Bereia recebeu de leitor um vídeo com alto nível de circulação em grupos católicos no WhatsApp, que alardeia que o altar da Catedral Católica de Brasília “virou terreiro de Umbanda”, em evento promovido “pela ‘1ª´(sic) dama Janja”. O texto afirma ser uma grave profanação de um templo católico e atribui o caso à “situação geral do país” que “piora a cada dia”. A publicação ainda pede que quem recebe o conteúdo envie “para amigos católicos que fizeram o L ou foram isentões”.
O radar do Bereia identificou nesse conteúdo elementos comuns a falsidades que circulam pelas mídias sociais: 1) não tem identificação do autor ou autora da postagem nem data; 2) não tem fonte (de onde veio o vídeo); 3) é um recorte de 23 segundos de um vídeo sem o contexto do ocorrido; 4) há o pedido de compartilhamento para mais pessoas (estratégia para que a desinformação viralize de forma espontânea e orgânica).
Bereia verificou que o mesmo recorte de vídeo foi divulgado na conta do X/Twitter do ex-presidente da Fundação Palmares (nomeado durante o governo de Jair Bolsonaro) Sérgio Camargo, e teve centenas de milhares de visualizações, com milhares de curtidas e compartilhamentos. Na publicação Camargo atribui a cerimônia na Catedral a o “governo petista” e cobra que católicos exijam “posicionamento da CNBB, caso a entidade seja contrária ao que se viu”.
Imagem: X/Twitter
Outros perfis de mídias sociais divulgaram protestos com o uso do mesmo recorte de vídeo, alguns com centenas de milhares de visualizações.
A noite cultural do evento do IBDS/STJ, na Catedral Católica de Brasília, foi a apresentação da Orquestra Mundana Refugi. O grupo é formado por 22 músicos brasileiros e imigrantes refugiados vindos do Irã, Guiné, Congo, Turquia, Cuba, China, Síria, Venezuela, França e Palestina. A orquestra apresenta repertório com composições próprias, músicas tradicionais e homenagens a compositores brasileiros, lançando mão de instrumentos entre os tradicionais piano, saxofone, flauta e bateria até os mais diferentes como bouzouki, kanun árabe, alaúde e rebab.
Imagem: cartaz eletrônico de divulgação da apresentação da Orquestra Mundana Refugi na Catedral de Brasília.
O evento, com entrada franca, lotou a Catedral e foi noticiado pela revista eletrônica Metrópoles, pelo Correio Brasiliense, pelo Jornal de Brasília, pelo Portal Terra e pela Agência Brasil. Segundo a matéria do Metrópoles “os brasilienses ficaram encantados com o talento do grupo e conheceram um pouco dos ritmos e estilos de diferentes países. Duas obras do fotógrafo Sebastião Salgado foram expostas ao lado do palco e chamaram atenção por representar a luta pela proteção dos povos originários”.
O programa teve participação do cantor Renato Braz e do acordeonista Toninho Ferragutti, indicado três vezes ao Grammy Latino. Entre os presentes estiveram autoridades como o ministro do STJ Moura Ribeiro e o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar Paulo Teixeira.
Com dois integrantes da orquestra originários da Palestina, o show em Brasília foi oportunidade de expressão de um pedido pela paz no Oriente Médio, para que cessem os ataques e que sejam devolvidos os reféns judeus, o que constou dos discursos proferidos.
Bereia verificou, portanto, que a programação na Catedral não tem qualquer relação com o governo federal ou com a esposa do presidente da República Rosângela da Silva (Janja).
Altar profanado?
Na programação, de fato, ocorreu um momento, ao final, com uma dança relacionada à cultura africana. Porém, tanto a Arquidiocese quanto o maestro da Orquestra Mundana Refugi Carlos Antunes, explicaram, respectivamente, em nota oficial e carta, que ela ocorreu de forma imprevista, fora da programação, espontaneamente, da parte de duas pessoas africanas que estavam na audiência, como forma de agradecimento.
A Arquidiocese também corrigiu as postagens críticas à Igreja e nega que haja “elementos concretos que caracterizem, moralmente e canonicamente, profanação do templo”.
1- Nosso objetivo, ao aceitar o evento na Catedral, foi sensibilizar a comunidade de Brasília a respeito dos refugiados e migrantes, uma vez que a orquestra Mundana Refugi é um grupo musical composto por músicos brasileiros e por imigrantes e refugiados. Seu nome faz referência ao fato de acolher instrumentistas e vocalistas de todas as partes do mundo (“mundana”), refugiados no Brasil (“refugi”);
2- O acordo do evento em questão, previa somente a apresentação de coro e orquestra, algo comumente presente em nossas igrejas, com temas tradicionais de diversos países. No entanto, mesmo no fato ocorrido inesperadamente, não há elementos concretos que caracterizem, moralmente e canonicamente, profanação do templo;
3- Ao final da apresentação, ocorreu uma manifestação espontânea por parte de uma pessoa presente na plateia, surpreendendo não só a nós, mas, também, aos organizadores e ao maestro responsáveis pelo evento, gerando o episódio divulgado (cf. nota em anexo);
4- Reafirmamos que, em todo momento, a Catedral de Brasília conduziu com a devida prudência o que foi previamente acordado.
Não havíamos programado realizar qualquer ato de dança como parte da apresentação musical, pois todos sabíamos que essa regra fora estabelecida como condição fundamental pela Catedral. Assim, com relação à dança espontânea que ocorreu ao final da última música, por parte de dois expectadores (sic) africanos, somente podemos imaginar, e isso foi dito por ambos ao se despedirem, que o fizeram em agradecimento ao espetáculo pois para eles ouvir música de seu país naquele templo espetacular foi muito emocionante, alegre e inesquecível.
Suas manifestações foram feitas sem o nosso conhecimento. Isso faz parte da sua cultura e não demonstra, de forma alguma, desrespeito para com a religião católica. Tenho inúmeros amigos dançarinos africanos da religião católica e eles mencionaram-me suas boas emoções com o ocorrido. Acho importante reiterar que não havíamos combinado a dança, embora ela ocorra ocasionalmente nas nossas apresentações, como outras intervenções espontâneas do público.
(…)
Quando fomos surpreendidos pela dança dos expectadores (sic), ao final da música, fiz um sinal para a Mariama, nossa integrante, cantora africana, para que fosse lá, educadamente, e ocupasse o lugar deles, para que não continuassem ocupando o espaço e voltasse para cantar.
Ela de forma respeitosa fez exatamente isso. Chegou, fez alguns movimentos e ele se retirou. Ela em seguida voltou para cantar e terminamos a canção. Foi exatamente isso que ocorreu. O primeiro senhor que entrou para dançar, de forma muito cordial, me abordou e disse, ao final, que estava muito feliz por estarmos ali naquele momento”.
*** Bereia classifica a publicação que circula em grupos católicos de WhatsApp e em mídias sociais sobre o evento cultural, ocorrido na Catedral de Brasília, em 9 de novembro como ENGANOSO. Anonimamente, como, propagadores de desinformação agem frequentemente, e sem dados que permitam às pessoas verificarem o ocorrido de forma honesta, foi utilizado um vídeo do final da apresentação da Orquestra Mundana Refugi, para criticar a Arquidiocese de Brasília, a esposa do presidente da República Rosângela da Silva (Janja) e o governo federal.
Como checado pelo Bereia:
1) a apresentação musical não tem qualquer relação com o governo federal ou com a esposa do presidente da República. Foi parte da programação de um evento realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), sediado no Supremo Tribunal de Justiça;
2) o recorte do vídeo, divulgado sem explicação do que trata, refere-se ao final da apresentação musical da Orquestra Mundana Refugi, momento em que pessoas da plateia, de origem africana, espontaneamente se digiram à frente para dançar em agradecimento ao que presenciaram;
3) a palavra oficial da Igreja Católica em Brasília é que, ancorada na moral e nos Cânones da Igreja, não houve profanação do templo com a manifestação espontânea das duas pessoas africanas.
Bereia alerta para o uso da fé cristã e do cuidado que fiéis têm com suas igrejas para se fazer política e atacar instituições religiosas, outras instituições e governos. Alerta também para a intolerância religiosa estimulada com a propagação do vídeo, sem a devida explicação do que foi uma dança da cultura africana, porém com as observações maldosas, por escrito e em vídeos, de que o altar da Catedral foi “transformado em terreiro de Umbanda” e “profanado”. Há outro aspecto em curso com a publicação, que é o racismo, uma vez que a dança foi realizada por pessoas negras, africanas, e as acusações que foram proferidas têm relação com este perfil.
Na tarde de 29 de junho, dia em que a Igreja Católica celebrava São Pedro, o esvaziado auditório Nereu Ramos, da Câmara Federal, foi palco para o político Padre Kelmon (PTB) lançar o Foro do Brasil, junto de outros religiosos e políticos autodenominados conservadores, em tentativa de contrapor o 26º Encontro do Foro de São Paulo, marcado para o mesmo dia, em Brasília.
A defesa de pautas de políticas da extrema-direita se associou ao forte tom religioso do evento, dado pelas declarações recheadas de passagens bíblicas, apresentação de músicas cristãs, orações e depoimentos. O evento trouxe, para testemunhar, inclusive, um jovem político venezuelano que, de acordo com a organização, sofre perseguição política.
Um fato que marcou o lançamento do Foro foi a ausência de seus principais divulgadores. Aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro, Bia Kicis (PL/DF), Carla Zambelli (PL/SP) e Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) convidaram o público por meio de suas mídias sociais, mas faltaram ao lançamento. Kicis e Zambelli enviaram vídeos com declarações de apoio ao evento, a primeira foi a um funeral e a segunda não justificou. Já o parlamentar carioca, segundo o deputado General Girão (PL/RN), não compareceu pois, no dia anterior ao evento, teve o celular roubado no Rio de Janeiro.
Se por um lado o público presente não conseguiu encher o pequeno auditório, a desinformação marcou presença no discurso do senador evangélico Magno Malta (PL-ES), um dos personagens frequentemente checados na seção Torre de Vigia do Bereia. Com duração de cerca de 40 minutos, a preleção mais longa do evento, notoriamente religiosa, foi repleta de afirmações falsas e dados incorretos.
Ataque à esquerda
O senador, logo no começo, utiliza, em seu discurso, estratégias de desinformação checadas pelo Bereia, como a “ameaça comunista” e a “cristofobia”. Na tentativa de incriminar a reunião do Foro de São Paulo no Brasil, ele afirma que o evento receberia “ditadores inescrupulosos, negadores da fé, negadores de direitos, assassinos da moral alheia, esses que matam, homossexuais que perseguem cristãos, que fecham igrejas, eles verbalizam”. Em seguida, finaliza o trecho afirmando que os participantes do Foro de São Paulo desfrutam da estrutura de governo. Esta é uma informação fasa, pois, ao contrário do Foro do Brasil, que ocorre em um dos auditórios da Câmara Federal, sob o rótulo de “Reunião Técnica“, o Foro de São Paulo ocorre em local privado, no Hotel San Marco, às custas dos participantes.
Imagem: reprodução do site da Câmara dos Deputados
Economia
Magno Malta proferiu também uma série de afirmações falsas e enganosas sobre a economia do País. Ele citou o fechamento de diversas empresas, aumento do desemprego e de falências para criticar o atual governo. A afirmação falsa fica por conta do desemprego: de acordo com dados do IBGE, o desemprego diminuiu 8,3% e chega à menor taxa do período desde 2015. Já as enganosas são as declarações sobre o fechamento e falência de empresas. O Brasil atingiu a marca de 1,3 milhão de empresas abertas nos primeiros quatro meses de 2023, contra 736,9 mil fechadas, o que deixa um saldo positivo de 594.963 CNPJs abertos em todo o país, segundo dados divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento.
Já, quando Malta cita o aumento de pedidos de falência, o senador acerta, mas omite um fator fundamental para a saúde financeira das empresas: a alta taxa de juros definida pelo Banco Central. De acordo com diversos economistas, os juros altos aliados à restrição de crédito são um dos fatores que têm contribuído para o cenário atual. A taxa de 13,75% é defendida pelo presidente do Banco Central, Campos Neto, que, por sua vez, é alvo de elogios no discurso do senador.
Sobre a pandemia, o senador nega, inclusive, a fome sofrida por cerca de 33 milhões de brasileiros durante o período, em semelhança a declaração dada pelo ex-presidente Bolsonaro, durante debate das eleições presidenciais em 2022, quando afirmou não ver pessoas passando fome no país.
Por fim, afirma que o deputado Lindbergh Faria (PT/RJ) teria dito que o “calabouço(sic) fiscal tem parte com capeta”. Bereia entrou em contato com a assessoria do deputado para confirmar a conversa, mas até o fechamento da matéria não obteve resposta.
Aula de Geoteologia?
Um fato curioso do evento veio no discurso do deputado federal General Girão. Logo no início, ele pediu que os presentes fechassem os olhos e “imaginem na parede”. Em seguida, pegou o microfone, caminhou até a parede ao fundo e, gesticulando, narrou a posição geográfica dos países sul-americanos e perguntou: “Quem está mais à direita no continente sul-americano?” e depois, “Quem criou o mundo?”. Por fim, conclui com a frase: “Quem quer tirar o Brasil da direita e colocar na esquerda, está querendo contrariar uma criação de Deus. O padre Kelmon falou, é o destino manifesto do Brasil”.
Imagem: reprodução de site da Câmara dos Deputados
Padre Kelmon, o presidente
O candidato à Presidência da República pelo PTB nas últimas eleições foi apresentado como presidente do Foro do Brasil. Padre Kelmon afirma que a criação do Foro deve-se ao Espírito Santo, que inspirou padres e pastores. Mais tarde, foi apresentado um trailer de um documentário batizado de “Operação Verdade”. Após a exibição, quebrando o protocolo, Kelmon retorna a tribuna e revela os financiadores do trabalho: “Eu preciso dizer isso. Quero agradecer especialmente ao agronegócio […], que nos permitiu passar uma semana em Boavista, em Pacaraima, que nos acolheu, pagou nossas passagens, fez o melhor por nós para que esse documentário pudesse ficar pronto.”
* Matéria atualizada às 15:08 de 19/01/2023 para acréscimo ao final do texto de organizações que se manifestaram contra os atos em Brasília
Os ataques às instituições da República Federativa do Brasil – em especial ao Supremo Tribunal Federal (STF) – saíram da retórica para a ação, após a derrota eleitoral do candidato da extrema-direita, Jair Messias Bolsonaro, em 30 de outubro de 2022.
O objetivo do grupo, que marchou escoltado pela Polícia Militar de Brasília até chegar aos prédios públicos, cantando hinos, cânticos espirituais e utilizando símbolos religiosos, era, como publicizado pelo próprio nas mídias sociais, uma tomada hostil do poder e a instauração de um golpe de Estado.
Desde o fim das eleições, quando bloquearam estradas e iniciaram os acampamentos em frente aos quartéis do Exército Brasileiro, os revoltosos clamavam pela mobilização das tropas e “virada de mesa” na derrota eleitoral – nesses quatro meses, além de agredirem verbalmente os eleitores de Lula, os derrotados perseguiram e saquearam jornalistas, espancaram agentes de segurança, destruíram viaturas e saquearam as sedes dos Três Poderes (exibindo nas fotografias e vídeos os resultados das ações como troféus de uma guerra santa).
Frustrados na ação que visava impedir a posse do presidente eleito, o movimento rearticulou-se para “retomar o poder” em 8 de janeiro de 2023. Religiosos atuaram nas convocações.
O cantor gospel Salomão Vieira, apontado como um dos articuladores dos atos em Brasília, teve sua conta banida do Instagram nesta semana após transmitir em tempo real as invasões às sedes dos Três Poderes. Segundo reportagem da rádio CBN, ele teria financiado com ao menos 10 mil reais em suprimentos para manifestantes golpistas.
Já o pastor José Acácio Tserere Xavante não participou da invasão em Brasília. Preso desde dezembro por determinação do STF, o indígena publicou uma carta na quinta-feira 5 de janeiro, pedindo desculpas pelos seus atos e reconhecendo que errou ao dizer que havia fraude nas urnas eletrônicas. Bereia já confirmou a biografia de José Acácio Tserere Xavante em matéria anterior.
Reações das igrejas, organizações e influenciadores religiosos
Desde o domingo, dia 8 de janeiro, igrejas e organizações religiosas têm se manifestado contra as tentativas de incentivo à sedição, golpe de Estado ou guerra civil. Os clamores pela paz e pela manutenção da lei e da ordem vão desde a Universidade Presbiteriana Mackenzie e ANAJURE (anteriormente alinhados ao governo Bolsonaro) até instituições que sempre se posicionaram contra atos da extrema-direita brasileira (como a CNBB e CONIC). Estão listados ao final da matéria os links e os pronunciamentos na íntegra daqueles a que Bereia teve acesso até o fechamento desta matéria.
O pastor da Igreja Batista e músico cristão Nelson Bomilcar, definiu os líderes evangélicos que incentivaram a rebelião como “influencers do caos”. Bomilcar também escreveu : “Precisamos de (uma) campanha nacional para diminuir violência de toda espécie. Desarmamento é fundamental. Violência é injustificável em qualquer situação (…) Violência por qualquer motivo: Religiosa, política, policial”.
O teólogo Ronilson Pacheco, Mestre em Religião e professor assistente da Universidade de Filosofia de Oklahoma (EUA) avalia: “Sem um monitoramento inteligente de como a extrema-direita se movimenta, seu núcleo organizado e desorganizado, de onde vem estratégias e narrativas, sem conhecer a capilaridade de suas ideologias e atravessamentos, principalmente religiosos, vai ser um ataque atrás do outro”.
Além das prisões em flagrante dos que praticaram as ações criminosas de 8 de janeiro, ao solicitar a prisão do ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro e do ex-secretário de segurança pública do Distrito Federal, o Supremo Tribunal Federal (STF) registra “uma possível organização criminosa que tem por um de seus fins desestabilizar as instituições republicanas, principalmente aquelas que possam contrapor-se de forma constitucionalmente prevista a atos ilegais ou inconstitucionais… utilizando-se de uma rede virtual de apoiadores que atuam, de forma sistemática, para criar ou compartilhar mensagens que tenham por mote final a derrubada da estrutura democrática e o Estado de Direito no Brasil”.
Após o decreto de intervenção federal na segurança pública de Brasília e os mandados de busca e prisão dos sediciosos, monitoramento de mídias sociais demonstram que os mesmos nomes que incentivaram a ocupação dos acampamentos em frente aos quartéis e clamavam pela “intervenção”, começaram a clamar por direitos humanos e apelaram às organizações internacionais na denúncia de uma “ditadura comunista” instaurada no Brasil.
Mensagens enganosas, relatando maus tratos aos detidos, falecimentos e suicídios passaram a circular intensamente. A deputada federal Bia Kicis, inclusive, espalhou a mentira em um de seus pronunciamentos, mas retratou-se posteriormente, por meio da sua conta no Twitter.
A Polícia Federal divulgou uma nota combatendo a desinformaçãodisseminada e notificou que após a detenção em flagrante de 1.500 pessoas, entre vândalos e acampados em Brasília, idosos e mulheres com crianças já foram liberados.
Até o fechamento desta matéria, as autoridades já receberam mais de 60 mil denúncias de promoção e patrocínio de atos anti-democráticos. Ao todo, foram detidas em Brasília, 1.843 pessoas. Todas foram identificadas pela Polícia Federal e irão responder por crimes de terrorismo, associação criminosa, atentado contra o Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, perseguição, incitação ao crime, sedição, dentre outros. Há 684 detidos, entre os quais há idosos, pessoas com problemas de saúde, pessoas em situação de rua e pais/mães acompanhados de crianças responderão em liberdade.
A Polícia Federal qualificou, interrogou e prendeu 1.159 pessoas. Há, ainda, novos mandados de prisão, busca e bloqueio de bens – especialmente de empresários e financiadores do movimento, com um total de 50 investigações relatadas até o momento. Não há ações contra igrejas.
Envie vídeos e publicações nas mídias sociais para o Bereia
Bereia continuará coletando e analisando as publicações, vídeos e mensagens enviadas por pastores, igrejas e organizações religiosas sobre os atos de sedição e terrorismo doméstico ocorridos entre 30 de outubro de 2022 e 8 de janeiro de/2023.
O deputado federal e pastor da Assembleia de Deus Otoni de Paula (PSC/RJ) fez postagem em perfil do Twitter, nesta terça-feira, 10 de agosto, para exaltar o desfile de tanques da Marinha que ocorreu na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, pela manhã. O parlamentar, que é da base governista na Câmara Federal, manifestou apoio ao ato que causou críticas no Poder Legislativo, no Judiciário e nas próprias Forças Armadas.
O exercício militar, batizado de “Operação Formosa”, é realizado no Campo de Instrução de Formosa, cidade no Entorno do Distrito Federal, em Goiás, desde 1988, mas, pela primeira vez, os veículos passaram por Brasília. O desfile de tanques foi planejado para passar pelo Palácio do Planalto e a Esplanada dos Ministérios, no dia de duas votações importantes no Congresso Nacional: na Câmara, a proposta de voto impresso, defendida por Jair Bolsonaro; no Senado, a revogação da Lei de Segurança Nacional.
A passagem por Brasília teria sido determinada pelo presidente Jair Bolsonaro, de acordo com interlocutores, apesar de ter sido uma sugestão da Marinha e do ministro da Defesa Braga Netto, com adesão do Exército e da Aeronáutica. A estratégia seria intimidar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), diante da crise política que o Poder Executivo vive com derrotas nas pautas em votação e a demanda por investigações de pronunciamentos caluniosos do presidente da República contra ministros do STF.
O deputado Otoni de Paula exaltou a Operação Formosa como estimuladora do seu patriotismo.
No entanto, de imediato, o público do Twitter identificou que a foto utilizada pelo deputado evangélico era uma foto da agência de notícias EFE. Na verdade, a foto é uma imagem extraída do vídeo de um desfile militar na China, em homenagem aos 70 anos do comunismo naquele país. A foto foi utilizada por veículos de mídia de diversos países. O desfile na China ocorreu em outubro de 2019 e contou com as tropas do Exército Imperial da China, que exibiam tanques de última geração, mísseis, helicópteros e aviões de caça. As imagens em vídeo que serviram para a tomada da EFE estão disponíveis no telejornal da CCTV da China no Youtube.
A postagem do deputado Otoni de Paula é, portanto, falsa. Diferentemente da versão chinesa utilizada pelo pastor da Bancada Evangélica na Câmara Federal, o desfile em Brasília ocorreu com blindados antigos, que emitem fumaça carregada de gases poluentes, o que gerou piadas e memes na rede.
Convocado pela CPI da Covid, ele se apresenta como psicólogo, mas não tem registro no Conselho Federal da categoria
Na primeira reportagem a respeito de Amilton Gomes de Paula, pastor de uma denominação Batista intitulado “reverendo” envolvido no escândalo da compra de vacinas pelo Ministério da Saúde, Bereia encontrou inconsistências em seu currículo. Esta segunda matéria procura elucidar as razões dessas controvérsias sobre o perfil do líder religioso.
Amilton Psicólogo?
Diante das inúmeras filiações em entidades de classe e atividades ligadas à psicologia, descritas no currículo do religioso, Bereia apurou e descobriu que Amilton Gomes, de fato, recebeu um registro para atuar como psicólogo no Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP-DF), em janeiro de 2013.
No entanto, em 2017, o Conselho recebeu uma denúncia de fraude na documentação do pastor e de um grupo de psicólogos que teriam se formado na Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde de Patos de Minas (MG) (SESPA). De acordo com a presidente do CRP-DF Thessa Laís Pires e Guimarães, em entrevista ao Bereia, a SESPA já estava fechada, mas configurava no MEC como ativa. O Conselho, então, deu um prazo para os envolvidos apresentarem nova documentação e comprovarem a conclusão do curso de Bacharel em Psicologia, o que não aconteceu.
“Após a denúncia e todos os levantamentos que fizemos, a fiscalização chegou a conclusão que essas pessoas não cursaram o curso de psicologia, pois a faculdade já tinha fechado. Então, o CRP reabriu esse processo de inscrição, dando a todos os profissionais que apresentaram diplomas da SESPA a oportunidade de apresentarem novos documentos, mas nenhum deles apresentou. Por isso, todas as inscrições foram canceladas, excluídas do sistema e o processo encaminhado ao Ministério Público e à delegacia onde entregamos a denúncia”, conta Thessa Guimarães.
A presidente do CRP-DF esclarece ainda o porquê de o número do registro de Amilton Gomes não constar como cancelado no sistema de buscas disponibilizado pelo Conselho Federal de Psicologia no site da entidade. “Não consta no sistema como cancelado porque essa classificação é para o profissional idôneo que apresentou a documentação exigida, mas não quer mais exercer a profissão e por isso cancela. No caso deles não foi isso, eles apresentaram diploma com conteúdo falso, pois não cursaram psicologia”.
Sobre os cursos de especialização citados no currículo do religioso, Thessa Guimarães alega que o Conselho não tem ingerência sobre as especializações e que são cursos livres. “Ele não é psicólogo e não está autorizado a exercer essa profissão. O Conselho enviou ofício a várias dessas instituições que ele cita no currículo comunicando que ele não é psicólogo”, explica.
Bereia também verificou a filiação de Amilton Gomes às demais entidades de classe citadas em seu currículo, como a Sociedade de Psicologia do Centro-Oeste (SOPSICO), da qual ele se apresenta como presidente. Não há site da entidade ou qualquer registro oficial dela. Há apenas uma postagem do logotipo, seguido de um texto explicativo sobre o que é a SOPSICO em uma rede social da Igreja Batista Ministério Vida Nova da qual o pastor é também presidente.
Reprodução da publicação sobre a SOPSICO no Tumblr
No site da Sociedade Brasileira de Neuropsicologia (SBNp), por exemplo, o nome do religioso não consta na lista de Neuropsiquiatras credenciados pela entidade. O mesmo acontece com o Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP). Bereia entrou em contato via telefone e WhatsApp com a Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil e Profissões Afins (ABENEPI) e com a Associação Brasileira de Medicina Psicossomática (ABMP) e nenhuma delas reconhece Amilton Gomescomo membro ou filiado. Já a Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP), não retornou o contato até o fechamento desta matéria.
Amilton Policial?
Outro ponto que chama atenção no currículo de Amilton Gomes diz respeito à sua ligação com entidades policiais. Consta em seu Currículo Lattes o cargo de Vice-Presidente da Federação Nacional de Policiais Ferroviários Federais. Bereia apurou e constatou que Gomes é também filiado ao Sindicato de PFF (Policiais Federais Ferroviários) e membro do IPA (International Police Association, Associação Internacional de Policiais, em inglês). Sua filiação sindical foi efetivada no dia 23 de setembro de 2020 e registrada no Diário Oficial da União.
Imagem: Reprodução Currículo Lattes de Amilton Gomes de Paula
Imagem: Reprodução da página 122 do DOU de 23 de setembro de 2020
Já a associação ao IPA foi confirmada pelos representantes da entidade no Brasil contatada pelo Bereia. Entretanto, ao serem questionados sobre como o pastor conseguiu se associar sem ser policial, não houve resposta dos representantes brasileiros da IPA. Bereia também não recebeu resposta quando perguntou a respeito do processo de filiação à associação. Não há registro da atuação de Amilton Gomes como policial em seu Currículo Lattes ou na página da SENAH.
O presidente da Associação Nacional dos Policiais Ferroviários Federais (ANAPFF) Carlos Romeu Alves Antunes afirma, no entanto, que a profissão não pode ter representação sindical, apenas associações. Isso acontece porque não há regulamentação desse cargo. “Eles criaram (o sindicato), mas é ilegal. Ainda não existe Policial Ferroviário Federal, portanto o STF não reconheceu esse sindicato. Ele (Amilton Gomes) não faz parte de nossa entidade, por não se tratar de um policial ferroviário. Não consta nos registros do Ministério da Justiça”, explica Antunes.
O presidente da ANAPFF questiona a existência de uma Federação ligada à categoria, como consta no currículo de Amilton Gomes. “Como pode existir uma confederação se não existem sindicatos? Não existem sindicatos porque os PFFs (Policiais Ferroviários Federais) ainda não estão nos cargos. Estamos aguardando a Justiça resolver essa situação”.
De fato, apesar de constar na Constituição Brasileira, a profissão não foi regulamentada. O Projeto de Lei n° 1786, de 2021 foi encaminhado ao Senado em maio deste ano sob a justificativa de que apesar de ter assento constitucional, a Polícia Ferroviária Federal nunca foi implementada e continua em tramitação na casa.
Chama a atenção, também, uma breve passagem de Gomes pelo Exército Brasileiro entre 1991 e 1998, no cargo de Adjunto Oficial General, de acordo com o seu Currículo Lattes. Não há, contudo, qualquer referência a este cargo no DECRETO No 71.733, DE 18 DE JANEIRO DE 1973 (e diversos decretos de atualização). Apenas no DECRETO Nº 9.435, DE 2 DE JULHO DE 2018 há menção a adjuntos (agentes da Agência Brasileira de Inteligência [ABIN], no exterior, junto às missões diplomáticas brasileiras). Não há comprovação de que Amilton Gomes tenha atuado nesse setor.
Imagem: Reprodução Currículo Lattes de Amilton Gomes de Paula
Assim como ocorreu na produção da matéria anterior, o religioso não retornou nossas tentativas de entrevista, apesar de ter recebido cordialmente o primeiro contato. Bereia então entrou em contato com os advogados de Amilton Gomes. Segundo o Dr. Daniel Sampaio, seu cliente só vai falar com a imprensa após o depoimento à CPI da COVID, em 03 de agosto.
Formação religiosa e igreja de Amilton Gomes de Paula
Conforme detalha a apuração primeira parte da reportagem do Bereia, Amilton Gomes se apresenta como “reverendo” e membro da Convenção Batista Nacional (CBN). No entanto, lideranças da denominação negam o pertencimento da Igreja Batista Ministério Vida Nova à CBN. Bereia encontrou um site que oferece informações sobre a essa comunidade religiosa. O site possui diversas partes incompletas, mas contempla a biografia de Amilton Gomes (com as mesmas credenciais daquelas encontradas no Lattes), nomes de lideranças da igreja como pastores, presbíteros e diáconos, bem como fotos de celebrações. A aba de contato, no entanto, remete a um endereço de São Bernardo do Campo – e não Brasília, onde o site informa que igreja se localiza.
Reprodução da página inicial do site da Igreja Batista Ministério Vida Nova
O canal no YouTube da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (SENAH) – entidade presidida pelo religioso, tem vídeos da Igreja Batista Ministério Vida Nova em seus arquivos. Esses conteúdos vão desde sermões pregados por Amilton Gomes, gravações da parte musical do culto religioso e também transição de programa da igreja na Rádio Redentor de Brasília. As buscas no Google por “Vida em Cristo” e “Rádio Redentor” retornam conteúdos de uma das lideranças da igreja com imitações de acesso a esses links.
A respeito da formação de Amilton Gomes na Faculdade de Ciências, Educação e Teologia do Norte do Brasil (FACETEN), o Curso de Teologia não indicavínculo denominacional. No entanto, a instituição oferece pós-graduação lato sensu (especialização) em “Psicologia Pastoral”, o que aponta conteúdo voltado para igrejas evangélicas (cujos líderes clérigossão comumente denominados pastores). Outras pós-graduações lato sensu na área de Teologia dizem respeito a Ciências da Religião e História de Israel. Assim como Bereia abordou na primeira parte desta reportagem publicada em 12 de julho, a FACETEN está envolvida em escândalos que envolvem a emissão de diplomas falsos a policiais militares.
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Bereia classifica os conteúdos que divulgam o currículo do Reverendo Amilton Gomes de Paula, pastor envolvido na investigação de irregularidades na compra de vacinas contra covid-19 pelo Ministério da Saúde, como falsos (no que diz respeito à sua formação como psicólogo) e como imprecisos (no que se refere a funções de Policial Ferroviário Federal e Adjunto Oficial General do Exército). Quanto à vinculação religiosa, o pastor Amilton Gomes tem um diploma de Bacharel em Teologia na FACETEN, no entanto, a divulgação de que a igreja que ele dirige, a Igreja Batista Ministério Vida Nova, à Convenção Batista Nacional (CBN) é falsa.
* Com colaboração de Alexandre Brasil Fonseca, André Mello, Bruno Cidadão, Magali Cunha e Raquel Rocha
Matéria atualizada em 04/08/2021 às 21:28
Em 1º de julho, a Agência Pública publicou a matéria “Grupo Evangélico fez oferta paralela de vacinas ao Ministério da Saúde e prefeituras”. A reportagem apresenta uma organização não governamental (ONG) chamada Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (SENAH), que atuou como intermediária junto ao Ministério da Saúde para a venda de doses das vacinas dos laboratórios da Oxford/Astrazeneca e Johnson & Johnson/Janssen. Ela teria facilitado a venda para uma terceira empresa, a multinacional Davati Medical Supply.
O presidente da SENAH é Amilton Gomes de Paula, que recebeu aval do ex-diretor de Imunizações do Ministério da Saúde, o médico veterinário Laurício Monteiro Cruz. Ele foi citado na CPI da Covid como intermediador das negociações com a SENAH. Cruz presidiu o Conselho Regional de Medicina Veterinária do Distrito Federal, antes de assumir o cargo como diretor de imunizações do qual foi exonerado em 08 de julho de 2021. A exoneração, publicada no Diário Oficial da União, foi assinada pelo ministro-chefe da Casa-Civil, Luiz Eduardo Ramos. Estas denúncias levaram à convocação do reverendo Amilton Gomes de Paula pela CPI da Covid como testemunha.
Diante da participação de um personagem religioso na oferta de vacinas feita pela Davati ao Ministério da Saúde, da menção à Embaixada Mundial pela Paz no caso e a uma alegada parceria com a Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz (cujos membros têm como base a Frente Parlamentar Evangélica), Bereia buscou construir o perfil do Reverendo Amilton Gomes de Paula para verificar o lugar que ocupa nesta trama.
“Reverendo”: por que não “pastor”?
No levantamento inicial, observa-se que a imprensa está apenas repetindo o currículo de Amilton Gomes que consta na página oficial da SENAH. Nela, ele é apresentado como membro da Convenção Batista Nacional do Brasil, e reitor da Faculdade Batista do Brasil, doutor em Ciências da Educação. O currículo exposto no site da SENAH também indica que Amilton Gomes é bacharel em Filosofia, mestre em Teologia Sistemática, com quatro especializações na área de Psicologia e Saúde Mental, diretor e membro de diferentes associações e sociedades nessas duas áreas.
Amilton Gomes de Paula foi graduado em Teologia, em 2010, pela Faculdade de Ciências, Educação e Teologia do Norte do Brasil (FACETEN), com sede em Boa Vista-RR e envolvida em escândalos que envolvem a emissão de diplomas falsos a policiais militares. A faculdade conta com oito cursos de graduação, cinco em EAD e três presenciais, além de 37 cursos de pós-graduação lato sensu (especializações). O curso de Bacharel em Teologia está na origem da faculdade, criada em 2000.
A reportagem da Agência Pública relaciona Amilton Gomes como “Reverendo Dr.”, forma com a qual se apresenta publicamente, o pastor da Igreja Batista Ministério da Nova Vista. Outras reportagens apenas citam o tratamento religioso “reverendo” (como a do Jornal Nacional, da Rede Globo, de 3 de julho) ou a filiação à Igreja Batista (é o caso da CNN Brasil, de 5 de julho).
No entanto, no site da SENAH e no perfil de Amilton Gomes no LinkedIn não há menção específica à igreja à qual ele está vinculado. No site da SENAH há apenas o registro “Membro da Convenção Batista Nacional do Brasil”.
O nome correto da igreja com a qual o pastor Amilton Gomes tem vínculo é a Igreja Batista Ministério Vida Nova, cujo website está desativado mas que tem dados registrados no localizador Findglocal (o telefone que consta não atende) que confirmam o endereço e o nome do pastor.
No cadastro de Igrejas, da Convenção Batista Nacional, a Igreja Batista Ministério Vida Nova não está entre as igrejas arroladas. A Convenção Batista Nacional representa um grupo de aproximadamente 2.700 igrejas com mais de 400 mil membros articulados, desde 1967, em comunhão e cooperação com uma doutrina comum e uma visão e estrutura organizacional compartilhada.
De acordo com o Presidente da Convenção Batista Nacional do Distrito Federal, Pastor José Carlos da Silva, da Primeira Igreja Batista de Brasília (DF), não há informações sobre o pastor Amilton Gomes ou sobre a Igreja Batista Ministério Nova Vida registradas na organização. “A informação que tive, do secretário da Ordem de Ministros Batistas Nacionais é que ele (Amilton Gomes de Paula) não consta no rol de filiados. Realmente, não faz parte de nossa denominação. Sou o presidente da CBN-DF e desconheço a igreja e o Pr. Amilton”, afirma o pastor que foi por duas vezes presidente da Convenção Batista Nacional.
Foram analisados também conteúdos de divulgação da SENAH com vídeos no Youtube e registros de eventos. É utilizado um conjunto de logomarcas nestes conteúdos vinculados ao Reverendo Amilton Gomes de Paula, e não há qualquer marca relacionada à Convenção Batista Nacional ou referente aos batistas no Brasil.
Bereia também não conseguiu identificar referências da ordenação de Amilton Gomes (ou investidura, termo utilizado na consagração e inserção de pastores em quadros clericais em igrejas evangélicas) por alguma ordem de ministros batistas. O título de “Reverendo” não é comum entre batistas no Brasil, como se pode observar no registro de pastores da diretoria da CBN.
Lideranças de diferentes igrejas, ouvidas pelo Bereia, esclareceram que, no vocabulário religioso, “reverendo” é uma forma de tratamento dirigida a clérigos, padres católicos e pastores de algumas igrejas evangélicas tradicionais, como a Metodista e a Presbiteriana. Portanto, “reverendo” não é uma função, mas uma forma de se dirigir a estas lideranças religiosas. A Igreja Episcopal Anglicana é que se diferencia, uma vez que “Reverendo”, “Reverenda” é uma categoria eclesiástica estabelecida a clérigos ordenados. Nas demais igrejas evangélicas, Luteranas, Batistas, Congregacionais, Pentecostais, é corrente a utilização do tratamento e da titulação “pastor”,”pastora”, “missionário”, “bispo” ou, mais recentemente, “apóstolos” para suas lideranças.
A Igreja Batista Ministério Vida Nova se destacou no cenário evangélico do Centro-Oeste nos anos 2016 e 17 com a realização do evento Fest Vida, envolvendo diferentes igrejas e voluntários ligados a ela, uma ação sociocultural que mesclava shows gospel com assistência social. Um pastor que atuava em Brasília à época, apoiou o Fest Vida, e que preferiu não ser identificado, declarou ao Bereia: “o evento ‘prometeu’ muita coisa e foi bem fraco. Na época, houve notícias na imprensa local sobre superfaturamento daquele evento e outros junto a Secretaria de Cultura do DF. Muita lábia. Chegou a abrir uma ONG meio estranha. E, agora, o SENAH”. O Fest Vida teve patrocínio do governo do Distrito Federal, tendo sido citado, em 2017, na lista de contratos sob suspeita no DF. Hoje, no entanto, não há muitos vestígios da Igreja Batista Ministério Vida Nova. O website principal da igreja está inativado, estando ativo apenas um outro site aparentemente desatualizado sobre a igreja do religioso e no endereço que consta em seus registros de CNPJ, funciona outra igreja, a Igreja Adventista Renovada do Sétimo Dia.
Sobre a reitoria de faculdade e o título de doutorado
O website da SENAH apresenta extenso currículo de Amilton Gomes de Paula no campo da educação, indicando-o como reitor da Faculdade Batista do Brasil, doutor em Ciências da Educação. A verificação realizada pelo Bereia mostra que esta faculdade não se encontra cadastrada no Ministério da Educação, cujo website está inativo. Apenas com o recurso do site de pesquisa Wayback Machine, foi possível acessar a página oficial da instituição inativa. O Wayback é um arquivo digital que mantém uma biblioteca com o histórico de inúmeras páginas na web.
Segundo o doutor em Ciências da Religião, Alonso Gonçalves, pastor da Igreja Batista Central em Pariquera-Açu (SP), a Faculdade Batista do Brasil não existe entre os batistas no Brasil. “Em conversas com vários colegas aqui pastores da Convenção Batista Brasileira (CBB), ninguém conhece essa Faculdade Batista do Brasil. Parece que a tal “faculdade” é fake. Existe a Faculdade Batista Brasileira em Salvador/BA. Quanto a essa faculdade da qual ele diz ser o reitor ninguém nunca ouviu falar”, diz Gonçalves que também é professor de Teologia.
Sobre o Doutorado em Educação, não há inclusão da titulação no Currículo Lattes de Amilton Gomes, nem registro da instituição onde concluiu o doutorado. O que se verifica é que o uso do título se deve à conquista, pelo pastor, de quatro títulos de Doutor Honoris Causa em Psicologia e Psicanálise. Isto seria um grande feito, não fossem os títulos concedidos por instituições de educação sem reconhecimento acadêmico e sem publicações referidas ou congressos científicos. O registro no Currículo Lattes do termo também está feito erroneamente como “Doutor em Honoris Causa”.
As publicações e congressos científicos são duas das formas mais comuns de promoção e renome entre as universidades que oferecem titulação de doutorado. Duas das instituições que conferiram títulos indicados no Currículo Lattes de Amilton Gomes não têm destaque ou referências na área de educação – como a Sociedade de Psicologia do Centro Oeste (presidida pelo próprio religioso) e a Federação Nacional dos Teólogos e Filósofos do Brasil. Nesse currículo, há quatro graduações e três especializações, todas cursadas entre 2004 e 2013. Amilton Gomes também é identificado pela SENAH como graduado em Psicologia, mas no seu Currículo Lattes constam apenas duas especializações na área.
A Missão Diplomática Americana de Relações Internacionais (ADMIR) é a organização intergovernamental humanitária mundial, sediada nos Estados Unidos da América. Nessa reunião, foi aprovado o estabelecimento do Departamento de Estado na Flórida e foi montado o cenário para a tecitura de uma teia de dispositivos e instituições que veio a ser conhecida como Sistema Interamericano, o mais antigo sistema institucional internacional.
(Tradução livre)
A instituição, portanto, não pertence ao governo estadunidense, apesar das inúmeras logos associadas ao governo americano em sua página oficial na internet.
O que é a SENAH?
De acordo com o site oficial da instituição, a ONG surgiu em 1999 por iniciativa de Amilton Gomes de Paula em decorrência de ações socioculturais. O nome original da organização era Secretaria Nacional de Assuntos Religiosos (SENAR) e em 2020 foi alterado para SENAH. “Hoje nosso DNA está na cultura pela paz mundial, na fomentação de apoio ao meio ambiente, sempre buscando meios sustentáveis para o desenvolvimento da sociedade harmonizando Homem e Meio Ambiente”, descreve a página oficial da ONG. A alteração estatutária dos objetivos e do nome da instituição facilita, inclusive, a celebração de parcerias e contratos com o Poder Público.
Fotos publicadas nas mídias sociais do religioso dão conta dessa proximidade com políticos. Uma delas mostra o pastor com a ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos Damares Alves em agosto de 2019. Em outras, ele segura uma moção de louvor no Congresso e aparece ao lado do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ).
Em vídeo de reunião com líderes religiosos e empresários da cidade de Monte Mor/SP, em 20 de janeiro de 2020, Amilton Gomes faz referência ao apoio do governo federal para projetos da SENAH. Ele se refere tanto à recepção em Israel pelo embaixador do Brasil naquele país, Paulo César Meira de Vasconcelos, quanto pela presença do ministro da Advocacia-Geral da União André Mendonça, no lançamento do projeto de casas populares da entidade Morada Brasil.
Entre as logomarcas que se apresentam nas divulgações da SENAH, inclusive é a capa do canal da entidade no YouTube, chama a atenção a da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-SP. No entanto, conforme contato feito pela equipe Bereia com o presidente da Comissão Dr. Samuel Gomes de Lima não há parcerias entre a SENAH e a OAB de São Paulo. “O Sr. Amilton Gomes de Paula não é membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-SP e nem a mesma tem qualquer relação de parceria com a SENAH, sendo indevido o uso do logotipo da Comissão, passível até de ação judicial”, ressaltou.
SENAH e a negociação de vacinas contra a covid-19
Conforme reportagem da Agência Pública, fotos postadas pelo presidente da SENAH, o pastor Amilton Gomes, em mídias sociais, em quatro de março de 2021, registram sua participação em uma negociação pela aquisição de vacinas contra a covid-19. As imagens mostram a presença de Amilton Gomes, Luiz Paulo Dominguetti (policial militar de Minas Gerais que depôs à CPI da Pandemia, depois de declarar à imprensa um suposto pedido de propina pelo servidor da Saúde Roberto Dias), o diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis Lauricio Monteiro Cruz e o major da Força Aérea Hardaleson Araújo de Oliveira. À Pública, Amilton Gomes confirmou a oferta e a visita ao Ministério da Saúde.
Hardaleson tem proximidades religiosas com Amilton Gomes. Há menções de que ele seja missionário evangélico e há vídeos no YouTube dele cantando músicas evangélicas em igrejas. Hardaleson ambém aparece cantando o hino nacional brasileiro em reuniões com Amilton Gomes e em atos de grupos em apoio ao presidente Jair Bolsonaro, como no caso da Marcha da Família Cristã pela Liberdade de maio de 2021. Desde maio de 2020, ele consta como militar da reserva, sem ter exercido funções no governo federal.
Em 3 de julho, o Jornal Nacional, da TV Globo, veiculou uma reportagem que detalha a troca de e-mails entre Laurício Cruz, Amilton Gomes e Herman Cardenas, presidente da Davati nos Estados Unidos. De acordo com o jornal, em 9 de março, Cruz enviou e-mail para Cárdenas informando sobre a reunião de cinco dias antes e o aval que a SENAH tinha para negociar vacinas com o Governo Federal. Um dia depois, o pastor Gomes enviou um e-mail a Cardenas agradecendo a confiança e pedindo detalhes para preenchimento do contrato. Nessa proposta, o valor por dose era de US$ 17,50. A quantia é mais de cinco vezes maior do que o gasto pelo Governo Federal para vacina da AstraZeneca com a FioCruz (US$ 3,16) e pouco mais que o triplo do valor dos imunizantes via Instituto Sérum (US$ 5,25).
Outro e-mail, no dia seguinte, enviado de Amilton Gomes a Cardenas dá conta de que em 12 de março haveria uma reunião com o então Secretário Executivo da Saúde Coronel Élcio Franco para tratar de aquisição de vacinas. O representante da Davati Cristiano Carvalho confirmou ao Jornal Nacional que participou da reunião com Franco (na agenda oficial consta uma reunião com o Instituto Força Brasil), mas o negócio não foi concretizado. O valor de 17,50 dólares difere da proposta que Dominguetti afirma ter feito ao Ministério da Saúde em fevereiro de 2021, de US$ 3,50. Os e-mails mencionados pelo Jornal Nacional também aparecem na reportagem de Renata Agostini para a CNN Brasil.
Em entrevista ao jornal O Globo do dia 7 de julho, Amilton Gomes admitiu que a SENAH receberia uma doação da empresa Davati Medical Supply, sem valor estipulado. Em troca, o religioso se comprometeria a ajudá-los com a venda das 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca para o Ministério da Saúde. “Quando eles vieram a mim, eles já tinham ido ao governo e não tinham conseguido nada. Isso tudo está documentado. Eles foram primeiro no governo. Depois que não conseguiram vender a vacina, vieram a mim. Com outro nome, com outra proposta”, disse o pastor à reportagem.
Durante o fechamento desta matéria foi divulgado pela imprensa que em uma das mensagens do cabo da PM Luiz Dominguetti, que intermediava vacinas com a ajuda de Amilton Gomes, aparece menção à esposa de Jair Bolsonaro, Michelle Bolsonaro, o que estenderia o alcance do religioso ao Palácio do Planalto.
Nas novas mensagens, Dominguetti comenta assustado sobre os avanços do reverendo. “Michele (sic) está no circuito agora. Junto ao reverendo. Misericórdia”, escreve. O interlocutor se mostra incrédulo diante do nome da primeira-dama. “Quem é? Michele Bolsonaro?” E Dominguetti retorna: “Esposa sim”.
Deputado da Bancada Evangélica deu apoio a negociações via SENAH
Em quatro de julho, tanto a Agência Pública quanto o jornal Folha de S. Paulo publicaram reportagens sobre o apoio do deputado federal da Bancada Evangélica Roberto de Lucena (Podemos-SP) às negociações de vacinas envolvendo a SENAH.
No documento obtido pelas reportagens, consta que o parlamentar parabenizou a SENAH e Amilton Gomes “na interlocução entre laboratórios e governo”. Roberto de Lucena é pastor da Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo, faz parte da Frente Parlamentar Evangélica e da Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz Mundial (FremhPaz), instituída em 2019 na Câmara Federal, tendo a SENAH (então SENAR) como membro cooperadora.
À Folha de S. Paulo, o parlamentar disse que não viu nada de suspeito no pedido de apoio. “Não se tratava de nenhuma iniciativa comercial, era uma iniciativa humanitária. Naquele momento, a nossa crise era pela aquisição de vacinas, e o propósito deles [SENAH] era poder conversar com organismos internacionais falando sobre a necessidade de vacinas para o Brasil. Eles me pediram para assinar um apoiamento a eles e disseram que estavam pegando apoiamento de vários parlamentares”, afirmou Lucena ao jornal.
Lucena é autor do Projeto de Lei (PL) 1066/2021, que autoriza a aquisição e comercialização de vacinas contra covid-19 pela iniciativa privada e desobriga as empresas a repassar as vacinas ao SUS. O PL foi apresentado depois de sancionada a lei que permite a compra privada de vacinas aprovadas pela Anvisa desde que as doses sejam doadas ao SUS enquanto a vacinação de grupos prioritários não tenha sido finalizada.
Oferta da SENAH a municípios
Além das reuniões com o Ministério da Saúde, a SENAH também enviou proposta de venda das vacinas a Governadores, Prefeitos e Secretários de Saúde. O valor dessa oferta era de US$ 11 por dose de imunizantes da Astrazeneca e da Jonhson & Jonhson.
Na matéria de 4 de julho, a Agência Pública reporta que Amilton Gomes nega ter feito proposta de imunizantes a prefeituras, apesar de a carta obtida pelo veículo ter a assinatura dele. O religioso diz que a iniciativa partiu de um dos diretores da SENAH e que este foi repreendido por isso. Também procurado pela reportagem da Pública, o diretor mencionado, Renato Gabbi, afirma que a organização não faz negociações ou vendas, apenas informa sobre assuntos de grande necessidade nos países em que a SENAH atua.
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Bereia conclui que Amilton Gomes de Paula é, de fato, ligado ao cenário evangélico do Distrito Federal e confirma que as referências às conexões religiosas e políticas existem. Todavia, há lacunas e imprecisões na formação do líder religioso, entre as quais destacamos a ausência de sua vinculação à comunidade dos Ministros Batistas Nacionais – e do registro de sua igreja na Convenção Batista Nacional (CBN), diferentemente de como declara o website da SENAH. Também, é digno de nota que Amilton Gomes use a designação “reverendo”, mais comum entre pastores presbiterianos, metodistas e anglicanos, e que a tenha recebido como título da “Ordem dos Cavaleiros de Sião”.
O Coletivo Bereia também conclui que as referências institucionais utilizadas pela SENAR/SENAH são imprecisas e que sua profusão pode induzir a erro, pois não é uma instituição governamental, não tem status diplomático, não possui relacionamentos institucionais de subordinação ou coordenação, nem tem autorização oficial para falar em nome da Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz Mundial (FREMHPAZ) cujo coordenador é o deputado federal e pastor Fausto Pinato (PP-SP), advogado integrante da bancada evangélica.
A reportagem do Bereia entrou em contato no dia 08/07 com o religioso, que respondeu positivamente ao contato. Amilton Gomes alegou que somente poderia responder à entrevista com anuência de seus advogados. As perguntas sobre as inconsistências do perfil religioso e sobre a suposta intermediação de Gomes na compra de vacinas pelo governo federal foram enviadas no início da noite do mesmo dia, mas até o fechamento desta matéria, não houve resposta. No site oficial da SENAH, há um comunicado que chama as denúncias de envolvimento no esquema fraudulento de compra de vacinas de “fatos totalmente inverídicos e distorcidos da realidade”. A íntegra da nota está reproduzida abaixo:
A CPI da Covid agendou a oitiva do reverendo Amilton Gomes de Paula para a quarta-feira, 14 de Julho de 2021. O requerimento de convocação o arrolou como testemunha (nº 1065/2021). Porém, em 12 de julho, Gomes apresentou atestado médico para não depor à Comissão no dia agendado.
No início de julho, um fiscal da Vigilância Sanitária exigiu que um casal do Rio seguisse os protocolos de prevenção à Covid-19. Disse “Cidadão…”. A mulher reagiu: “Cidadão não, engenheiro civil, melhor do que você!” E se recusaram a adotar os procedimentos exigidos.
A arrogante senhora foi demitida, no dia seguinte, da empresa na qual trabalhava. Se o fiscal Flávio Graça, que ali cumpria o seu dever, retrucasse no mesmo tom, diria com autoridade que é formado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Fluminense, doutorado pela Universidade Federal Rural do RJ, coordenador de cursos de pós-graduação e superintendente de Inovação, Pesquisa e Educação em Vigilância Sanitária, Fiscalização e Controle de Zoonoses da Prefeitura do Rio.
Poucos dias depois, em Santos (SP), o desembargador Eduardo Almeida Prado Siqueira foi multado por caminhar na praia sem máscara, contrariando decreto da prefeitura. Chamou o guarda municipal de “analfabeto”, ligou para o secretário de segurança do município para intimidar o responsável pela multa, rasgou-a e jogou-a no chão.
Em Catalão (GO), no final de junho, um comerciante de 76 anos foi agredido ao alertar um cliente da exigência de usar máscara na loja. Fraturou o fêmur e ficará seis meses em cadeira de rodas.
Em abril, em Araucária (PR), um homem foi impedido pelo segurança de entrar sem máscara no supermercado. Discutiram e houve o disparo de um tiro, que matou uma funcionária do estabelecimento.
Essa arrogância entranhada em muitos brasileiros tem raízes históricas. Foram 380 anos de escravatura em nosso país, durante os quais os brancos tratavam os negros com um desrespeito que jamais repetem ao lidar com seus animais de estimação. E, hoje, temos um presidente da República que viola todos os protocolos de prevenção sanitária, dando péssimo exemplo à nação.
Entre os vários sintomas do complexo de superioridade, segundo o psicólogo Alfred Adler, criador da Psicologia do Desenvolvimento Individual, manifestam-se o autoconvencimento, a atitude de considerar os outros inferiores e apontar defeitos, a inveja, a busca de reconhecimento, a excessiva preocupação com a opinião alheia, a falsa autossegurança.
“Educação vem do berço”, dizia minha avó. Uma criança que dá ordens à faxineira, humilha a cozinheira por não gostar de uma comida, desrespeita a professora, está fadada a ser infeliz e fazer os outros infelizes. Porque todo prepotente é amargo, irascível, preconceituoso.
Uma senhora branca saía do supermercado em Brasília (DF) e, ao avistar um negro, pediu que ele empurrasse o carrinho de compras até o estacionamento. Ele aquiesceu. Colocado tudo no porta-malas, ela lhe estendeu uma gorjeta. Ele rejeitou com um sorriso: “Agradeço, senhora. Fiz por gentileza.” Aconteceu com Vicentinho, deputado federal (PT-SP).
Quando eu me encontrava na Inglaterra, em 1987, um sobrinho da rainha Elizabeth II foi parado pela polícia rodoviária ao dirigir em alta velocidade. “Sabe com quem você está falando?”, disse ao guarda. “Quem você pensa que é?”, retrucou o policial. Por não trazer carteira de habilitação, foi multado, e o carro, apreendido. Mais tarde, o juiz exigiu que ele pedisse desculpas ao guarda.
Para Jesus, poder é servir: “O maior seja como o mais novo, e quem governa, como aquele que serve” (Lucas 22,24). Mas estamos longe de nos impregnar dessa cultura. Em um país com abissais desigualdades sociais, os privilegiados tendem a se considerar muito superiores aos marginalizados. As pessoas não importam. Importam os bens materiais que as emolduram.
Em 2007, o violinista Joshua Bell deu um concerto no Teatro de Boston, lotado de apreciadores que pagaram, no mínimo, 100 dólares por ingresso. Dias depois, o jornal Washington Post decidiu testar a cultura artística do público. Levou o violinista para a estação de metrô da capital americana. Durante 45 minutos, ele tocou Bach, Schubert, Ponce e Massenet.
Eram oito horas de uma manhã fria. Milhares de pessoas circulavam pelo metrô. Quatro minutos após iniciar o concerto subterrâneo, o músico viu cair a seus pés seu primeiro dólar, atirado por uma mulher que não parou. Quem mais lhe deu atenção foi um menino. Porém, a mãe o arrastou, embora ele mantivesse o rosto virado para o violinista enquanto se distanciava.
Durante todo o tempo do concerto, apenas sete pessoas pararam um instante para escutar. Cerca de vinte jogaram dinheiro sem deter o passo. Ao todo, 32 dólares e 17 centavos a seus pés. Quando cessou a música, ninguém aplaudiu.
Bell é considerado um dos melhores violinistas do mundo. Mas nessa sociedade neoliberal hegemonizada pelo paradigma do mercado, ele ali era um “produto” colocado na prateleira errada. Como se o fato de estar em local público tornasse sua música de menos qualidade. Estivesse um músico medíocre no palco do Teatro de Boston com certeza teria sido ovacionado.
Como disse Molière, “devemos olhar demoradamente para nós próprios antes de pensar em julgar os outros.”