadas pelo Boatos.org e demais agências de checagens. 

O que dizem os áudios?

No primeiro, uma voz de mulher que não se identifica, gravado em local e data não registrados, afirma a alguém que a vacina bivalente contra covid-19 estaria sendo aplicada para “exterminar 50% da população mundial”. A mensagem também sugere que o laboratório Pfizer estaria envolvido nesse suposto plano e que a vacina da covid-19 estaria sendo “escondida” na vacina da gripe que deve ser aplicada em breve no Brasil. O áudio também menciona que um médico teria relatado um aumento de pacientes com sequelas causadas pelas vacinas, em contraste com a eficácia do chamado “tratamento precoce”. A gravação traz uma chamada específica para que não se permita que nenhum idoso seja vacinado contra a gripe e não informa a fonte de tais informações oferecidas.

Já no segundo áudio, uma mulher, também não identificada, que alega trabalhar em um hospital não determinado,diz que os casos de covid-19, dengue, chikungunya e zika estão em alta no Brasil, mas que essas informações estariam sendo ocultadas pela mídia até o fim do Carnaval. A gravação, igualmente, não tem local e data registrados e não indica de onde são originadas as informações em questão. Esta gravação também traz apelo específico para que pessoas voltem a usar máscaras.

Sobre as vacinas

A verdade é que não existe vacina bivalente que combine o vírus influenza (gripe) e  Sars-CoV-2 (covid-19). As vacinas bivalentes contra covid-19 (como as da Pfizer e da Moderna) protegem contra duas variantes do coronavírus (a cepa original e a Ômicron), e não contra o vírus da gripe. 

Vale lembrar que embora as vacinas sejam aplicadas separadamente, elas podem ser administradas no mesmo momento. De acordo com a Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização (CTAI) do Ministério da Saúde, “não há nenhum risco em tomar as duas vacinas ao mesmo tempo. A possibilidade de ofertar estes imunizantes na mesma oportunidade é benéfica para a população, por promover uma proteção mais eficiente”.

Sobre o surto de doenças

Embora os áudios tentem causar pânico, os dados do Ministério da Saúde indicam uma estabilidade nos casos de covid-19, dengue, chikungunya e zika desde o início de 2024. Não há evidências de um aumento alarmante em 2025 e que seja ocultado pela mídia devido ao Carnaval. Além disso, o mesmo áudio já foi compartilhado em outros anos próximo a data da festa popular, o que revela se tratar da disseminação recorrente destas mentiras.

De fato, a positividade para o vírus da covid-19 subiu de 17,1% para 24,1% entre 25 de janeiro e 15 de fevereiro, o maior índice do ano até o momento, de acordo com um levantamento do Instituto Todos pela Saúde (ITpS). Porém, dentro de índices normais, o que não justifica o alarde dos áudios. O aumento está relacionado à circulação de uma nova variante, a JN.1, considerada pela OMS como “digna de monitoramento”, mas com risco global baixo.

Além da covid-19, houve aumento na positividade de testes para influenza A (gripe) e vírus sincicial respiratório (VSR), que afeta principalmente crianças. Esse crescimento é atribuído a uma mudança na sazonalidade desses vírus, causada pelo isolamento social durante a pandemia. É importante, ainda, lembrar que o período do verão é, historicamente, um tempo de propagação de doenças, seja relacionado a períodos de seca como os de muitas chuvas (caso também da dengue).

Em entrevista ao jornal Estado de S.Paulo, o infectologista Igor Thiago Queiroz, membro da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), reforça a importância da vacinação e dos cuidados durante o Carnaval.

“Caso a pessoa tenha sintomas, ela não deve ir para aglomerações. É necessário utilizar máscara e lavar as mãos. Também não deve compartilhar objetos que possam ser colocados nas mãos, no nariz, nos olhos ou na boca. São medidas preventivas”, alerta.

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Bereia classifica como falsas as informações divulgadas nos áudios que circulam em grupos de WhatsApp de igrejas. Não há vacina bivalente que mistura gripe e covid-19, e não há evidências de um surto de doenças ocultado pela mídia. Embora haja um aumento na positividade de casos de covid-19 e outras doenças respiratórias, as informações estão sendo divulgadas amplamente, e as vacinas continuam sendo a melhor forma de proteção.

As vacinas contra covid-19 e gripe são seguras e eficazes, e a aplicação simultânea é recomendada pelo Ministério da Saúde para garantir proteção ampla e oportuna, especialmente para idosos, gestantes e pessoas com comorbidades.

Bereia alerta para conteúdos que chegam em grupos de WhatsApp por áudios que não têm identificação de quem fala, do local e da data de origem e da fonte das informações oferecidas , pedem compartilhamento indiscriminado, propagam ideias sem fundamento científico ou até mesmo bizarras. Esses elementos são comuns em materiais desinformativos (forjados com falsidades e mentiras), criados deliberadamente para enganar e causar medo.

Pessoas que receberem mensagens como essas, não devem compartilhá-las, e, sim, buscar verificação em veículos de checagem e outras fontes de informação credenciadas. 

Vale lembrar que mentiras sobre temas de saúde e vacinas são um dos conteúdos mais checados pelo Bereia desde sua fundação e observados, inclusive, em períodos eleitorais.

Referências:

Ministério da Saúde https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-com-ciencia/noticias/2023/outubro/posso-tomar-bivalente-e-influenza-no-mesmo-dia 

https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/fevereiro/determinadas-doencas-sao-mais-comuns-durante-o-verao-saiba-quais-sao-e-como-prevenir

Acesso 26-02-25

Boatos.Org

https://www.boatos.org/saude/estao-dando-vacina-bivalente-gripe-e-covid-para-matar-as-pessoas-em-2025.html Acesso 26-02-25

https://www.boatos.org/saude/vacina-bivalente-pfizer-aplicada-junto-vacina-da-gripe-matar-populacao-conta-medica-belo-horizonte.html Acesso 26-02-25

https://www.boatos.org/saude/brasil-esta-com-covid-19-em-alta-que-esta-sendo-escondida-por-causa-do-carnaval.html Acesso 26-02-25

Instituto Todos pela Saúde

https://www.itps.org.br/comunicacao/positividade-para-covid-19-cresce-sete-pontos-percentuais-em-um-mes-e-chega-a-24-a-poucos-dias-do-carnaval Acesso 26-02-25

Estado de S. Paulo

https://www.estadao.com.br/saude/positividade-para-covid-19-aumenta-a-poucos-dias-do-carnaval-indica-levantamento-nprm/ Acesso 26-02-25

Foto de capa: Camilo Jimenez/Unplash

Deputado evangélico publica montagem enganosa sobre desfile da Vai-Vai

*Matéria atualizada em 19/02 para complementação de informações

O desfile da escola de samba Vai Vai, de São Paulo, que trouxe em uma de suas alas pessoas fantasiadas de policiais militares com chifres e asas, gerou reações negativas de políticos ligados à extrema-direita, com notas de repúdio e pedidos de suspensão do repasse de recursos públicos à escola. 

Entre os insatisfeitos com a apresentação do último 10 de fevereiro, sábado de Carnaval,, que exaltou a cultura Hip Hop no Brasil, estava o deputado federal evangélico Sóstenes Cavalcanti (PL-RJ), pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo liderada pelo pastor Silas Malafaia. 

O parlamentar publicou, em 15 de fevereiro passado, em suas contas oficiais no Instagram e Facebook, uma montagem com a chamada: “Aberração patrocinada”, seguida de manchete do portal de notícias Metrópoles. O jornal havia publicado matéria, em reforço às críticas da extrema-direita à Vai-Vai, sobre uma autorização do Ministério da Cultura para a escola de samba captar, via Lei Rouanet, cerca de dois milhões de reais. A montagem do deputado recebeu a legenda “No DESgoverno Lula o que não falta é dinheiro público para bancar aberrações”. 

Bereia, então, checou o conteúdo publicado.

Imagem: reprodução Instagram/Facebook

A Vai-Vai, maior campeã do Carnaval de São Paulo, foi autorizada pela Secretaria Economia Criativa e de Fomento Cultural, do Ministério da Cultura, a captar R$ 2,1 milhões de reais, por meio da Rouanet. É o que informa a Portaria nº416, publicada em 25 de julho de 2023.

Contudo, a escola não utilizou o recurso. Segundo a matéria do Metrópoles, a agremiação não conseguiu captar o mínimo de 20% do valor autorizado, estabelecido na Portaria. Na época da homologação do projeto, a Vai-Vai informou ao governo apenas o nome do projeto chamado “​​Capítulo 4, Versículo 3 – Da rua e do povo, o HipHop: Um Manifesto Paulistano”. Até então, a escola não tinha nem mesmo o samba-enredo, que veio a ser composto no final de 2023, conforme o site da agremiação. Este fato foi omitido pelo deputado em sua montagem, que fez uso do título explorado pelo jornal. 

A Lei Rouanet é frequentemente alvo de desinformação. Conforme Bereia explica em diversas checagens, a forma mais comum de financiar projetos pela Rouanet é o incentivo fiscal, prática que articula setor cultural, governo e setor privado. Para beneficiarem-se de um incentivo fiscal, os projetos culturais devem, primeiramente, ser submetidos à avaliação de um corpo técnico, que verifica se o projeto se enquadra nos requisitos da lei. 

Dessa forma, o projeto que é homologado não recebe do Governo a quantia, em espécie, como se pensa, mas recebe a autorização para captar a quantia de empresas dispostas a doar, como é o caso da Vai-Vai, que buscou esse patrocínio, porém não conseguiu, como descrito na matéria.

O deputado federal, entretanto, não está só na divulgação da desinformação. Na competição por views e cliques no X/Twitter, veículos de notícias utilizam, com frequência, manchetes sensacionalistas, que incorrem em desinformação. A chamada do site Metrópoles para este caso, por exemplo, também desinforma. Em sua conta no Twitter, o portal divulgou na primeira linha uma falsidade — o recebimento de R$2,1 milhões pela escola de samba — e depois a informação correta. Um artifício que prioriza o alcance da publicação na plataforma, mas que prejudica a qualidade do conteúdo jornalístico.

Imagem: reprodução X/Twitter

Historicamente, as escolas de samba produzem desfiles cujos enredos expressam abordagens críticas à realidade do país. Mesmo no período da ditadura militar, as escolas de samba tiveram papel destacado na crítica ao Estado de exceção. O enredo da Vai-Vai, em 2024, abordou o lugar do Hip Hop na cultura popular, em especial, no que toca o empoderamento das periferias e o repúdio à forma como agentes do Estado praticam arbitrariedades violentas a estas populações. Daí a composição da ala que denuncia o papel da polícia militar na violência contra habitantes das periferias, em especial negros e negras. 

Em 2024, o desfile crítico se deu em um contexto dramático, sob a Operação Escudo, da Polícia Militar Paulista, na Baixada Santista. Moradores da região denunciam a prática de execuções, tortura e abordagens violentas por policiais militares contra a população local e egressos do sistema prisional, depois que um policial foi morto em uma das ações repressivas ao crime.

Esta expressão por meio do samba-enredo da Vai-Vai gerou reações negativas de policiais e de políticos ligados à Bancada da Segurança Pública, conhecida como Bancada da Bala. O governador Tarcísio de Freitas seguiu na mesma direção,  e declarou que teria dado “nota zero à escola”. Veículos da extrema-direita chegaram a publicar que a Vai-Vai tem vínculos com o crime organizado. 

O presidente da Vai-Vai Clarício Gonçalves, explicou à imprensa que o enredo é baseado em livros e fatos: “Aquela ala que foi polêmica é uma coisa que estava dentro do enredo. Não é possível você falar de um enredo e você ocultar a história. Mas, em momento algum, a gente tem alguma coisa contra a organização que realmente protege São Paulo”.

***

Após a apuração, Bereia considera como enganosa a publicação do deputado evangélico Sóstenes Cavalcanti. Apesar de trazer a informação verdadeira — que a escola foi autorizada a captar recursos — o deputado engana seguidores ao colocar em destaque a expressão “Aberração patrocinada”, junto com a legenda. 

Com o intuito de ampliar a rejeição à expressão crítica da Vai-Vai sobre a violência em São Paulo praticada pela PM, a montagem do deputado Sóstenes Cavalcanti usa a desinformação sobre o direito aos recursos da Lei Rouanet, frequentemente atacada com falsidades pela extrema-direita. Com isto, tenta fazer crer que o desfile se utilizou de recursos federais para a sua produção, o que é falso, para classificar como “aberração” e gerar repúdio a uma expressão crítica da qual o parlamentar tem discordância.

Atualização:
A Escola emitiu a seguinte nota dia 16 de fevereiro, em sua conta no X/Twitter:
NOTA DE ESCLARECIMENTO GRCSES VAI-VAI
Em resposta às manifestações de repúdio contra o desfile 2024 Em 2024, a escola de samba Vai-Vai levou para a avenida o enredo Capitulo 4, Versículo 3 – Da rua e do povo, o Hip Hop – Um manifesto paulistano.

Como o próprio nome diz, tratou-se de um manifesto, uma crítica ao que se entende por cultura na cidade de São Paulo, que exclui manifestações culturais como o hip hop. O desfile homenageou artistas excluídos, que nunca tiveram seu talento e notadamente reconhecido. Neste contexto, foram feitos, ao longo do desfile, uma série de recortes históricos, como a semana de arte de 1922 e o lançamento do álbum “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais MCs, em 1997.

“Sobrevivendo no Inferno” é considerado o álbum mais importante do rap brasileiro. Em 2007, figurou na 14ª posição da lista dos 100 melhores discos da música brasileira pela Rolling Stone Brasil. Em 2018, na lista de obras de leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp.

Racismo, miséria e desigualdade social — temas cutucados nos discos anteriores — foram expostos como uma grande ferida aberta, vide ‘Diário de um Detento’, inspirada na grande chacina do Carandiru”. Ou seja, a ala retratada no desfile de sábado, à luz da liberdade e ludicidade que o carnaval permite, fez uma justa homenagem ao álbum e ao próprio Racionais Mcs, sem a intenção de promover qualquer tipo de ataque individualizado ou provocação.

Vale ressaltar que, neste recorte histórico da década de 90, a segurança pública no estado de São Paulo era uma questão importante e latente, com índices altíssimos de mortalidade da população preta e periférica.

Além disso, é de conhecimento público que os precursores do movimento hip hop no Brasil eram marginalizados e tratados como vagabundos, sofrendo repressão e, sendo presos, muitas vezes, apenas por dançarem e adotarem um estilo de vestimenta considerado inadequado pra época. O que a escola fez, na avenida, foi inserir o álbum e os acontecimentos históricos no contexto que eles ocorreram, no enredo do desfile. Existimos. Resistimos. E seguimos fazendo carnaval!

Referências de checagem:

Poder 360º https://www.poder360.com.br/brasil/pl-pede-a-tarcisio-e-nunes-que-vai-vai-nao-receba-recursos-publicos/  Acesso em 16 Fev 2024

Portaria SEFIC/MINC. https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-sefic/minc-n-416-de-25-de-julho-de-2023-498926990  Acesso em 16 Fev 2024

Metrópoles. https://www.metropoles.com/colunas/igor-gadelha/escola-pms-diabos-rouanet Acesso em 16 Fev 2024

Site Oficial Vai Vai. https://vaivai.com.br/blog/vai-vai-lanca-sinopse-e-abre-a-disputa-do-samba-para-2024 Acesso em 16 Fev 2024

Núcleo Jornalismo. https://nucleo.jor.br/interativos/2023-06-01-revista-oeste-e-metropoles-disputam-por-views-no-twitter/ Acesso em 16 Fev 2024

Revista USP. https://www.revistas.usp.br/Rumores/article/view/202035/190082  Acesso em 16 Fev 2024

G1. https://g1.globo.com/google/amp/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2024/noticia/2024/02/01/serie-resistencia-do-samba-globoplay.ghtml Acesso em 16 Fev 2024

Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-02/moradores-da-baixada-santista-denunciam-execucoes-na-operacao-escudo Acesso em 16 Fev 2024

Uol. https://www.uol.com.br/carnaval/noticias/redacao/2024/02/12/desfile-da-vai-vai-e-criticado-por-delegados-de-sp-demonizaram-a-policia.htm Acesso em 16 Fev 2024

Terra. https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/bancada-da-bala-critica-desfile-da-vai-vai-demonizou-a-policia,c9d898043f64e970586c4722efd392b6evnedmj6.html Acesso em 16 Fev 2024

O Globo. https://oglobo.globo.com/brasil/sao-paulo/noticia/2024/02/15/se-fosse-jurado-daria-nota-zero-diz-tarcisio-sobre-fantasia-da-vai-vai-em-referencia-a-violencia-policial.ghtml  Acesso em 16 Fev 2024

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Foto de capa: Câmara dos Deputados

Ministro do Turismo compartilha imagem enganosa para criticar o Carnaval

No sábado de Carnaval, 13 de fevereiro de 2021, o recém-empossado Ministro do Turismo Gilson Machado Neto publicou no Twitter uma montagem de fotos relacionando o adiamento dos desfiles das escolas de samba de 2021 à cena da apresentação de um samba-enredo na avenida que mostra Jesus Cristo sendo arrastado pelo diabo.

A montagem tem duas imagens: o trecho da apresentação em que o diabo arrasta Jesus pelo chão, com a legenda “2020”; e outra do Sambódromo do Anhembi, em São Paulo, vazio, com a legenda “2021” e a frase “Dá para entender quem manda? Ou tem que desenhar?”. Com a postagem o ministro de Estado, relaciona o adiamento dos desfiles de 2021, causado pela pandemia de covid-19, a um “castigo divino” por conta do “desrespeito a Jesus” que teria sido praticado no ano anterior.

Postagem enganosa do Ministro do Turismo (Fonte: Twitter/Reprodução)

Até a data da produção desta matéria a postagem havia sido curtida por quase 50 mil pessoas e reproduzida por quase 20 mil.

Data mudada

Para divulgar sua avaliação sobre o adiamento dos desfiles de Carnaval, Gilson Machado mudou a data de uma das fotos. A primeira imagem a que atribui a suposto desrespeito em 2020, é da apresentação da comissão de frente da Escola de Samba Gaviões em 2019, que reeditou o enredo de 1994 “A saliva do santo e o veneno da serpente” que conta a história, lendas, benefícios e malefícios do tabaco. Na apresentação a Comissão de Frente da escola encenou uma disputa entre Jesus e as forças do mal, incluindo o diabo. Após a repercussão com críticas de religiosos, inclusive da Banda Evangélica no Congresso Nacional que acusou a Gaviões da Fiel de desrespeito, a escola publicou fotos em suas mídias sociais de momentos do desfile em que Jesus sai vitorioso na disputa com os dizeres “Jesus venceu o mal”.

A Comissão de Frente da Gaviões encenava a história de Santo Antão, que, segundo a tradição católica, deparou-se com uma serpente debilitada durante peregrinação pelo deserto. Apesar de ter salvo a cobra, Antão acabou picado por ela. A narrativa afirma que o peregrino arrancou o veneno com a boca e cuspiu no chão, e ali nasceu um ramo do que veio a ser o tabaco. A comissão da escola narrava essa crença: Santo Antão foi representado por uma escultura que cuspia fumaça quando se livrava do veneno. A mesma apresentação mostrava um anjo e Jesus derrotando o diabo em uma batalha.

Em entrevista à revista Veja, em março de 2019, o coreógrafo da escola Edgar Júnior explicou:

“O personagem do diabo está ali para testar a fé do Santo Antão. O enredo mostra que o diabo perde a batalha para os anjos do bem diversas vezes. Depois disso, ele coordena com as forças do mal e batalha com Jesus, que realmente sofre. Mas, no final, os anjos protegem Jesus e ele aparece forte, abençoa a plateia, os anjos do bem e do mal e até o diabo, porque ele é uma pessoa de luz. Acaba a guerra e ele fala com Santo Antão como a dizer: ‘Não perca a sua fé, sempre vão testá-la, mas estou aqui contigo’. O bem vence no final”.

Edgar Júnior em entrevista à Revista Veja em março de 2019

Em 2019, a escola campeã de São Paulo foi a Mancha Verde, com desfile sobre a princesa africana Aqualtune, avó de Zumbi dos Palmares, e discutiu escravidão, direitos de negros e mulheres e intolerância religiosa na avenida. Em 2020, aconteceram desfiles em várias cidades do Brasil, normalmente, inclusive em São Paulo. No Anhembi, a escola Águia de Ouro, foi a campeã, com enredo sobre a evolução do conhecimento humano, da Idade da Pedra à esperança nos robôs. A Gaviões da Fiel desfilou com um enredo sobre o amor.

Portanto, o Ministro do Turismo publicou um trecho da encenação de 2019 em que o diabo parecia vencer, com a legenda “2020”, levando seguidores à noção enganosa de que foi o ocorrido no ano anterior que teria provocado a ira de Deus com o envio da pandemia de covid-19 sobre o mundo. Na compreensão de Gilson Machado, por causa da encenação na pista, Deus teria agido imediatamente com o coronavírus para fechar sambódromos, contaminando 109 milhões de pessoas e matando quase 2,5 milhões em 192 países/regiões (dados até o fechamento desta matéria).

O não-dito que fala

Confrontado por quem viu a postagem enganosa, Gilson Machado Neto respondeu: “Não sou contra o carnaval, sou músico. Sou contra tripudiar e blasfemar o nosso Pai!”, disse o ministro de fé católica romana, nomeado durante as negociações do governo com o chamado Centrão, em troca de apoio na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados. Ele era presidente da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur) e passa a ocupar a pasta responsável por promover o turismo do Brasil, que tem o Carnaval como evento historicamente atrativo.

A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) estima que os setores de transportes, hospedagem e alimentação serão os mais afetados com o cancelamento do carnaval no Brasil, em 2021, por conta da pandemia do novo coronavírus. No ano passado, a data movimentou aproximadamente R$ 8 bilhões e gerou cerca de 25 mil empregos. Excepcionalmente neste ano, a CNC não fez projeções concretas sobre o carnaval, sobretudo por conta das diferentes decisões de estados e municípios em relação ao feriado.

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O Coletivo Bereia classifica como enganosa a postagem do Ministro do Turismo Gilson Machado Neto, que fez uso de montagem de fotos com alteração de data, para reforçar a crença em um Deus violento e vingativo, que teria se sentido ofendido com um desfile de carnaval no Brasil, e por isso contaminou dezenas de milhões de pessoas com vírus, matou outros milhões em todo o planeta, e tornou mais pobres pessoas que dependem do turismo para sobreviver.

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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução

Referências

Globoplay, https://globoplay.globo.com/v/7426808/. Acesso em: 16 fev. 2021.

Folha de S. Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/03/bancada-evangelica-acusa-gavioes-da-fiel-de-intolerancia-religiosa-em-desfile.shtml. Acesso em: 16 fev. 2021.

Veja, https://veja.abril.com.br/cultura/o-bem-vence-no-final-diz-coreografo-da-gavioes-da-fiel-sobre-desfile/. Acesso em: 16 fev. 2021.

G1, https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/carnaval/2019/noticia/2019/03/05/mancha-verde-e-a-campea-do-carnaval-de-sp.ghtml. Acesso em: 16 fev. 2021.

G1, https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/carnaval/2020/noticia/2020/02/25/aguia-de-ouro-e-a-campea-do-carnaval-de-sp-pela-1a-vez.ghtml. Acesso em: 16 fev. 2021.

Opera Mundi, https://operamundi.uol.com.br/coronavirus/63574/mapa-da-covid-19-siga-em-tempo-real-o-numero-de-casos-e-mortes-por-covid-19-no-mundo. Acesso em: 16 fev. 2021.

G1, https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/12/10/gilson-machado-e-nomeado-ministro-do-turismo.ghtml. Acesso em: 16 fev. 2021.

CNC, http://cnc.org.br/editorias/economia/noticias/cnc-setor-de-hospedagem-e-alimentacao-sera-um-dos-mais-afetados-com-o. Acesso em: 16 fev. 2021.

O diabo na campanha das eleições municipais no Brasil

* Publicado originalmente no site de CartaCapital em 25 de novembro de 2020.

O diabo é uma figura surgida na tradição cristã, que está relacionada à encarnação do mal. São variadas as interpretações, religiosas e científicas, antigas e modernas, de como a existência deste mal encarnado se dá. Boa parte das vezes, a figura do diabo é reduzida à imagem de uma entidade, representada de muitas formas, dependendo da cultura e do clima social. Por isso, as imagens variam de um homem vermelho, com tridente e rabo, a um galã elegante e sedutor, e são tanto fonte de medo, de narrativas orais, teatrais ou cinematográficas, algumas bem atrativas, como motivo de humor ou de fantasia do Carnaval.

Entretanto, vale refletir que, na teologia cristã, o diabo está para além de uma entidade. A origem do termo explica. No grego, diabolos e no hebraico, satan, o sentido é o mesmo: “aquele que divide”, “provocador de confusão, discórdia”. Isto significa que, enquanto Deus, o Criador, age para transformar o caos, unir, harmonizar, trazer paz, o diabo trabalha no contrário: divide, confunde, mente, causa injustiça, destruição e provoca violência seja ela física, psicológica ou simbólica. Diabolos é, portanto, nas bases da teologia cristã, uma postura, uma força, um caráter, revelados nas pessoas que assumem tais expressões.

Não vamos adiante com discussões teológicas, que são importantes, mas não são objetivo deste artigo. Importa aqui, neste espaço, refletir como o significado de diabolos pode nos ajudar a pensar sobre o que está acontecendo neste exato momento do Brasil, com as expressões de confusão, mentira, injustiça, destruição e violência no processo eleitoral.

É fato que temos o permanente desafio de superarmos os controversos binarismos certo-errado, legal-ilegal, bem-mal, entre outros, que disfarçam as complexidades das relações humanas e de sua extensão na cultura, na economia, na política. No entanto, em nome da promoção da vida em sua plenitude, em todas as suas dimensões, pela causa da paz e da justiça, precisamos chamar o mal pelo nome (como já escrevi em artigo neste espaço) e denunciar ações diabólicas que estão em curso. Algumas delas, para dividir e confundir, usam até mesmo o nome de Deus para seduzir cristãos (coisa que, de acordo com registros da Bíblia cristã, o diabo faz muito bem).

Por isso, Jesus, ao se deparar com as ações antivida, aquelas que instituem privilégios, segregação, desigualdade, que impedem a plenitude e a abundância de vida a todas as pessoas, desejo de Deus, compara estas práticas diabólicas às de um “ladrão”, que surge para roubar, matar e destruir (João 10.10). Ele também identificou disseminadores de mentiras como quem age a partir de desejos diabólicos: “… [no diabolos] não há verdade; quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio; porque é mentiroso, e pai da mentira” (João 8.44).

Neste sentido, podemos classificar como diabólicas as campanhas políticas para eleições municipais no Brasil, que fazem uso de mentiras agressivas para destruir a imagem de concorrentes. Isto acontece principalmente, mas não exclusivamente, nas capitais Rio de Janeiro, Vitória, Recife, Fortaleza e Porto Alegre. Estas ações, que visam convencer eleitores pela confusão que causa medo, partem de candidatos como o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus que pleiteia a reeleição como Prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella (Republicanos). Em vídeo espalhado pela internet, Crivella afirma que o concorrente Eduardo Paes (DEM), tem apoio do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pela promessa de ocupar a Secretaria de Educação e introduzir pedofilia nas escolas.

Além da mentira sobre pedofilia nas escolas, o atual prefeito do Rio afirmou, na companhia de deputado federal da Igreja Assembleia de Deus Otoni de Paula (PSC/RJ), que o PSOL é inimigo do Presidente da República e deseja dar uma segunda facada nele (referindo-se ao atentado sofrido por Jair Bolsonaro em 2018). A campanha diabólica de Crivella também distribui panfletos com o mesmo conteúdo na porta de igrejas e em espaços públicos, usando funcionários da Prefeitura.

Pesquisa sobre este discurso acusatório em vídeos de candidatos e apoiadores (inclusive do Presidente da República e seus ministros), folhetos sem identificação e registro (por isso, ilegais) e áudios que circulam por grupos religiosos no WhatsApp, verifica prioritariamente o convencimento com mentiras pela imposição do medo. Há também vídeos com falsidades e pânico moral (terrorismo verbal produzido para criar aversão social a pessoa ou grupo) de contracampanha, ou seja, de influenciadores políticos e religiosos que não apoiam candidatos, mas agem contra outros que querem destruir. Os vídeos do pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, para interferir em cidades com as quais, curiosamente, ele não tem qualquer relação, são fortes exemplos de contracampanha.

Desde as eleições de 2018, candidatos que buscam apoio de eleitores religiosos recorrem a conteúdo falso e ao pânico moral com base em temas relacionados à sexualidade humana, ao que chamam de “defesa da família tradicional” aliada a “proteção das crianças nas escolas”, e ao enganoso conceito de “ideologia de gênero” (como já tratei neste espaço). Neste 2020, foi acrescentado o tema da “perseguição a cristãos”, criando pânico em torno de candidatos que, se eleitos, atuariam para “fechar igrejas usando como desculpa a prevenção ao coronavírus”.

É fato que qualquer tema que levante o assunto “sexo” e “sexualidade” mexe com o imaginário dos cristãos e provoca muitas emoções (tratei disto também no artigo “Por que os evangélicos só pensam em sexo?”). É de se considerar também que, nos últimos anos, o contexto político brasileiro ressuscitou e realimentou o velho temor do comunismo e do marxismo. Como a maioria nunca leu uma linha das teorias de Karl Marx, acaba acreditando nos irmãos de fé que falam de “doutrinação de mentes”.

É fato ainda que os avanços nas políticas que garantem mais direitos às mulheres e a LGBTI+, e ampliam a participação destas populações no espaço público, causam desconforto às convicções e crenças de grupos que defendem, por meio de leituras religiosas, a submissão das mulheres e a cura dos LGBTI+. Uma moralidade ressentida.

Por isso, para estes grupos, o trabalho das agências de pesquisa e dos sites que promovem a checagem de informações, por mais detalhado e correto que seja, acaba não tendo um efeito suficiente. Não adianta que interlocutores, pacientemente, tentem mostrar que o que se divulga é falsidade e mentira. Isto porque o que sustenta este processo de crença nas mentiras não é apenas a ignorância, mas o fato de que a audiência acredita no que escolhe acreditar.

Quando um grupo se identifica com mentiras, mesmo que elas sejam demolidas em nome da ética e da justiça, permanece com elas e as defende de qualquer jeito. Não importa que seja uma falsidade, o conteúdo não é apagado dos espaços virtuais e continua a ser reproduzido. Mais: aquele que desmascarou a notícia ou a ideia, que pode ser um familiar, amigo ou irmão na fé, chega a ser objeto de desqualificação e rancor.

Eis aí o sentido do diabólico, da imposição de divisão, confusão, de destruição da imagem do outro com mentira.

A despeito de tudo isto, sempre há chance de exorcizar o diabo: expeli-lo do processo. Por isso há que se ter esperança da presença pública de cidadãos e grupos, religiosos ou não, que atuam pela superação das ações diabólicas em nome da paz e da justiça. Eles/as estão por aí, pessoas eticamente responsáveis, agências de checagem de notícias, como fermento na massa, tentando juntar e não dividir, construir e não destruir. Como disse Jesus, “pelos frutos os conhecereis” (Mateus 7.20).

Foto de capa: iStock/Reprodução